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Elas são Maria da Penha

Saiu no site UOL ESTILO:

 

Veja publicação original: Elas são Maria da Penha

 

5 mulheres que sobreviveram à violência doméstica e mudaram suas vidas para ajudar outras vítimas

 

Por HELENA BERTHO

 

A violência estava dentro de casa e veio das mãos de quem deveria dar amor. Isso aconteceu com a farmacêutica Maria da Penha, que sobreviveu e inspirou a criação, em 7 de agosto de 2006, de uma lei que leva seu nome e dá proteção para milhares de mulheres. Como ela, Bárbara Penna também quase morreu na mão de seu companheiro; Flávia Carvalho e Panmela Castro acharam que era normal sofrer agressões; Goretti Bússolo teve que voltar para o marido depois da violência e Rose Leonel viu sua vida ser completamente destruída pelo ex. Conheça as histórias destas mulheres que, mesmo após sofrerem violência, não se esconderam e decidiram ajudar nas mudanças.

 

“Meu ex me queimou e matou meus filhos. Agora, oriento outras vítimas”

 

Conheci meu ex em 2011, um homem apaixonado e romântico. Eu estava grávida e rapidamente fomos viver juntos. Logo que minha filha nasceu, uns três meses depois de nos conhecermos, ele revelou seu lado agressivo e controlador – era ciumento e as discussões passaram a ser parte da nossa rotina. Eu acabei engravidando de novo e a relação continuou. Quando o menino nasceu, nos separamos, mas ele ainda me procurava e tentava voltar.

No dia 7 de novembro de 2013, a tragédia aconteceu: ele colocou fogo no apê comigo e meus filhos dentro e me jogou da janela do terceiro andar.

Um vizinho que tentou entrar no apartamento para salvar meus filhos morreu e fui levada para o hospital sem saber mais nada. Fiquei quatro meses na UTI. Quebrei vários ossos, tive 40% do meu corpo queimado e quase morri com uma infecção generalizada. Mas nada disso se compara à dor que tive ao sair da UTI e receber a notícia de que meus dois filhos não sobreviveram ao incêndio. O assassino confessou o crime no dia e foi preso. Só que ainda aguarda julgamento.

Conto minha história, faço relatos e campanhas de conscientização, porque trago esperança para outras mulheres. Estou fundando agora um Instituto para isso, dar ajuda a elas, para que não cheguem ao que aconteceu comigo. Sinto que falar do que passei e orientá-las é o mínimo que posso fazer.

Tento reconstruir minha vida. Hoje tenho uma família, sou casada com um homem que me apoia e tenho minha filha de um ano e sete meses. Minha vida nunca mais voltou ao normal. Foram centenas de cirurgias e trago as marcas do que aconteceu. Não só as cicatrizes, mas também os traumas. Não importa o que eu faça, meus filhos não voltam e essa é a pior das dores.

Bárbara Penna, 23 anos, Porto Alegre, RS 

 

Toda mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Lei 11 340/2016. Art. 2

 

“Minhas tatuagens cobrem cicatrizes de outras que foram agredidas como eu”

 

Cobrir cicatrizes com tatuagem é um trabalho difícil porque a pele ali é muito alterada. Por isso tem muito tatuador que não faz, ou cobra uma fortuna. Mas onde muitos veem a pele alterada, eu vejo a possibilidade de recomeço para vítimas de violência doméstica.

Foi há três anos que uma cliente me procurou querendo cobrir as marcas de facadas que tinha levado de seu ex na barriga.

Quando acabei, aquilo que até horas atrás me lembrava um trauma virou o sinal de sobrevivência e recomeço. E a história dela trouxe à tona as violências que eu mesma já havia sofrido.

A primeira vez foi na adolescência. Namorava um rapaz da minha idade, muito controlador e ciumento. Começou com apertões no braço, empurrões e cuspidas na minha cara, que acabaram virando tapas. Eu ficava brava, ele pedia perdão, eu aceitava, ficava tudo bem, até que a violência recomeçava. Um ciclo que se repetiu até que consegui terminar, uns dois anos depois. Nessa época, eu achava que isso era coisa normal de casal. E, por isso mesmo, quando começou a acontecer de novo quase dez anos depois com meu marido, eu reagia do mesmo jeito.

