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Veja publicação original: Entre a proteção da mulher e do sistema financeiro: dois pesos e duas medidas
Dois diplomas legais publicados recentemente chamam a atenção pela posição conflitante entre ambos. Inicialmente, a Lei 13.805, publicada em 8 de novembro, que alterou a Lei Maria da Penha, teve seu artigo 12-B vetado. O dispositivo apresentava a seguinte redação:
Art. 12-B. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de seus dependentes, a autoridade policial, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o agressor.
§ 1º O juiz deverá ser comunicado no prazo de 24 (vinte e quatro) horas e poderá manter ou rever as medidas protetivas aplicadas, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo.
§ 2º Não sendo suficientes ou adequadas as medidas protetivas previstas no caput, a autoridade policial representará ao juiz pela aplicação de outras medidas protetivas ou pela decretação da prisão do agressor.
Nas razões do veto, cabe destacar:
“Os dispositivos, como redigidos, impedem o veto parcial do trecho que incide em inconstitucionalidade material, por violação aos artigos 2º e 144, § 4º, da Constituição, ao invadirem competência afeta ao Poder Judiciário e buscarem estabelecer competência não prevista para as polícias civis”.
Pois bem, o diploma legal imediatamente posterior (Lei 13.506, de 13 de novembro de 2017), que “dispõe sobre o processo administrativo sancionador na esfera de atuação do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários”, traz, em sua Seção V, sob o título “Das Medidas Coercitivas e Acautelatórias”, um amplo rol de medidas que cabe aqui ser transcrito na íntegra:
Art. 16. Poderão ser aplicadas às pessoas de que trata o art. 2º desta Lei as seguintes medidas e obrigações:
I – a prestação de informações ou esclarecimentos necessários ao desempenho de suas atribuições legais;
II – a cessação de atos que prejudiquem ou coloquem em risco o funcionamento regular de pessoa mencionada no caput do art. 2º desta Lei, do Sistema Financeiro Nacional, do Sistema de Consórcios ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro; e
III – a adoção de medidas necessárias ao funcionamento regular de pessoa mencionada no caput do art. 2º desta Lei, do Sistema Financeiro Nacional, do Sistema de Consórcios ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro.
Art. 17. Antes da instauração ou durante a tramitação do processo administrativo sancionador, quando estiverem presentes os requisitos de verossimilhança das alegações e do perigo de mora, o Banco Central do Brasil poderá, cautelarmente:
I – determinar o afastamento de quaisquer das pessoas mencionadas no inciso III do § 1º do art. 2º desta Lei;
II – impedir que o investigado atue — em nome próprio ou como mandatário ou preposto — como administrador ou como membro da diretoria, do conselho de administração, do conselho fiscal, do comitê de auditoria ou de outros órgãos previstos no estatuto ou no contrato social de instituição mencionada no caput do art. 2º desta Lei;
III – impor restrições à realização de determinadas atividades ou modalidades de operações a pessoa mencionada no caput do art. 2º desta Lei; ou
IV – determinar à instituição supervisionada a substituição:
a) do auditor independente ou da sociedade responsável pela auditoria contábil; ou
b) da entidade responsável pela auditoria cooperativa.
§ 1º Desde que o processo administrativo sancionador seja instaurado no prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da data da intimação da decisão cautelar, as medidas mencionadas neste artigo conservarão sua eficácia até que a decisão de primeira instância comece a produzir efeitos, podendo ser revistas, de ofício ou a requerimento do interessado, se cessarem as circunstâncias que as determinaram.
§ 2º Na hipótese de não ser iniciado o processo administrativo sancionador no prazo previsto no § 1º deste artigo, as medidas cautelares perderão automaticamente sua eficácia e não poderão ser novamente aplicadas se não forem modificadas as circunstâncias de fato que as determinaram.
§ 3º A decisão cautelar estará sujeita a impugnação, sem efeito suspensivo, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 4º Da decisão que julgar a impugnação caberá recurso, em última instância, ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.
§ 5º O recurso de que trata o § 4º deste artigo será recebido apenas com efeito devolutivo e deverá ser interposto no prazo de 10 (dez) dias.
Art. 18. O descumprimento das medidas previstas nesta Seção sujeitará o infrator ao pagamento de multa cominatória por dia de atraso, a qual não poderá exceder o maior destes valores:
I – 1/1.000 (um milésimo) da receita de serviços e de produtos financeiros mencionada no inciso I do caput do art. 7º desta Lei; ou
II – R$ 100.000,00 (cem mil reais).
§ 1º A multa de que trata o caput deste artigo será paga mediante recolhimento ao Banco Central do Brasil, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da intimação para pagamento.
§ 2º A decisão que impuser multa cominatória, se não estiver sujeita à impugnação e ao recurso de que tratam os §§ 3º e 4º do art. 17 desta Lei, estará sujeita a impugnação, sem efeito suspensivo, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 3º Da decisão que julgar a impugnação caberá recurso, em última instância, no âmbito do Banco Central do Brasil.
