Saiu no site INSTITUTO GELEDÉS
Veja publicação original: Empresária dos Racionais, Eliane Dias é feminista no mundo machista do rap
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Eliane Dias, casada com Mano Brown, cresceu na periferia de São Paulo, brigou para poder estudar, formou-se em Direito e, hoje, cuida da carreira dos Racionais e do marido. Ela manda a real: ‘Mulher de alguém é ninguém’
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Por Elisa Martins
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Ela ri quando passa um caminhão: “Viu o adesivo no vidro? Diz: Aqui é o Capão , p…!”. Eliane Dias conhece bem a periferia de São Paulo. Nasceu e cresceu ali, e de uma casa simples de dois andares comanda a produtora responsável pelos Racionais, grupo do marido, Mano Brown . A empresária e advogada lutou muito para ocupar essa cadeira. Teve que vencer o machismo — em casa e no mundo do rap. Estudou para se empoderar. Sempre acertada e comedida, diz, mas não boazinha.
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Eliane se revela briguenta, admiradora de carros e velocidade, e dona de uma coleção de mais de 50 facas. Ela só baixa a guarda quando fala dos filhos, Jorge e Domenica. Fez questão que desde pequenos eles vissem as notícias “para saber o que acontece na rua”, que aprendessem defesa pessoal “para só apanharem se quisessem” e que estudassem muito “porque são negros, diferentes dos brancos, infelizmente, mas é assim que funciona”.
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Ela é referência para muitas mulheres. E não tem a ver com ser a mina do Mano, título que rejeita. “Mulher de alguém é ninguém” , afirma. O reconhecimento de Eliane vem da trajetória profissional e da militância contra preconceito, abuso e feminicídio.
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Trabalho e estudo
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Até pouco tempo, ela estava à frente do serviço SOS Racismo, da Assembleia Legislativa de São Paulo. Saiu por um imbróglio político, mas continua ativa com palestras, entrevistas e no espaço que concede a artistas mulheres na abertura de shows dos Racionais. Mulher e negra, ela diz que descobriu muito cedo “que a coisa não ia ser fácil”.
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— Aos nove anos, vi que a professora pegava na mão da minha irmã para melhorar a caligrafia na escola. E me ignorava totalmente. Minha irmã é mais nova que eu, é filha de outro pai. Tem pele clarinha. Descobri nessa idade que ia ter que me esforçar muito para a coisa caminhar — lembra.
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Na mesma época, ela aprendeu conceitos como feminismo e sororidade. Teve que ser parceira e cuidar do irmão recém-nascido para que a mãe pudesse trabalhar. Sempre defendeu a mãe e as irmãs. No fim da ditadura, quando ninguém falava sobre racismo, já estava na rua panfletando. Eliane foi babá, doméstica, modelou cabelo, desfilou em passarela. Trabalhava para pagar os estudos.
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“Na 8ª série, minha mãe falou: ‘Eliane, vim com você até aqui. Daqui para frente, se você quiser alguma coisa, depende de você’. Eu tinha 14 anos. E acreditava que tinha que estudar para não reproduzir a mesma história. ”
Eliane Dias
Empresária do Racionais MCs
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Esse conselho, ela dá a todos que trabalham com ela, na empresa ou em casa: “Pedi que voltassem a estudar.” A graduação em Direito veio mais tarde, depois da maternidade. Eliane ficou seis anos e meio em casa quando os filhos nasceram. As candidatas a babá tinham receio de ficar com eles “porque diziam que o Brown era muito bravo”.
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Antes de engravidar, ela trabalhava num emprego que gostava e ganhava bem: “pedi demissão com dor no coração”. Mas quando pôde voltar ao mercado de trabalho, queria algo mais.
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“Resolvi estudar Direito, e aí o machismo falou alto. Pedro Paulo (como ela chama Mano Brown) não queria. Respondi que não só ia estudar como ele que iria pagar. Depois de muita discussão, ele topou”
Eliane Dias
Empresária do Racionais MCs
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Brown fez uma ressalva: queria que ela estudasse de manhã, para não sair da faculdade de noite e parar em barzinho.
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— Estudei de manhã. Mas hoje eu falo: ‘Tô indo viajar!’ E vou — conta, recém-chegada de uma viagem à Bahia.
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‘Se fosse homem, já tinha morrido’
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O equilíbrio entre machismo, ciúme e liberdade na relação foi estabelecido aos poucos. Os dois se conheceram muito novos, aos 18 anos, por meio de um primo dela. O segredo, diz Eliane, foi sempre dizer tudo “olho no olho, nariz a nariz”, com respeito.
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“Para se relacionar com uma pessoa pública tem que ter desapego. Já peguei muito no pé, mas passei dessa fase. Digo só que ele precisa me proteger de certos desconfortos. Se eu o vir beijando uma mulher na boca, não vai ser legal.”