Por sorte, consegui terminar antes que tudo se agravasse. Deixei tudo, fui reconstruir minha vida e só trago marcas psicológicas. Mas essa primeira cliente me mostrou que muitas mulheres carregam esse trauma na pele, para sempre lembrar o que aconteceu com elas. Por isso, depois de atendê-la, tive a ideia de oferecer tatuagens gratuitas para outras mulheres vítimas de violência doméstica. Criei o projeto Pele da Flor em 2015 e, em dois anos, já atendi mais de 50 mulheres de todo o Brasil. E quando atendo cada uma delas, sei que sentimos o mesmo: ‘eu sobrevivi e agora posso voltar a viver minha vida e me amar’.

Flávia Carvalho, 32 anos, tatuadora, Curitiba, PR 

 

11 anos de lei: 6 milhões de denúncias, e Brasil é o 5º país que mais mata

 

“Meu marido me torturava. Hoje uso meu grafite para combater a violência”

 

‘Casamento é para sempre, você só pode sair se ele te bater’. Foi o que meu pai me disse quando lhe pedi ajuda para sair da casa em que vivia com meu companheiro. E é exatamente a ideia que tento desconstruir com meu trabalho hoje: meus grafites e minhas oficinas mostram para as mulheres que a violência não é só a porrada e que elas podem sim sair dessas relações.

Aos 24 anos, eu não tinha noção disso. Meu marido achava que eu devia cuidar da casa com primor e, para ensinar “uma lição” quando eu não fazia, me torturava com banhos gelados ou me perseguia com um repelente aerossol e um isqueiro, ameaçando queimar nossa casa.

Até que um dia ele me espancou, porque eu tinha deixado meu pijama fora do lugar.

Depois me manteve em cárcere privado por uma semana e só escapei porque consegui pegar seu celular quando estava distraído e pedir ajuda a minha irmã e a minha mãe, que me resgataram. Era 2004 e a Lei Maria da Penha ainda não existia, então o caso não deu em nada. Ele ainda me perseguia, até que faleceu um ano após nossa separação.

A violência contra mulher se tornou tema da minha arte espalhada pelas ruas do Rio e outras cidades e está nas oficinas que faço em escolas para falar sobre o assunto com jovens. Não quero só que as mulheres conheçam a lei e as ferramentas que ela traz para protegê-las, mas sim que possam repensar sua posição no mundo: a culpa nunca é nossa.

Panmela Castro, 36, grafiteira, Rio de Janeiro 

 

É violência

  • Física
    Qualquer conduta que ofenda a integridade física ou a saúde, como: empurrão, beliscão, tapas, bofetadas, socos ou agressão.
  • Sexual
    Forçar a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada
  • Patrimonial
    Retenção, subtração ou destruição dos objetos, instrumentos de trabalho, documentos, bens, dinheiros ou direitos econômicos.
  • Psicológica
    Atitudes que causem dano emocional, diminuam a autoestima ou visem controlar suas ações, como ameaças, perseguição e outros.
  • Moral
    Calúnia, difamação ou injúria.

 

“Ele destruiu minha vida com fotos íntimas. Quero mudar a lei no Congresso”

 

Depois de quatro anos de relacionamento, quando terminei, ouvi do meu ex que ‘se eu não ficasse com ele, não ficaria com ninguém’. E, para conseguir isso, divulgou fotos íntimas minhas na internet.

Foram e-mails semanais enviados para cerca de 15 mil pessoas da minha cidade, além de fotos impressas e CDs com as imagens entregues para os moradores. Do dia para noite, fui de colunista social presente em todos os eventos locais a persona non grata na cidade.

Meu mundo acabou. Enquanto as mulheres me odiavam, os homens mexiam comigo em todo lugar. Perdi meu emprego e até meus filhos foram atingidos. Tive de mandar o mais velho para viver com o pai e a mais nova sofria bullying por conta da minha ‘má fama’.

Eu queria fugir, mas consegui juntar forças para buscar justiça, precisava provar que eu não tinha culpa ali. Entrei com ação nas pequenas causas, mas ele pagou uma multa e continuou mandando as fotos por vários anos. Enquanto isso, advogados da cidade não queriam pegar minha causa, eu estava desempregada e sem credibilidade. Era a Geni de Maringá.

