Saiu no site EXPRESSO – PORTUGAL
Veja publicação original: “É das coisas mais grosseiras que vi”: a revolta com a pub que usa uma mulher em biquíni para vender vitela
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Na imagem vê-se uma mulher de costas, na praia, e o texto diz assim: “vitela branca p/ assar, €9.50/kg”. Uma empresa do norte do país decidiu promover desta maneira o seu negócio e a publicidade em causa levou mesmo o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) a apresentar uma queixa à Comissão para a Igualdade de Género. Em entrevista ao Expresso, Regina Marques, um dos membros da direção do MDM, expressa a sua indignação: “Ficamos a olhar para este cartaz e dizemos: em que mundo é que nós estamos? Em que sociedade é que nós estamos? Empresas que, enfim, têm os seus trabalhadores e os seus regulamentos em dia, como é que fazem isto?”
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Como é que se explica aquele cartaz? [ver a história AQUI]
Explicações não temos. O que temos é uma explicação de inquietação e indignação. Existem leis. O código da publicidade é claro, nos seus artigos 7, 9 e até o 4, no sentido de ser uma publicidade enganosa. Com base nesse código, pensamos que Portugal tem dado alguns passos no sentido de garantir o respeito pelos direitos da mulheres e até na abolição de estereótipos sexistas e racistas. Temos alguma legislação, desde logo a Constituição, que proíbe todas as formas de marginalização, discriminação e desrespeito pelas mulheres. Como é se que explica este cartaz? Provavelmente não há da parte destas empresas a noção de que há um código de publicidade que devem respeitar. Deviam conhecer esse código, de ética e conduta. Depois, isto também passa, provavelmente, pela noção que têm das mulheres. É carne… enfim, é vitela. Repare nos termos usados, termos muito grosseiros, hiperssexualizados. A associação entre imagem, o desenho e as palavras é absolutamente agressiva e grosseira. Porque é que fazem isto? Ou fazem, admitamos, por desconhecimento do código, mas certamente porque têm este entendimento do que é uma mulher, que pode ser usada para vender carros, tudo. Mas a linguagem não pode ser inocente. Já não digo meterem lá só a mulher, mas a associação que se faz entre as palavras e o desenho. É repugnante do que as nossas leis transmitem, que nós, como movimento de mulheres, também transmitidos, de seriedade e respeito, e não do uso do corpo da mulher para qualquer fim. Ou estão imbuídos de uma grande ignorância relativamente a tudo isto e não discutem nada do que se passa na cena pública, ou então estão, se calhar também temos de admitir, numa onda de retrocesso e dizer que antes é que era bom, no tempo em que as mulheres eram consideradas objetos. Pode haver esse retrocesso de mentalidade e esse desejo de voltar atrás. É por isso que ainda é mais indignante. Passados 45 anos de uma revolução que fez uma Constituição, com um código civil, com leis recentes que falam no respeito pelas mulheres e, depois, acontece isto. Alguma coisa está mal no reino.
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No texto que escrevem no Facebook chegam a usar o termo “mercadoria”. Que sociedade é esta? Falta muito caminho?
O problema é que as coisas não evoluem de uma forma linear: há avanços e retrocessos. Na verdade, até consideramos que em alguns aspetos há retrocessos, como no assédio sexual ou moral. A própria violência é um retrocesso. Mesmo que se diga que há mais pessoas no poder, ou como jornalistas. Sim e como é que são tratadas e vistas? Na sua condição intrínseca de seres humanos. Há outras vertentes. Quando uma mulher, por exemplo, fica grávida e é despedida? Como é que a sociedade está a ver isto? Não é mercadoria, há um tempo histórico que já foi, mas parece que estamos a voltar atrás, com comportamentos e atitudes completamente retrógradas. Estamos a atravessar um período em Portugal e na Europa em que esse valores retrógrados e obsoletos estão a ser revigorados. Ficamos a olhar para este cartaz e dizemos: em que mundo é que nós estamos? Em que sociedade é que nós estamos? Empresas que, enfim, têm os seus trabalhadores e os seus regulamentos em dia, como é que fazem isto? É a empresa e a empresa publicitária. É quem compra e quem faz a publicidade. Isto é muito grave. Do ponto de vista da opinião pública, a publicidade tem um efeito imenso, multiplicador, viral, que se espalha por todo o lado. É subliminar aquela mensagem. Este cartaz indigna muitas mulheres na esfera pública, tenho a certeza. É uma coisa arrepiante. Fazemos essa ligação com a mulher que está ali como objeto de sedução. Só quem não viu é que não se indigna… Por isso, fizemos isto para a CIG [Comissão para a Igualdade de Género], que também tem este papel de zelar pelo cumprimento de tudo o que tem que ver com igualdade, respeito pelos outros. A CIG tem esse papel, é o organismo do Estado que deve zelar por isso. Se não disséssemos à CIG, podiam também não ter visto. Tem essa capacidade e competência para atuar, nem que seja para dizerem ‘tirem isso daí’.
