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Eu, Leitora: “Fiquei cega, escrevi dois livros e ganhei um prêmio literário”

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE: 

 

Veja publicação original:  Eu, Leitora: “Fiquei cega, escrevi dois livros e ganhei um prêmio literário”

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Por Depoimento a Larissa Saram

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A deficiência visual provocada por uma doença congênita nunca impediu
Sara Bentes de se realizar no universo das artes. Desde criança, o desenho
e a música funcionaram como um escudo para enfrentar o bullying e a baixa autoestima. Aos 27 anos, um erro médico deixou a fluminense completamente cega. A dor de não enxergar ganhou contornos mais dramáticos quando o namorado morreu, vítima de um AVC. Baseada em sua própria trajetória, Sara escreveu “E Não Se Esqueçam de Regar os Girassóis”, romance que acaba de ser premiado e a lançou na carreira de escritora

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Nasci com glaucoma congênito, uma doença rara que provoca aumento da pressão dentro do olho por causa do acúmulo de líquido. Até os 3 anos, não enxergava nada, e, para a medicina convencional, essa é uma condição irreversível.

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Os médicos nunca souberam explicar, mas ainda na infância recuperei 5% da visão em cada olho. Via cores, formas e contornos, mas não conseguia distinguir detalhes. Mesmo assim, tinha grande interesse pelas artes e adorava desenhar. Minha mãe conta que, aos 2 anos, numa época em que já passava por uma série de cirurgias – foram 17 ao longo da vida –, voltava da anestesia geral e só queria cantar.

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Minha cidade natal, Volta Redonda, no interior do Rio, não possuía escolas especiais para cegos e meus pais me matricularam em uma próxima de casa. Minha inclusão ocorreu na marra, com minha mãe tendo conversas com diretores e coordenadores que não sabiam lidar com uma aluna diferente.

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Fazer amigos era complicado. Apesar de não usar óculos ou guia, sofri bullying. Enfrentei tudo sem bater de frente e tentei entrar na onda. Por isso, os apelidos que inventavam para mim não pegavam. Mas a verdade é que eu me sentia feia, não sabia lidar com meus cabelos cacheados e vivia triste. As aulas de educação física, em geral de maior socialização, eram proibidas para mim. Sempre estava me recuperando de alguma cirurgia e não podia correr o risco de tomar uma bolada ou algo do tipo. Acabava isolada num canto desenhando.

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Por sorte, havia a Ana Luísa. Ela me acolheu e ajudou no desenvolvimento de técnicas que facilitavam o meu aprendizado, desde o jardim de infância. Lia em voz alta o que a professora escrevia na lousa para que pudesse copiar no caderno. Estudamos juntas até a quarta série, quando o colégio anunciou que não aceitaria mais alunos com deficiência e me expulsou. Na nova escola, fui melhor recebida: amigos estendiam o turno para me auxiliar com física e geometria, matérias bem visuais, que eu tinha dificuldade de acompanhar. Faziam desenhos grandes, com canetas grossas, para eu entender ângulos e fórmulas. Apesar disso, até hoje tenho sonhos ruins com essa época.

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Aos 10 anos, um menino disse que se eu enxergasse direito, até ficaria comigo
Sara Bentes
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Quando entrei na adolescência, momento de construção da autoestima, levei novas rasteiras. Aos 10 anos, um menino de quem gostava disse que se eu enxergasse direito, até ficaria comigo. Me senti um lixo.

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Aos 13, todos esses conflitos internos explodiram e pedi aos meus pais para me levarem a uma terapeuta. Dentro do consultório, não tinha vergonha de falar como me sentia e isso ajudou muito no meu processo de aceitação. Nessa época, fiz um teste para participar do coral da escola e passei. Minha irmã Leda, três anos mais velha do que eu, me acompanhou no violão. A dupla deu tão certo que passamos a nos apresentar em festas, restaurantes, festivais. Foi assim que ganhei pela primeira vez um dinheirinho. No mesmo período, tive acesso a um computador com um software leitor de tela, programa que me situa dentro do sistema operacional sem precisar ditar textos ou usar o braile. Ele lê em voz alta o que teclo. Comecei a escrever minha histórias e não parei mais. Sempre soube que a arte seria minha salvação.

