Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Eu, leitora: “Fui escrava na Europa e hoje socorro refugiados”
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A ativista Viviane Reis, 37 anos, tinha um sonho: ser atriz. Após um ano juntando economias para estudar no exterior, aos 19, foi escravizada por uma família rica na Bélgica. Na fuga, conheceu um casal de muçulmanos que mudou sua visão sobre religião e também seu destino. De volta ao Brasil, criou uma ONG para ajudar refugiados que chegam ao Brasil, a I Know My Rights (IKMR), e atende mais de 500 crianças de 12 nacionalidades
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Nasci em Monte Carmelo, interior de Minas Gerais, a seis horas de Belo Horizonte. Filha de pais de origem simples, tive uma criação católica, protegida da violência das grandes cidades. Mas viver no interior limitava meu sonho de ser atriz. Quando tinha 19 anos, assisti a um comercial na televisão de uma agência que fazia intercâmbio no exterior. Ali vi uma oportunidade de aprender o ofício que tanto desejava. Por que não ir a Paris e me formar na cidade que respira arte? A França era um lugar seguro, afinal. Como não falava o idioma, resolvi ir primeiro para a Bélgica, país vizinho, estudar francês por três meses. Não tinha muito dinheiro, então fechei com a agência um esquema de ser au pair: moraria na casa de uma família como babá, iria à escola e seria remunerada por cuidar das crianças durante o dia. Após um ano de negociação para ver exatamente onde me hospedaria e que pessoas me receberiam, atravessei confiante o Atlântico com meu passaporte e US$ 2 mil, juntados com muito suor. O destino era Arlon, um vilarejo no sul do país.
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Ao chegar de trem, fui recebida por Karine, minha anfitriã, na plataforma da estação. Era uma alemã de uns 40 e poucos anos, loira, de olhos azuis, vestida com um casaco que parecia caro. Veio sorrindo para mim e não sei por que fiquei petrificada, com medo. Acho que senti o que estava por vir. Karine tinha quatro filhos: Sandrine, de 15 anos, que estudava num semi-internato, Nicolas, 10, de origem asiática adotado, que morava num internato, Annelise, 7, e Anthony, 2. Minha função seria cuidar dos dois mais novos. Os primeiros dias foram ótimos.
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Uma semana depois, ela pediu para ver meu passaporte e inocentemente o entreguei junto com meus dólares. Como a moeda era outra e receberia em francos belgas, Karine me convenceu de que era mais seguro deixar o dinheiro guardado com ela, até ir embora. No dia seguinte, meu pesadelo começou. Karine passou a manter o telefone no quarto de casal, onde também guardou meus pertences, e trancar tudo. Assim, nunca podia falar com meus pais dentro da casa. Me colocou também a cargo de todas as funções domésticas. Cozinhava, limpava a casa, cuidava do quintal. E nunca me pagou um tostão. Era uma escrava mesmo. Trabalhava das 6h às 22h.
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A casa era enorme, típica de gente rica. Quatro andares. O casal trabalhava na gerência de bancos. Aliás, o marido mal falava comigo e quem mandava na rotina da família era a alemã. Tudo era tão chique que não podia usar rodo para limpar o chão de mármore. Ficava de joelhos para passar pano no espaço inteiro. Um dia, ela deixou roupas na escada e as guardei. Quando chegou, gritou comigo porque não era para tirar nada do lugar. Dois dias depois, havia outro monte de roupas no mesmo canto e não mexi. Ela berrou dizendo que deveria ter guardado. Existia um terrorismo psicológico, nunca sabia como agir. Karine me chamava de lazzy (preguiçosa, em inglês). As crianças, que antes me tratavam bem, começaram a me maltratar.
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Depois de um mês naquele inferno, ela deixou sem querer a porta do quarto aberta e aproveitei para recuperar meu passaporte. Estava lá, na gaveta da cômoda, junto a uma cópia do documento. Acredito que depois ela me daria o falso. Mas recuperei o original. O dinheiro, no entanto, não estava lá. Karine não percebeu nada.
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Só conseguia ir para a rua quando minha anfitriã saía para trabalhar. Ligava para os meus pais do mesmo orelhão, que ficava a 3 quilômetros da casa. Quando a situação ficou insustentável, contei para eles aos prantos tudo o que estava vivendo. Entraram em desespero e ligaram para a agência. Disseram a eles que, para conseguir ajuda, eu precisava ir até Bruxelas, capital da Bélgica. Como não tinha dinheiro, combinamos que me enviariam o suficiente para eu escapar, mas a quantia só chegaria em 30 dias úteis – tempo que o correio demorava para fazer transações. Enquanto isso, teria que ficar no mesmo lugar. Ligava para o Brasil todos os dias.
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O jardim me dava bastante trabalho e durante uma tarde tive insolação. Fiquei muitas horas sob o sol podando todo o verde. À noite, Annelise montou em mim para brincar de cavalinho e senti dor. Curiosa, quis saber o que eu tinha. Quando mostrei minhas costas vermelhas, ela passou as unhas na minha pele e gritei de dor. Chorei naquela noite mais do que em todas as outras. A dor não era mais só emocional, agora era física.
