Saiu no site DIREITO PENAL EM CONTEXTO:
Veja publicação original: Estupro virtual
Contexto
Olá pessoal!
No mês de agosto de 2017 foi exaustivamente divulgado no meio jurídico que um juiz do Piauí havia decretado a prisão temporária de um homem pelo fato de ele ter praticado “estupro virtual”, isto é, de ter praticado o crime do art. 213 do Código Penal por meio da internet (veja aqui a notícia e aqui imagens da decisão ).
No caso, o ex-namorado da vítima tinha fotos íntimas dela, montou um perfil falso no Facebook e, a partir de tal perfil, entrou em contato com a vítima. A partir daí, ele ameaçou divulgar tal material caso ela não produzisse vídeos de si mesma se masturbando e introduzindo objetos na vagina, devendo ela, ainda, remeter tais vídeos a ele.
Texto
Nos últimos anos, uma série de novas práticas relacionadas às tecnologias atuais de comunicação modernas foram adotadas.
Um desses fenômenos é o sexting, termo em inglês que se referia originalmente ao envio de mensagens de texto de cunho sexual, mas que, atualmente, se refere à prática de mandar imagens ou vídeos de cunho sexual ou íntimo (nudes, por exemplo) por meio smartphones ou outros dispositivos eletrônicos.
Esse termo, aparentemente, foi usado pela primeira vez em 2004 para se referir a mensagens trocadas entre o jogador David Beckham e uma assistente.
Um estudo de 2012, que teve como objeto um grupo de pessoas de 18 anos de idade, indicou que 30% delas, durante o ensino médio, já haviam enviado nudes a alguém pelo menos uma vez.
Essa amplitude do fenômeno, torna o sexting um campo fértil para a prática de alguns crimes, em especial, crimes contra a honra, extorsão e estupro.
A primeira questão que deve ser abordada em relação ao tema “estupro virtual” é a seguinte: é necessário haver contato físico entre autor e vítima para que se perfaça o crime de estupro?
1. Desnecessidade de contato físico entre autor e vítima para que se configure o crime de estupro
Não é necessário que autor e vítima mantenham contato físico para que o crime de estupro se configure.
Em 2016 o Superior Tribunal de Justiça (STJ), julgou um caso do Estado do Mato Grosso (Recurso em Habeas Corpus – RHC 70976/MS) em que uma criança de dez anos de idade foi levada por mulheres (cafetinas) a um motel.
Lá, elas a despiram e a expuseram nua a um homem, que havia pago R$ 400 pelo encontro, a fim de contemplar lascivamente a criança sem roupas.
O homem foi denunciado por estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal Brasileiro – CPB), mas a defesa alegou que, visto que não houve contato físico entre autor e vítima, não seria possível a ocorrência de tal crime.
O caso chegou ao STJ por meio do RHC 70976 / MS e o relator Joel Ilan Paciornik (veja aquio relatório e voto) negou provimento ao RHC e considerou que não há necessidade de contato físico entre autor e vítima para que se configure o estupro, pois “a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física” e que “a maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado […] constitui matéria afeta à dosimetria da pena”.
A par da decisão do STJ, deve-se destacar que a maior parte dos autores de direito penal consideram que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal[1].
2. Estupro virtual
A desnecessidade de contato físico entre autor e vítima para que se configure o crime de estupro é o fundamento que permite a prática desse crime por meio da internet.
Ora, se o STJ considerou (RHC 70976 / MS) que configura ato libidinoso contemplar o corpo nu de uma criança em um quarto de motel, mediante paga, tendo aquela sido transportada por, em tese, cafetinas, então com muito mais razão configura a prática de ato libidinoso exigir via internet que uma mulher pratique atos sexuais diante de uma webcam sob a grave ameaça de ter seus vídeos íntimos publicados.
Nos casos de estupro virtual, são satisfeitos todos os requisitos previstos pelo art. 213 do Código Penal, para que o crime de estupro se configure. Veja a redação desse tipo penal.
Código Penal
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
A partir da redação do art. 213, extrai-se que o crime de estupro se perfaz quando o autor, mediante violência ou grave ameaça, constrange a vítima:
- a ter conjunção carnal;
- ou a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal (“outro ato libidinoso”);
- ou a permitir que com ela seja praticado ato libidinoso diverso da conjunção carnal (“outro ato libidinoso”).
No caso em que o autor, ameaçando divulgar vídeo íntimo da vítima, a constrange, via internet, a se automasturbar ou a introduzir objetos na vagina ou no ânus, tem-se estupro, pois a vítima, mediante grave ameaça, foi constrangida a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Portanto, o estupro virtual configura-se quando o autor se vale da internet para praticar em desfavor da vítima a conduta descrita no art. 213 do Código Penal.
Estupro virtual e autoria mediata
Como exposto, não é necessário contato físico entre autor e vítima para que se configure o crime de estupro.
