Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE
Veja publicação original: Eu, Leitora: “Ao abrir o olho, vi tudo: um monstro em cima de mim me violentando”
.
Vana Lopes foi a primeira vítima denunciar o horror sofrido dentro da clínica de reprodução assistida de Roger Abdelmassih, em São Paulo. Hoje a estilista mora em Portugal, mas não se esquece do estupro que sofreu enquanto estava sedada para realizar o sonho de ser mãe. Depois do trauma, ela ainda teve forças para criar um grupo que ajuda vítimas de violência sexual que tem dado apoio às mulheres que acusam João de Deus de assédio
.
Por Vana Lopes em Depoimento a Felipe Carvalho
.
“Eu era uma jovem bonita, vaidosa, estilista, vivia na Europa, sempre muito comunicativa e estava acostumada a ser elogiada. Quando eu entrava em um lugar, era comum chamar a atenção dos homens. Nunca considerei isso algo agressivo, então não achei estranho quando o médico Roger Abdelmassih olhava para mim.
.
Era 1993, eu era casada há 7 anos, amava meu marido e sonhávamos com um filho que fosse parecido com a gente. Já tínhamos uma filha, que era adotada, mas queríamos outro, dessa vez, biológico. Não conseguíamos engravidar por vias naturais, então fomos a duas clínicas de reprodução assistida e recomendaram que meu marido fizesse uma pequena cirurgia para corrigir um problema, mas homem sempre tem medo de mexer em suas ‘partes’ e ele se negou. Nossa terceira tentativa nos levou à clínica do Roger Abdelmassih, um profissional conceituado no ramo que já tinha engravidado várias celebridades, então julguei que a chance de sucesso era maior. Eu estava muito focada no meu objetivo e só via os meus bebês. Na consulta ele fazia com que eu me sentisse grávida e rebatia tudo o que os outros médicos haviam dito. O Roger me garantiu que eu sairia dali grávida. Para ele, nada era problema! Eu já conseguia sentir o cheiro dos bebês e perguntava:
.
– Você já tem nomes para as crianças?
– Crianças? Mas eu pensava que era uma só.
– Você vai sair daqui com gêmeos!
.
Saímos de lá pensando até com os apelidos em mente. Visualizávamos os bebês e dávamos personalidade a este sonho.
.
O preço, naquela época, equivalia a um apartamento na praia e a gente tinha este dinheiro justamente para comprar um imóvel no litoral. Ele nos colocou contra a parede: ‘Você prefere ver o mar ou o sorriso dos seus filhos?’. Claro que eu optei pelos meus meninos!
.
Saímos de lá direto do banco e fechamos três tentativas de fertilização. Sim, três! Ele praticamente exigia estas três tentativas para tirar o compromisso psicológico de engravidar. Às vezes me sinto uma idiota por não ter percebido. Ele me preparava para ter até quadrigêmeos e eu visualizava tudo como se estivesse grávida.
.
.
.
De acordo com o roteiro pré-estabelecido, eu tinha de ir lá na clínica para tomar injeções de hormônio diárias para ajudar no tratamento. Na primeira tentativa, tomei altas doses e tomava anestesia para fazer o procedimento porque é muito doloroso. Estava numa alegria imensa porque seria mãe. Meus olhos brilhavam, mas não vingou. Na segunda cheguei a engravidar, mas perdi no estágio inicial. Na terceira, eu voltei a tomar a anestesia e ele me chamou para a sala de inseminação – a qual chamava de ‘a sala do pintor’, onde daria o retoque final. Tomei um relaxante para me tranquilizar, comecei a orar e apaguei.
.
Quando acordei, não abri o olho, fiquei lúcida, mas imóvel. Não conseguia mexer nada, nem falar uma palavra. Eu senti algo estranho, minha mente estava confusa e cheguei a pensar que era um sintoma da gravidez. Ao abrir o olho, vi tudo: um monstro em cima de mim me violentando. Ele me virava e eu não conseguia voltar. Fez sexo anal, vaginal, lambia meu rosto e fazia tudo o que queria comigo. Eu não conseguia me mover.Quando terminou de fazer o que queria, eu o vi indo para o banheiro. Estava em choque. Quando consegui me mexer, comecei a vestir a minha roupa e saí. Desci as escadas meio atropelada, uma enfermeira me perguntou o que eu tinha e respondi ‘eu fui violentada’. Ela não acreditou em mim.