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Não me sentia segura em pedir ajuda para os vizinhos com medo de alguém me entregar. Afinal, eu era uma brasileira sem nada. Seria a minha palavra contra a dela. Desisti de esperar pelo dinheiro dos meus pais e, dois meses depois da minha chegada, saí da casa com minha mala até a igreja da cidade. Quando cheguei, as portas estavam fechadas. Liguei para minha mãe e disse que ia dar um jeito de chegar ao Brasil. Uma senhora viu a minha aflição e me ajudou a ir para a matriz, no topo da colina. Ali, um homem nos recepcionou. Era o padre. Contei a história e pedi um lugar para ficar até meu dinheiro chegar ou uma quantia suficiente para eu ir a Bruxelas. Ele me deu dinheiro para pegar um trem até a capital e ainda sobraram 853 francos belgas.
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Cheguei a Bruxelas e precisava ir até Paris porque minha volta ao Brasil sairia de lá. Mas a passagem de avião custava 4 mil francos. A saída foi ir de ônibus, que custaria 851 (dois francos a menos do que tinha). Cheguei lá à meia-noite. A estação ficava num lugar horroroso. Prostitutas e homens estranhos começaram a chegar. Fui até o banheiro com a ideia de me trancar e ficar ali até o dia amanhecer. Mas, para entrar no banheiro, precisava de 1 franco francês e eu só tinha 2 belgas. Voltei para a plataforma, sentei na minha mala e chorei mais uma vez.
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Uma mulher, junto com o marido, me abordou preocupada e disse que não poderia ficar ali. Era muito perigoso. O casal me convidou a ir para a casa deles. Estava morrendo de medo, mas decidi arriscar. O trajeto durou quase uma hora. Quanto mais demorava, mais em pânico ficava. Me dei conta de que poderia estar em uma nova confusão. Felizmente chegamos. Jantamos e dormi. No outro dia, a mulher me chamou na sala para dizer que eram muçulmanos. Meu mundo caiu porque era extremamente preconceituosa, achava que todo muçulmano era terrorista. Mas ela disse: ‘Pecado mortal na sua religião é matar alguém. Para nós, é negar socorro a um inocente’. Aquilo me tocou. Era sábado. Esperamos até segunda-feira e me levaram a um tipo de embaixada brasileira para estudantes. Liguei para minha mãe e tranquilizei a família. Fiquei naquele lugar durante duas semanas, até a data de retorno ao Brasil. Ao entrar no avião, chorei muito. Quando finalmente pisei em Minas Gerais, fui direto para os braços da minha mãe. Todo esse inferno durou quase três meses. E, só quando a encontrei, vi o mal que ela também enfrentou. Estava magra, pálida. Visivelmente sofrida. Foi um abraço longo e regado a lágrimas.
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Durante dois meses, dormi na cama com meus pais, como na infância. Acordava toda madrugada, com pesadelos. Até hoje não uso relógio. O acessório faz reviver o sofrimento. Marcava as horas desde a saída de Karine para o trabalho até a volta para casa. Meu tempo era controlado pelo ponteiro. Só depois de meses, entendi que havia sido traficada. Fui ao Procon e também à Polícia Federal. Descobri que já havia várias denúncias contra essa empresa, que foi fechada e reaberta com outro nome. Meu processo foi julgado e o Ministério Público deu a sentença a meu favor. Mas isso levou oito anos e o crime prescreveu em seis. Nada aconteceu.
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Mas era hora de recomeçar. Em 2001, resolvi morar em São Paulo e perseguir meu sonho: estudar teatro. Com o tempo, fundei uma companhia de artes infantil. Minha vida estava nos eixos novamente até que, em 2006, meu pai morreu da pior forma: enquanto ajudava um caminhoneiro a trocar o pneu, foi atropelado por outro. Essa perda me quebrou. Desisti de viver. Voltei a morar em Minas Gerais e perdi a fé. Não queria mais estar aqui, nada fazia sentido. Até que, em 2008, comecei a ler sobre espiritualidade e decidi fazer uma regressão. Durante o processo, tive uma memória muito pesada de vidas passadas no Oriente Médio e fiquei com a imagem da atriz Angelina Jolie usando um véu preto. Intrigada, fui pesquisar o que ela fazia além de atuar. Descobri seu trabalho com a ONU, o socorro que leva às crianças refugiadas. Como vivi 30 anos e isso nunca me sensibilizou?
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Para começar, abri uma página no Facebook. Publicava traduções de artigos sobre crianças em situação de guerra. Com aliados que consegui na internet, um ano depois fundei a ONG I Know My Rights (IKMR; em português, “conheço meus direitos”). A data, nunca esquecerei, era 4 de junho de 2012. Depois descobri que esse dia é aniversário de Angelina
Jolie. Comecei a ir a campo atrás de crianças em situação de risco que chegavam do mundo todo.
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Hoje, no Brasil, existem 40 mil pedidos de refúgio. Crio oportunidades para essas famílias se reunirem e trocarem experiências, atendo emergências. Fazemos um lindo trabalho na Zona Leste de São Paulo, no Museu da Imigração. As crianças brincam, têm aula de música. É um momento em que elas são felizes.
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Essa é minha missão de vida. Não consigo pensar em nenhuma outra forma de existir. Abri mão da minha carreira de atriz para, de outra forma, levar arte e alegria para essas crianças. Se eu não tivesse passado pelo intercâmbio, não teria conhecido a família de muçulmanos que me fez ver a religião de outra forma e não estaria aqui com as crianças, que são quase 500! Hoje, com 37 anos, não me casei nem tive filhos, trabalho 15 horas por dia, mas sou uma mulher realizada. As crianças me completam. Elas agora também são minhas.”
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