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Veja publicação original: Especialista em Direito da Família, advogada feminista relata desafios de levar questões de gênero para área jurídica
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Formada pela Ucsal, Mariana Régis passou a advogar apenas para mulheres após ter que representar um homem que se recusava a pagar pensão à filha.
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Por Itana Alencar
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“Nossa formação acadêmica é muito alienadora em relação às desigualdades de gênero, e é fácil notar isso quando representamos mulheres”. É com essa frase que a advogada baiana Mariana Régis, especializada em Direito da Família, registra os desafios de levar questões de gênero e feminismo para a área jurídica.
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Formada pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador (Ucsal), Mariana passou a advogar apenas para mulheres, após ter que representar um homem que se recusava a pagar a pensão no valor devido para a filha.
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“Ele ocultava vencimentos e me pedia orientações sobre como fazê-lo pagar o mínimo, embora eu tentasse conscientizá-lo a todo tempo das suas obrigações”, lembra
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“Quando me vi usando meu conhecimento para reforçar o machismo e a violência contra uma mulher, percebi que não teria outra possibilidade de advogar, se não fosse a favor da liberdade e contra a cultura de irresponsabilidade paterna”.
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Hoje, a advogada analisa as questões de Direito da Família a partir de uma perspectiva feminista, com duas frentes que se sobrepõem: a individual e a política.
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“Encaro meu trabalho defendendo mulheres como um trabalho de cuidado e de fortalecimento. Oriento minuciosamente a respeito dos seus direitos, pois assim não serão facilmente manipuladas ou se tornarão reféns de ameaças de ex-companheiros. Faço questão que elas conheçam cada passo que dou na ação delas também”, defende.
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“Nos casos de disputa por pensão de filhos, tenho como missão batalhar pela autonomia financeira e fim da violência. Negar os alimentos devidos para filhos, abandoná-los materialmente é crime e violência patrimonial contra a mulher”
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‘Negar os alimentos devidos para filhos, abandoná-los materialmente é crime e violência patrimonial contra a mulher’, diz a advogada — Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Mariana Régis explica ainda que muitas mães que entram em processo de pedidos de pensão sofrem violência psicológica. Elas são ameaçadas com pedidos de guarda unilateral [quando só um dos pais fica com a criança] caso ingressem com ações de alimentos, por exemplo.
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“Elas me buscam com a autoestima bastante comprometida. Costumo indicar suporte terapêutico sempre. Mulheres equilibradas emocionalmente e autoestimadas costumam resistir aos longos processos judiciais com mais saúde para não desistir dos seus direitos”, avalia.
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“Na dimensão política, encaro a defesa das mulheres com uma contribuição para uma cultura jurídica e social que nos liberte da opressão sexista”
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A advogada conta ainda que, sempre que faz a defesa de uma mãe que passa por esse tipo de caso, ela procura mostrar a situação da mulher. “A sua sobrecarga e inúmeras renúncias afetivas e profissionais advindas da irresponsabilidade paterna, o valor do trabalho doméstico e de cuidado, dentre outras questões invisibilizadas social e juridicamente”, enumera.
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Empatia e escuta
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‘Responsabilidade é muito grande, afinal acompanho estas mulheres nos momentos mais delicados das suas vidas’, destaca — Foto: Juh Almeida
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Filha de uma psiquiatra e um advogado, Mariana Régis acredita que mulheres que travam processos familiares na Justiça precisam ser acompanhadas pelas duas áreas, para que tenham suporte legal e psicológico durante a ação.
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“Ser uma advogada que representa outras mulheres requer muita sensibilidade e capacidade de escuta ativa. Não julgar, não dar conselhos, validar o relato de angústia e de dor – ainda que eu jamais tenha experimentado algo semelhante – são compromissos inafastáveis em meus acompanhamentos”, pontua ela.
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Para a advogada, a escuta ativa tem que ser qualificada, o que significa dizer que o profissional precisa ser capaz de identificar as opressões que a mulher está sofrendo, ainda que ela não verbalize.
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Com isso, a prática da empatia e da escuta acabam fazendo parte do trabalho dela, que faz questão de afirmar que não atua como psicóloga. “É preciso estar atenta à sua subjetividade durante todo o processo. A responsabilidade é muito grande, afinal acompanho estas mulheres nos momentos mais delicados das suas vidas”, destaca.
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“A partir da escuta, eu formulo teses jurídicas, eu apresento estratégias mais viáveis para o enfrentamento do seu caso, eu não promovo terapia. O caminho terapêutico é único e muito complexo”
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Desafios
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Especialista em Direitos das Famílias, advogada feminista relata desafios das questões de gênero na área jurídica — Foto: Reprodução/Redes Sociais
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Com a escolha de trabalhar por um programa feminista no meio jurídico, a advogada enfrenta desafios que vão desde a escolha ideológica, que vai na contramão do que é estabelecido como norma, às estigmatizações de quem começa a visibilizar questões de gênero – e muitas vezes de raça – que poucos vêem.