Eu posso ter ganhado na Justiça, mas a pornografia de revanche é um crime que te marca para sempre. A cada clique das pessoas, eu sou violentada novamente.”

Consegui ajuda de um advogado e um perito digital de São Paulo. Uma busca e apreensão dos computadores do meu ex provou sua culpa e, finalmente, ele foi condenado em 2013. A multa de R$ 30 mil era risível, não cobre nem de longe as marcas que tudo deixou na minha vida. Mesmo assim, aquela condenação foi quase como uma certidão de renascimento para mim.

Com a força da vitória, fundei a ONG Marias da Internet, para ajudar outras mulheres que também passam pela pornografia de revanche, e procurei um deputado para propor que esse tipo de crime esteja previsto na lei. Desde 2013, com ajuda de advogados, peritos e psicólogas voluntárias, ajudo meninas e mulheres que sofrem com pornografia de revanche.

Além disso, vi o projeto de lei 5555/2013 ser escrito, começar a tramitar e ser aprovado na Câmara. Ele modifica a Lei Maria da Penha para a pornografia de revanche passe a ser considerada uma forma de violência doméstica – e agora aguarda aprovação no Senado.

Rose Leonel, 47, jornalista, Maringá, PR

 

Configura violência doméstica e familiar aquela que acontece no âmbito doméstico ou familiar, ou em qualquer relação íntima de afeto em que o agressor conviva com a vítima, independente de morar junto. Independente de orientação sexual.

Lei 11 340/2016. Art. 2

 

“Era chantageada pelo meu marido e criei ONG para que outras tenham voz”

 

A violência fez parte da minha vida desde os 12 anos, quando sofri um estupro. Desde então, sempre me envolvi com homens que me faziam mal, mas sem perceber. E não era diferente com meu último casamento. Eu achava que ele me amava muito. Afinal, me dizia isso dez vezes por dia, me ligava toda hora, enchia a casa de bilhetes dizendo ‘eu te amo’.

Era tanto “amor” que ele tinha ciúmes e precisava me controlar. Não queria que eu usasse batom, rasgava meus vestidos, reclamava que eu ia à missa arrumada demais. E às vezes o ciúme era tanto, que ele gritava comigo ou me dava uns tapas.

E para que eu não saísse da relação, ele me chantageava com segredos do meu passado.

Foram quase 10 anos assim, até que um dia em 2009 ele me agrediu na frente do meu filho de dois anos. Decidi quebrar o silêncio e busquei a polícia. Fiz um primeiro boletim de ocorrência, que ficou por isso. Ele ainda me chantageou para voltarmos algumas vezes e se seguiram muitas outras violências, com mais cinco boletins e passagens pelo hospital, até que finalmente consegui uma medida protetiva.

Minha libertação veio em 2012, quando decidi assumir meus segredos do passado e as chantagens deixaram de ter poder sobre mim. Mudei de endereço e, apesar das ameaças ainda continuarem, nunca mais voltei para ele. Nessa época contei minha história para o mundo e comecei a receber muitos relatos de mulheres e comecei a ajuda-las. Ouvia, conversava, orientava e acompanhava na denúncia. Eram tantas, que em 2015 fundei a ONG Todas Marias, para oferecer ajuda para que outras mulheres quebrem o silêncio e saiam da violência.

Já são mais de 3 mil mulheres que me procuraram. Algumas voltaram para a violência, mas muitas outras já saíram ou estão no processo. Elas me contam suas histórias, eu ouço e oriento, muitas vezes até acompanhando-as até a delegacia. E quanto mais eu escuto essas mulheres, mais percebo que preciso contar minha história. Quanto mais eu conto, mais eu curo minha dor.

Goretti Bussolo, 50, funcionária pública, Curitiba, PR

 

 

“Agressão que sofri ainda dói muito”

 

Em entrevista ao UOL, Maria da Penha disse que, apesar do trauma que a toca profundamente, comemora a criação da lei 11.340, batizada com seu nome. Há 11 anos, ela pune aqueles que cometem violência doméstica.

“Foi uma surpresa grande ver a minha luta pessoal beneficiar tantas mulheres que, assim como eu, foram agredidas”, conta.

E este 7 de agosto de 2017, data de mais um aniversário, ela espera que não passe em branco.

 

 

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