Tem-se, então, no estupro virtual, hipótese de autoria mediata, a qual ocorre quando o autor se vale de outras pessoas para a execução do delito.
Uma das possibilidades de ocorrência da autoria mediata é, justamente, a coação moral irresistível. Observe a redação do art. 22 do Código Penal.
Código Penal
Art. 22. Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.
Grave ameaça no estupro virtual
Uma questão que pode ser levantada no estupro virtual é a seguinte: há, de fato, grave ameaça quando o autor avisa ou sinaliza que irá divulgar vídeos íntimos da vítima caso ela não se automasturbe ou introduza objetos em cavidades corporais?
De fato, o adjetivo “grave” que qualifica é um elemento normativo do tipo, ou seja, é um elemento que que atribui um valor à ação de ameaçar e, por consequência, exige que o juiz promova uma valoração na avaliação do caso concreto.
A “grave ameaça” não é elemento normativo exclusivo do estupro, estando presente também, no Código Penal, por exemplo, nos crimes de constrangimento ilegal, tráfico de pessoas, roubo, extorsão e outros.
Como todo elemento normativo de um tipo penal, o que vem a ser “grave ameaça” está sujeito a algum grau de discricionariedade do órgão julgador.
No Recurso Especial (REsp) 1.299.021-SP, o STJ, por exemplo, considerou que a ameaça de causar um “mal espiritual” contra a vítima pode ser considerada como “grave ameaça” para fins de configuração do crime de extorsão (STJ. 6a Turma. REsp 1.299.021-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2017 – Info 598).
Em outro caso (REsp 1.207.155), o STJ decidiu que a promessa de destruir bem da vítima configura “grave ameaça” para fins de extorsão.
Nesse caso, o relator, citando Nelson Hungria, apontou que vários são os bens jurídicos da vítima que podem ser atingidos pela promessa da ocorrência do mal: a vida, a integridade física, a honra, a reputação, o renome profissional ou artístico, o crédito comercial, o equilíbrio financeiro, a tranquilidade pessoal ou familiar, a paz domiciliar, a propriedade de uma empresa, em suma: todo bem ou interesse cujo sacrifício represente, para o respectivo titular, um mal maior que o prejuízo patrimonial correspondente à vantagem exigida pelo extorsionário.
Tais standards do STJ, portanto, levam à segura conclusão de que sinalizar a uma mulher que seus vídeos íntimos serão divulgados a amigos, parentes ou mesmo a desconhecidos configura, efetivamente, grave ameaça.
Da mesma forma, no Supremo Tribunal Federal (STF), há precedente de 2005 (HC 85.674-8) em que o tribunal apreciou o caso de um homem que, de posse de uma fita de vídeo que mostrava uma jovem de 16 anos tendo relação sexual com o namorado, a estuprou sob a ameaça de divulgação do conteúdo da gravação . Nesse HC, o relator, ministro Joaquim Barbosa, considerou que, de fato, “houve o emprego de grave ameaça contra a menor, consistente na ameaça de divulgação do vídeo”.
Para ilustrar essa questão da “grave ameaça”, observe-se, por exemplo, o caso da canadense Amanda Todd.
Amanda não cedeu às ameaças de ter foto íntima sua publicada. O agressor cumpriu a ameaça, publicou a foto e o caso culminou com o suicídio de Amanda. Veja aqui o relato da própria Amanda Todd.
Em resumo, a promessa de causar dano irreparável à honra e à imagem da mulher configura “grave ameaça” para fins penais, em especial, no que tange à configuração dos crimes de estupro na modalidade virtual e extorsão.
Para saber mais sobre o impacto do estupro virtual acesse esse artigo.
Casos
O caso do Piauí mencionado no contexto de hoje foi o primeiro de que se tem notícia no Brasil em que uma decisão judicial menciona o estupro virtual.
Um segundo caso de decretação de prisão temporária pela prática de estupro virtual ocorreu no Distrito Federal (veja aqui a notícia)
Nesse caso, o autor se passava por uma mulher em aplicativos de redes sociais, entrava em contato com outras mulheres e enviava a elas vídeos e fotos íntimos da mulher pela qual se passava. Ao receberem tais vídeos, as mulheres, por seu turno, se sentiam confiantes para enviar a ele vídeos íntimos. De posse de tais vídeos íntimos e ameaçando divulgá-los, o autor exigia que as vítimas enviassem a ele fotos/vídeos em que elas se masturbassem ou introduzissem objetos no ânus ou cavidade vaginal.
Em que pese esses dois casos, não há ainda, no direito brasileiro, nenhuma condenação por estupro virtual.
No direito comparado, no entanto, há diversas decisões envolvendo casos de estupro virtual.
Na jurisprudência estadunidense destaca-se o caso United States v. Tremain Hutchinson.