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Vão mais além dessa queixa?
A Entidade Reguladora da Comunicação também tem um papel. Não digo queixa, mas apresentar a questão vamos fazê-lo. Isto é um desrespeito pelos consumidores. Isto é muito sério, muito grave. Esta empresa pode ser repreendida, pode retirar os cartazes, mas também pode servir de lição para outros. Não façam, não ponham, não ousem, que não ousem.
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O Movimento Democrático de Mulheres atua desde 1968. Têm registo de mais casos desta natureza?
Assim tão grosseiros não conheço. Temos a questão das mulheres serem usadas para vender os carros, porque muitas vezes nem é para elas comprarem, é para seduzirem o marido, namorado, enfim. Como objeto de sedução. Há muitas coisas dessas. Há outros cartazes que têm, por exemplo, a questão de a mulher ser sempre apresentada, e nota-se algumas melhorias nesse campo, como ir sempre levar os filhos à escola, ou às compras. Querem vender os alimentos e colocam-na a ela. São coisas óbvias, que contestamos também, mas que releva outra mentalidade, que a mulher faz aquelas coisas. Não deve ser assim. Temos feito outros protestos juntos da CIG. A tónica era esta: a mulher ser usada para vender aspiradores, a máquina de lavar. Pouco a pouco, vão-se vendo cartazes em que está um ou outro, ou os dois. Como objeto sexual, terá havido nestes anos todos, mas este é das coisas mais grosseiras que eu vi.
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Qual é a origem deste movimento?
Portugal teve vários momentos desde a República. Sempre que houve liberalização de costumes e hábitos, as mulheres apareceram sempre com movimentos. Depois, o fascismo proibiu. Somos, digamos, herdeiras do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que foi fechado pela PIDE em 1947. As mulheres, com as democracias que se foram instalando no mundo, sempre reivindicaram, sempre se organizaram em movimento. Em Portugal também. Só que tivemos 50 anos de fascismo e durante esse período até fecharam o Conselho Nacioanl das Mulheres Portuguesas, cuja preisdente era na altura a Maria Lamas. Depois disso houve um interregno. Não havia condições .As pessoas viviam na clandestinidade e nas prisões. Em 1968 houve uma certa abertura, que se dizia a abertura marcelista, e é evidente que as pessoas foram aproveitando. O Movimento Democrático de Mulheres, em 68, não fui eu mas amigas nossas, organizaram-se e apareceram. Claro que fazia muito pouca coisa. Temos documentos que comprovam. O MDM só se legalizou depois do 25 de Abril, até então vivia naquela semiclandestinidade, em que as forças tinham de estar mais reservadas. Mas foi nessa primavera do marcelismo que rompeu outra vez a possibilidade do movimento de mulheres aparecer. A Maria Lamas foi a nossa presidente honorária. Esteve presa, como presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Esteve exilada em França, mas sempre quis trabalhar com as mulheres e sempre achou que se deviam organizar. Depois de 1974, em liberdade e organizadas, fizemos congressos, tratamos desta questão da publicidade, mas também trabalhamos outros aspetos, como os manuais escolares. É uma coisa que nos preocupa imenso. Muitas vezes, os manuais escolares transmitem ideias muito retrógradas sobre os papéis das mulheres e dos homens. Há manuais de Físico-Química em que, para mostrar a energia, metem as mulheres na cozinha e o homem na construção civil, para dizer que eles despendem mais energia naquele trabalho do que elas. Isto é sexismo puro. Trabalhamos na questão das maternidades, da prostituição de mulheres que têm de ser protegidas, porque são precárias e não têm trabalho. A precariedade também coloca em causa o estatuto das mulheres.
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Qual é a dimensão deste movimento? Quantas pessoas estão envolvidas?
Oficialmente, inscritas temos cinco mil mulheres aderentes. Fazemos muitos projetos, alguns também financiados por fundos comunitários.
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Não há homens no MDM?
Não. Somos um movimento de mulheres.
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Nada teriam a ganhar se entrassem homens? Desvirtuaria o movimento?
Nós trabalhamos com homens que têm outros movimentos. Mas a nossa especificidade é a de sermos um movimento de mulheres, porque também é uma força social importante. Somos capazes de encontrar elos com outras mulheres, até para forjar esta nossa luta de mulheres que ainda consideram que não há igualdade. O nosso lema agora, depois do nosso congresso de outubro, é ‘igualdade na vida é o combate do nosso tempo’, porque na lei as coisas estão mais ou menos. Mas quando há precariedade desta maneira ou quando uma mulher vai ser recrutada e perguntam se vai ter filhos e casar, isto não é desrespeitar completamente o direito da pessoa? Não perguntam isso aos homens. Até na política perguntam às mulheres como resolvem o problema dos filhos. Não se pergunta isso a um deputado. Elas próprias dizem-nos isso. O que tem que ver uma coisa com a outra? Continua a haver esta percepção de que as mulheres têm uns papéis e os homens têm outros.
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