Eliane Dias
Empresária do Racionais MCs
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Eliane diz que não aceita aquilo com que não concorda. Uma vez, há muito tempo, Brown disse para ela ir na frente para uma festa, porque ele encontraria um colega antes. Ela bateu o pé que não iria sozinha.
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— O colega dele foi assaltar, entrou no sistema carcerário e não saiu mais. — relembra. — Outra vez, fiz Pedro Paulo devolver uma arma, um presente que não se devolve. Mas estava cheia de energia ruim. Foram horas de discussão e venci, até por isso sou advogada. Se não fizer as coisas em que acredito, não fico feliz. Ninguém fica.
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Foi nessa confiança que ela assumiu, há sete anos, a gestão da carreira dos Racionais. Custou a convencer os integrantes do grupo, inclusive o próprio marido. Como sobrevive no mundo machista do rap?
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— Sou pior do que eles. Sou fera. Nenhum homem me convence que estou errada, nem me impede de fazer nada. — afirma Eliane. — Fui criada sem pai. Não tive essa referência masculina. Para mim, homem é só um homem, mulher é mulher, e vida que segue. Não tenho adoração. Sou durona. Para lidar nesse mundo do rap, cheguei séria, brava, mas também técnica, consciente. Sabia o que queria fazer. Sempre acompanhei rap, vivi do dinheiro do rap. Tinha que fazer algo do meu coração.
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Feminismo e respeito
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Não foi fácil convencer as pessoas. O julgamento às vezes vinha de outras mulheres. Um dia apareceram duas no gabinete da deputada Leci Brandão, com quem Eliane trabalhou. Queriam conhecer “a mulher do Brown”. Achavam que esposa de cantor não devia trabalhar.
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— Elas tinham imaginado todo um estereótipo. Curioso, não é? — quiestiona.
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“O dia em que as mulheres se protegerem como os homens vai ser lindo. Outro dia quase bati no carro de um cara que freou de repente. Sabe por quê? Vinha outro cara saindo de um motel, e ele parou para deixar o cara sair rápido. Os homens se ajudam. ”
Eliane Dias
Empresária do Racionais MCs
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Eliane gosta de se descrever feminista. Mas não o feminismo definido por alguns como raiva contra os homens. É o desejo de ser respeitada, ganhar igual, ter o direito de ir e vir “sem medo de ser agarrada na rua, de andar de carro e o cara querer pegar na perna”.
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— Se eu tivesse a liberdade do homem de ficar em qualquer lugar, de não correr risco de estupro, de ser fisicamente mais forte, acho que já teria morrido. É que tenho controle da minha violência. Gosto de carros, de velocidade, adoro armas, tenho coleção de facas. Não sou boazinha. Mas Deus acertou em cheio e nasci mulher — brinca.
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O instinto maternal sobressai na proteção aos filhos (cada frase dirigida a eles sempre traz um “Vai com Deus” ou “Deus te abençoe”), e também ao companheiro. Há um tempo, fez uma pergunta a Mano Brown: “Por que o homem negro trata a mulher branca de um jeito e a mulher negra de outro?”.
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— Ele foi bem simples comigo. Disse que mulher branca trata homem negro como homem. E que mulher negra trata homem negro como filho. Tem medo que ele use drogas, que perca o emprego, entre em encrenca, então fica ali toureando, tomando conta. Filho da p…! Por que não me avisou antes? Mas é isso, a gente cuida porque sabe que na periferia qualquer palavra errada pode levar alguém à morte — afirma.
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O filho Jorge, de 23 anos, trabalha com ela na produtora Boogie Naipe. A filha, Domenica, é atriz. Eliane diz que preparou os dois para o mundo — e para “um país que está mais racista do que nunca”.
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— Não temos o mesmo tratamento. Infelizmente é assim. Coloquei meus filhos sempre para estudar, desde cedo. Pensa na mulher louca. Fizeram natação porque eu tinha medo que entrassem na faculdade e se afogassem em uma brincadeira. Minha filha lutou caratê. Meu filho, muay thai. Preciso que sejam preparados para seguir em frente, para caminharem —- diz.
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Quando a tarde cai no Capão, Eliane contempla a periferia da vista da casa discreta na vizinhança. Não raro, ela dá palestras nas escolas do entorno. Fala sobre sua vida, empoderamento, estudos.
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— Eu gosto daqui. Tem violência, claro. Mas gosto do cheiro da periferia, de ver as crianças livres de chinelo, de ouvir o carro do ovo, do curso que a vida segue e até da tranquilidade com que se fala: ‘Fulano foi preso’ — comenta. — Meu sonho é que as mulheres da periferia entendam a importância de irem para a escola, de serem feministas, de que dediquem ao menos um momento da vida a elas mesmas. Muitas passam a vida vivendo a vida dos outros. Primeiro a do companheiro, depois a dos filhos, dos netos. Quando entenderem a força que têm, vão longe. E aí ninguém segura.
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