Hutchinson foi acusado de extorquir 16 vítimas menores e coagi-las a praticar atos sexuais, ameaçando divulgar vídeos íntimos que recebeu delas. Entre as vítimas, havia três que foram obrigadas por Hutchinson a praticar atos sexuais com os irmãos, a filmar tais atos e a enviar os vídeos a ele (veja aqui a confirmação da sentença que condenou Hutchinson à prisão perpétua.
Outro exemplo é o caso United States v. Mijangos. Em 2011, uma corte de Los Angeles condenou Luis Mijango a 6 anos de prisão por ter hackeado dúzias de computadores de adolescentes, se apropriado de imagens delas nuas e de ter se valido dessas imagens para chantegeá-las e delas conseguir novas fotos/vídeos íntimos.
Mijangos, quando foi preso, possuía arquivos de 230 vítimas, das quais 44 eram menores, devendo ser destacado que seu esquema tinha vítimas até na Nova Zelândia (o artigo citado anteriormente traz mais detalhes sobre esse caso).
Por fim, pode-se citar United States v. Nicholas Glenn Wilcox. Nesse caso, Nicholas Glenn Wilcox criou um perfil falso (fake) no Facebook, no qual ele fingia ser uma garota de 15 anos de idade. Por meio desse perfil, ele começou a se comunicar com um garoto de 16 anos e, durante as conversas, enviou a ele fotos íntimas de uma menina que o garoto acreditava ser a menina com quem conversava. Em troca, Wilcox pediu fotos íntimas do garoto. De posse dessas fotos e ameaçando divulga-las, Wilcox passou a exigir que o garoto introduzisse uma escova de dentes no ânus e se masturbasse diante de uma câmera e lhe enviasse fotos/vídeos de tais atos (veja aqui).
Entretanto, embora a jurisprudência americana seja muito mais rica em casos desse tipo do que a brasileira, a justiça por lá tem dificuldade de fazer a adequação típica dessas condutas, de forma que as condenações ocorrem pelos crimes de stalking (veja aqui post sobre isso), crimes cibernético, extorsão ou pornografia infantil, mas não por estupro.
Em face de tal dificuldade, há propostas legislativas nos Estados Unidos para que seja tipificado o crime de sextorsion (veja aqui um artigo).
Diferença entre estupro virtual e sextorsion
Por fim, última questão deve ser abordada: estupro virtual e sextorsion são sinônimos?
O termo sextorsion é, na maioria das vezes em que é citado, associado ao estupro virtual.
Benjamin Wittes, Cody Poplin, Quinta Jurecic & Clara Spera, no já citado artigo, conceituam sextorsion como sendo a extorsão praticada por meio da internet envolvendo a ameaça (geralmente, mas não sempre) de divulgar vídeos/fotos íntimos da vítima caso ela não pratique atos sexuais exigidos pelo autor.
Trata-se, em última análise, do estupro virtual.
Contudo, numa tradução literal, sextorsion é a extorsão sexual.
Mas a utilização do termo sextorsion para designar o estupro virtual é imprópria no caso específico do direito brasileiro, por alargar o conceito de extorsão até o ponto em que ele se sobrepõe ao conceito de estupro.
Vejamos.
Por um lado, o uso do termo sextorsion é adequado para casos em que o agente exige vantagem econômica para não divulgar vídeos íntimos da vítima, já que, nesse caso, tem-se efetivamente o crime de extorsão.
Contudo, por outro lado, o uso do termo sextorsion é juridicamente inadequado para casos em que o agente exige que vítima pratique atos sexuais contra sua vontade para não divulgar vídeos íntimos dela. Isso porque, nesse último caso, a não exigência de vantagem econômica afasta a configuração da extorsão e a prática de ato libidinoso sob grave ameaça faz incidir o crime de estupro (no caso, estupro virtual).
Portanto, para o direito brasileiro, o uso do termo sextorsion como sinônimo de estupro virtual é inadequado.
3. Conclusão
Conclui-se, então, que o estupro virtual se configura quando a “grave ameaça” para constranger alguém a praticar ato libidinoso é empreendida por meio da internet.
Contudo, o tema é polêmico e a adequação típica é objeto de discussão, chegando ao ponto de, como mencionado, alguns autores defenderem que o sextorsion (leia-se: estupro virtual) seja objeto de um crime específico.
Deve-se, portanto, aguardar novos posicionamentos dos tribunais e ter em tela que há entendimento diverso no sentido de que não é possível subsumir o “estupro virtual” ao art. 213 do Código Penal (veja aqui um exemplo).
Bem, é isso por hoje. Bons estudos!
Como citar este texto:
GUIMARÃES, André Santos. Estupro Virtual. Disponível em: . Acesso em: dd.mm.aa.
[1] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte especial. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 460.
MASSON, Cleber. Código Penal comentado, 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; Sao Paulo: Método, 2014. p. 825.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2 , p. 601 apud GRECO,Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 12a. ed. Niterói: Impetus, 2015, p. 468.