§ 4º O recurso de que trata o § 3º será recebido apenas com efeito devolutivo e deverá ser interposto no prazo de 10 (dez) dias.
As medidas protetivas previstas no artigo 12-B, objeto de veto, são as seguintes:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
(…)
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
(…)
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
Assim, a lógica dos dispositivos vetados era ampliar a proteção à mulher vítima de violência doméstica, permitindo à autoridade policial, no caso de “risco atual ou iminente à vida ou à integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de seus dependentes”, a aplicação provisória de algumas medidas protetivas, com submissão imediata ao Poder Judiciário para ratificação.
As razões do veto indicam a violação à independência entre os Poderes e a função da polícia judiciária.
Por outro lado, ao tratar do procedimento sancionador no âmbito do Banco Central e da CVM, permitiu-se medidas mais gravosas, que podem perdurar por longo período de tempo, sem qualquer apreciação judicial. Veja-se que a medida deve se sustentar por 120 dias para aguardar simples instauração do processo administrativo e assim perdurar pela sua duração, independentemente de qualquer manifestação judicial.
Enquanto isso, conforme bem alertou Henrique Hoffmann em artigo publicado nesta coluna:
Completados dez anos de sanção da Lei Maria da Penha, todavia, não se verificou uma efetiva proteção às mulheres vítimas da violência de gênero. Muito por conta da sistemática original da norma, que estabeleceu a exclusividade da concessão de medidas protetivas pelo magistrado, da seguinte forma: a vítima terá que esperar até 96 horas para contar com a deliberação judicial (artigos 12, III e 18, I); após o deferimento, o agressor ainda precisa ser intimado da decisão, o que pode demorar semanas ou meses, se tudo der certo e o suspeito não fugir.
O caótico cenário da mulher vítima de violência doméstica foi bem explicitado no Relatório Final da CPMI da Violência Doméstica[1], em suas mais de mil páginas, onde o tema do binômio celeridade x morosidade é abordado em inúmeras passagens.
Henrique Hoffmann, ainda sobre o tema da morosidade da aplicação dessas medidas protetivas, também publicado na ConJur, cita que:
Os prejuízos da excessiva burocratização do procedimento podem ser aferidos na prática. As constatações feitas pelo relatório final da CPMI da Violência Doméstica, baseadas em relatório de auditoria do TCU, revelam que a insuportável morosidade na proteção da vítima não é exceção, mas a regra. A depender da região, o prazo para a concessão das medidas é de 1 a 6 meses, “tempo absolutamente incompatível com a natureza mesma desse instrumento”, a impor “medidas cabíveis para a imediata reversão desse quadro”.
Por outro lado, o que se observou é que, embora a cautelaridade em ações do Poder Executivo possa ser exemplificada em diversas situações, como bem coloca Ruchester Marreiros Barbosa também em texto publicado na coluna:
Na esfera do Poder Executivo, além da possibilidade doutrinária não faltam exemplos no ordenamento jurídico nacional, como na Lei 8.112/90, artigo 147; Lei 8.906/94 (EOAB): artigo 70, parágrafo 3º; Lei 9.472/97, artigo 175, parágrafo único; Lei 9.784/99, artigo 45; Lei 12.529/11, artigo 84; Lei 12.846/13, artigo 10, parágrafo 2º; e Lei 9.613/98, artigo 17-D, que respaldam um sistema de cautelaridade ou autoexecutoriedade no âmbito administrativo.
Veja-se a discrepância no tratamento dos temas em dois diplomas legais sancionados com cinco dias de diferença: no primeiro, que visava garantir proteção mais efetiva à mulher, teve tal garantia vetada sobre o argumento de violar a repartição de Poderes; no segundo, que tutela o sistema financeiro nacional e o mercado de capitais, apresenta dispositivos cautelares extremamente gravosos e foi sancionado sem qualquer veto.
Pois bem, nesse contexto, chama a atenção a observação de Francisco Sannini Neto[2], no sentido de que:
Salto aos olhos, nesse contexto, a figura do delegado de polícia como o primeiro garantidor dos direitos e interesses da mulher vítima de violência doméstica e familiar, afinal, esta autoridade está à disposição da sociedade vinte e quatro horas por dia, durante os sete dias da semana, tendo aptidão técnica e jurídica para analisar com imparcialidade a situação e adotar a medida mais adequada ao caso.
Assim, perdeu-se, por mais uma absurda disputa de poder, a oportunidade de melhoria no caótico sistema brasileiro de solução de conflitos, com uma simples medida que poderia assegurar maior proteção à mulher vítima de violência doméstica. E as mulheres continuarão aguardando, por vezes até a morte, uma medida protetiva de urgência.
[1] Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 19.nov.2017.
[2] SANNINI NETO, Francisco. Lei Maria da Penha e o Delegado de Polícia. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/lei-maria-da-penha-e-o-delegado-de-policia/ Acesso em 19.nov.2017.