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Aos 17, tive meu primeiro namorado, Diorgenes, o Didi. Ele tinha 24 anos, dois filhos e nenhuma deficiência. Seu estilo era superdiferente do meu: tatuagens, cabelo raspado, motoqueiro, típico bad boy. Era um cara do bem, que me apoiava em tudo. Mas sua superproteção acabou me afastando. Adquirir autonomia tinha sido uma luta árdua, não queria ninguém que me auxiliasse nas escadas ou durante as refeições. Depois, conheci um rapaz de São Paulo que conseguia respeitar melhor essa linha do amor e do cuidado, mas a família dele não me aceitava. Nunca falaram nada na minha frente, mas não eram simpáticos nem tinham cuidado com a minha mobilidade. As coisas ficaram complicadas e rompemos.

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Sara Bentes: depois de perder a visão aos 17 anos, ela se tornou escritora, premiada na edição mais recente da Flip (Foto: Arquivo pessoal)

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Foi também aos 17 anos que, com o olho direito já cego e um pouco deformado, coloquei uma prótese. Foi uma decisão delicada, pois é preciso extrair o olho, mas fez bem para minha autoestima. Também aprendi com minha prima uma técnica para cuidar dos cachos, e comecei a me achar bonita. Terminei o colégio, fiz novos amigos e aumentei o tempo de dedicação à música. Passei a estudar teatro, para ter noção de performance, dança e até circo. Como minha irmã estava morando na Itália, meus pais e eu passamos três meses por lá. Cantava no coro do Festival de Música Antiga da cidade de Magnano e estudava na vizinha Maglione. Voltei para o Brasil e continuei a construção de minha trajetória na música, cantando e dando aulas.

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Tudo caminhava bem. Sabia lidar com minhas limitações, enxergando apenas 5% com o olho esquerdo. Até que, aos 27 anos, fui fazer um agulhamento (procedimento que coloca uma agulha fininha no olho para liberar o excesso de líquido) e saí do consultório com muita dor. Lembro a última cor que vi, o rosa da toalhinha que usava para enxugar as lágrimas. Fechei os olhos na tentativa de amenizar o incômodo e dormi.

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No dia seguinte, quando acordei, não havia sinal de luminosidade. Tateei o móvel ao lado da minha cama para pegar o celular, e não consegui visualizar a tela. Ainda é uma lembrança muito forte. Estava na casa da minha tia, que morava no centro do Rio. Liguei para meu ex-namorado e pedi que ele viesse ao meu encontro, pois, apesar de achar que aquele pesadelo logo acabaria, precisava de apoio.

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No dia seguinte, fomos juntos ao oftalmologista. O médico repetiu o procedimento com a agulha e incluiu apertões bem agressivos no olho, garantindo que a visão voltaria. Fiz novas consultas para ter outras opiniões e, a cada sessão, recebia um diagnóstico diferente. Os olhos se apagaram por completo e só lembro que chorei muito.

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Vivi todas as fases do luto. Primeiro, não aceitei minha nova condição. Depois, me revoltei. Por fim, entendi que foi um processo necessário em minha vida. Contratei uma terapeuta ocupacional e fiz uma espécie de reabilitação para acelerar a percepção dos outros sentidos e reaprender algumas atividades, como cozinhar. Faria aniversário no mês seguinte e sempre gostei de comemorar. Naquele ano, não estava a fim. Mas decidi fazer um pacto comigo mesma: OK, aconteceu, não posso ficar triste para o resto da vida. A partir daí, fui entendendo que tudo são decisões, inclusive as mudanças de hábito e de pensamento. Para isso, tive apoio da família e dos amigos.