.
Peguei um táxi na rua. Eu estava suja, assustada e desabafei com o motorista que me levou diretamente à delegacia. Contei tudo em um boletim de ocorrência e o delegado me disse que eu estava delirando.
.
– Ele é o médico das estrelas. Jamais faria isso.
.
Insisti para que o Boletim de Ocorrência fosse feito, ele o fez e me mandou ir para casa sem fazer o exame de corpo de delito. Não sabia que tinha de fazer isso.
.
.
Fui para o banho, me lavei, me feri inteira enquanto me esfregava, em todas as partes do corpo. Esfregava, esfregava e esfregava. Queria tirar o cheiro dele de mim.
.
Contei tudo a uma vizinha que me deu um calmante porque eu pensava em me jogar do 21º andar. Eu tinha medo de contar ao meu marido e ele querer matar o Roger. Fiquei perdida! Fiquei à base de calmantes por dias.
.
Após o trauma, comecei a sentir dores terríveis na região da barriga. Eu achava que poderia estar grávida e estaria abortando, então coloquei uma bolsa de água quente para melhorar. Pouco tempo depois, começou a verter pus pela minha vagina, umbigo e tinha febre muito alta. Fui para o hospital e estava quase com uma infecção generalizada. Quando ele me estuprou por via anal, levou uma bactéria do ânus para a vagina que estava completamente sensibilizada por conta da inseminação. Como eu havia tomado um remédio para estimular a reprodução dos embriões, essa bactéria foi parar no ovário que a reproduziu. Em sete dias ela se proliferou pelo meu organismo.
.
Muito medicada e passei por uma cirurgia uma semana depois. Perdi trompas, ovários e minhas esperanças de ter um filho biológico. Não tinha jeito. Perdi tudo! Saí do hospital depois de 15 dias com um dreno, mas voltei para lá porque tive uma nova complicação. Me curei, procurei um advogado, fiz um exame de corpo de delito tardio para analisar minhas perdas e passei por uma perícia. Fiz tudo o que eu poderia e descobri que meu primeiro boletim de ocorrência sumiu da delegacia. Se hoje existe corrupção, naquela época era pior ainda.
.
Desisti da carreira de estilista, não queria mais desenhar roupas sexy, passei a culpar minha beleza e minha simpatia pelo que aconteceu. Comecei a me penalizar e comer muito para ficar feia. Cheguei a pesar 150 kg. Não ia mais a consultas médicas, deixei de visitar amigos, não ia mais à rua, me tranquei dentro de casa e fiquei ali dentro por quatro anos, sem sair nem na portaria, até que me tranquei dentro do quarto. Eu não tinha remorso, mas sentia culpa. Não entendia como ninguém mais denunciou isso. Achava que era só comigo.
.
.
.
Anos mais tarde, em 2009, houve uma avalanche de denúncias contra ele, peguei aquela minha cópia do BO, levei ao Departamento de Polícia e a delegada ficou em choque que eu já havia denunciado e nada havia sido feito. Ela me alertou que a imprensa queria entrevistar vítimas, mas o Roger havia dito que as ‘vítimas não tinham rosto’. Eu não sou covarde e o enfrentei. Relatei minha história à revista Época e apareceram vários outros casos.
.
Ele foi condenado a 278 anos de prisão, mas o meu caso já estava prescrito e só o meu depoimento teve valor. Depois de tudo isso, em 2011, ele foi solto, fugiu e fiquei com medo de novo. Não acreditei.
.
Depois de tudo isso, hoje eu vejo que eu deveria ter olhado mais para a minha filha. Ela foi gerada no ventre da minha alma e é quem colore a minha vida. Estava na minha frente e eu não via. Ela é o cheirinho de bebê que eu tanto buscava. Agora eu tenho uma neta que cheira bebê! Tudo estava ali. Também criei um grupo, que a princípio era, Vítimas de Roger Abdelmassih, ganhou grandes proporções, passou a se chamar Vítimas Unidas e ajuda todo tipo de pessoas que foram violentadas. Somos em 130 mil que se ajudam. Cada sorriso que eu ganho é como se eu tivesse parindo uma nova criança. É muito bom aliviar a dor de alguém.”
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
..