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“A cultura de violência doméstica no judiciário é institucional. Então, ao mexer com estes temas, desafia-se uma ordem solidificada e defendida por muitos homens brancos desde sempre. E são estas pessoas que vão julgar as ações que participamos”, argumenta Mariana.
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Outro ponto de dificuldade enfrentado pela advogada é a falta de referências bibliográficas que abordem temas relacionados ao Direito da Família com a perspectiva feminista de humanização das mulheres.
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“Nós, que atuamos na área, começamos timidamente a nos articular em rede para compartilharmos material e vivências, o que eu acho essencial. Mas, a maior parte dos seminários tradicionais de Direito da Família do país não contempla a perspectiva feminista, por exemplo. Então nossa fala fica muito restrita aos ambientes onde o tema já tem aceitação”, pondera.
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“O mundo jurídico, composto em boa parte por mulheres, especialmente jovens advogadas, parece estar ávido em assumir o compromisso de bater às portas do judiciário para que ele proteja quem é institucionalmente violentado, seja pela lei, seja na realidade da vida”
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Apesar do avanço lento, Mariana acredita que o judiciário tem progredido nas questões relacionadas à humanização das mulheres nos processos de família — Foto: Juh Almeida
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Apesar do avanço lento, Mariana acredita que o judiciário tem progredido nas questões relacionadas à humanização das mulheres nos processos de família. Embora, para ela, falte capacitação dos profissionais das varas das famílias.
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“É muito mais lento do que gostaríamos, mas começo a ver pareceres de promotoras falando em renúncias afetivas e profissionais da mãe, em razão do conflito com o pai. Processos estagnados há mais de 10 anos sendo resolvidos devido à alegação de que a ação em si representa a continuidade do ciclo de violência contra a mulher”, exemplifica.
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“Falta compromisso em exigir que professores abordem perspectiva de gênero, ao ensinarem Direito da Família. Não apenas corrigindo os problemas atuais, mas investindo em profissionais capacitados, para enfrentar conflitos com a marca da opressão sexista no futuro”
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Se a luta das mulheres que buscam direitos familiares costuma ser solitária, o trabalho feito por Mariana também reflete nesse ponto.
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“Me sinto muito sozinha fazendo advocacia feminista nas varas das famílias, embora tenha várias colegas atuando neste front. Então, quando eu comecei a trazer o programa feminista para as minhas petições, eu não tinha um modelo para observar, eu não sabia se ia dar certo, não me sentia à vontade para conversar a respeito com colegas”, reflete.
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“Muita gente acredita que o tema da violência pertence apenas ao universo da seara criminal. Inclusive boa parte dos juízes das varas das famílias, que não são capacitados para identificar e fazer cessar a violência sexista nas relações conflituosas que julgam”.
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Mariana relata ainda o apoio que recebe de colegas homens. “Colegas das outras áreas demonstram admiração pela bandeira levantada, mas quase sempre têm uma necessidade muito grande em dizer ‘nem todo homem’, ou me contar de algum caso de uma mulher desonesta brigando na vara das famílias contra um pobre homem”.
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Violência institucional
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Advogada feminista relata desafios das questões de gênero na área jurídica — Foto: Reprodução/Redes Sociais
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A advogada Mariana Régis considera que a cultura de violência contra a mulher é institucional das varas das famílias. Segundo ela, os tipos mais comuns nos processos são: a patrimonial e a psicológica.
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“Negar o sustento de uma criança condenando sua mãe à sobrecarga e miséria é violência. E não é fácil trazer este entendimento para os tribunais das Famílias. Não ter um judiciário capacitado para analisar as questões de gênero, que atravessam as ações de família recorrentemente talvez seja a maior dificuldade que eu enfrente”.
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“É nas varas das famílias que a violência contra as mulheres adquire ares de refinamento, pois os homens utilizam o próprio processo como uma forma de continuar violentando a mulher. Mas, ninguém fala disso. Claro, no imaginário coletivo, uma boa mãe suporta tudo pelos filhos”
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Com a inquietude de se sentir sozinha enquanto advogada familista, Mariana Régis criou um programa de Feminismo Jurídico, que aborda principalmente a socialização do saber, da experiência e das estratégias de enfrentamento ao machismo no sistema de Justiça.
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A ideia é multiplicar profissionais que tenham interesse na luta antimachista e antirracista, para ocupar o judiciário de forma capacitada, e oferecer acompanhamento e representação jurídica a mulheres de uma outra forma.
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“O programa foi elaborado com base na minha experiência prática, que passou – e passa – por erros e acertos. Afinal, a teoria é necessária para orientar a nossa ação, mas é a práxis [ação] jurídica que consolida o feminismo como um ativismo capaz de transformar o Judiciário – e a vida das pessoas”.
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“Sem reforço de machismo e opressão, tão comuns no nosso meio. Uma representação atenta às especificidades das mulheres. E com consciência da dimensão política de cada causa que abraçamos”.
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