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A vontade de morar sozinha aumentou, o que acabou acontecendo de modo inesperado. Namorava Sérgio havia três anos. Tínhamos nos conhecido pela internet, quando ele morava na Espanha e estava procurando personagens com deficiência para um documentário. Fazia um ano que havia se mudado para o Brasil, tínhamos planos de casar e adotar um filho. Não deu tempo: um AVC lhe paralisou os movimentos e a fala. Como a família dele estava na Europa, decidi tirá-lo dos quartos temporários onde estava vivendo e aluguei um apartamento no Rio para vivermos juntos. Ele não fazia nada sem ajuda. Não consigo nem descrever como nos comunicávamos. Pouco tempo depois, ele morreu. Meus pais pediram para eu voltar para casa, mas, depois daquela experiência, cuidar de mim mesma seria tranquilo. Fiquei.

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O fato de ter uma deficiência e levar a vida de forma positiva mexe com as pessoas. Pensar sobre isso me fez entrar num ciclo de produção intensa: em 2011, publiquei um livro de poesias. No ano seguinte, lancei um CD infantil. Em 2013, experimentei o formato das crônicas e lancei o livro Quando Botei a Boca no Mundo. Depois, fiz mais um trabalho musical e o meu primeiro disco solo, Invisível. Então, comecei a pensar nos dois romances que escrevi após os poemas e estavam guardados. Decidi pedir a opinião de outras pessoas: criei uma promoção em minhas redes sociais e selecionei dez seguidores para lerem E Não Se Esqueçam de Regar os Girassóis, livro de ficção que desenvolvi logo após perder a visão.

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O feedback dos leitores foi incrível e fez com que eu acreditasse no meu potencial. Em 2017, publiquei o livro pelo Kindle Direct Publishing (KDP), ferramenta de autopublicação do Kindle. Um ano depois, inscrevi a obra na segunda edição de um concurso da Amazon que premia escritores independentes e autopublicados. Quando descobri que estava entre os dez finalistas, não acreditei!

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Lembro a última cor que vi, o rosa da toalhinha que usava para enxugar as lágrimas
Sara Bentes
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A disputa final aconteceu em julho passado, em Paraty, no circuito off-Flip [Festa Literária Internacional de Paraty]. Viajei com dois primos. Na tarde do evento, nos perdemos pelas ruas de pedra, lotadas de turistas. Cheguei superatrasada e mal tive tempo de me recompor: foram três minutos para apresentar o livro aos jurados, numa sala lotada. Depois, escolhi um trecho em que Emanuel descreve o pôr do sol a Giovana para uma leitura dramatizada, que emocionou a todos. Os aplausos tomaram a sala; fico arrepiada ao lembrar. Tirei o primeiro lugar.

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Cada uma dessas experiências me ensinou a ser mais otimista. É claro que tem dias que dou umas surtadas, choro, jogo almofada no chão. Antes, ficava retraída ao pedir ajuda e passei por vários apertos. Hoje, aos 36 anos, não estou nem aí, sou cara de pau. Estou de mudança para São Paulo, pois o grupo do qual faço parte, o Teatro Cego, terá um espaço fixo para apresentações na cidade. Também vou cantar toda sexta-feira num jantar às cegas, no restaurante O Compadre. Estou animada com as possibilidades que a cidade oferece, incluindo de relacionamentos.

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Ainda este ano, pretendo lançar um novo romance sobre outros assuntos sensíveis, como aborto, homoafetividade e religião. Também já comecei uma nova história, baseada em minhas experiências de viagens internacionais. Ganhar o concurso foi importante para adquirir confiança em relação a minha carreira literária. Também me aproximou de pessoas muito legais que vão contar com a minha consultoria para resolver problemas de acessibilidade dentro da Amazon. Fico feliz em poder ajudar a comunidade de deficientes visuais. Mais do que fazer o bem para mim, quero ser ponte de realização de coisas boas para os outros também.”

 

 

 

 

 

 

 

 

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