Saiu na REVISTA CLAUDIA.
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Se há uma unanimidade em relação aos espaços ocupados pelas mulheres negras – sejam eles físicos, como faculdades e escritórios, ou digitais, como as redes sociais –, é que neles elas serão submetidas a diversos julgamentos por parte de todos os presentes.
Essa realidade levou à reflexão a jornalista e influenciadora baiana Ashley Malia (@ashleymlia), 23 anos. Ela notou a existência de uma dualidade imposta às mulheres negras que tenta encaixá-las em um dos perfis: ou você é bonita e sensual ou é inteligente e estudada, como se uma opção deslegitimasse a outra.
“Sempre amei literatura, gosto de ler artigos acadêmicos. Ao mesmo tempo, uso roupa curta, posto foto de biquíni, aprecio meu corpo. Entendi que as pessoas enxergavam essas facetas como se fossem coisas fragmentadas, como se uma mulher inteligente não pudesse também publicar um vídeo dançando pagode”, explica ela, que expandiu a discussão em uma postagem no Instagram e viu o post viralizar.
Quem também se reconhece nessa posição é a maquiadora paulista Wanessa Fernandes, 23 anos, idealizadora do perfil Africanize (@africanizeoficial), na mesma rede. Ela define o espaço como um portal de notícias sobre o universo negro e diz que muita gente se espanta ao descobrir que é ela quem está por trás da iniciativa. “Essas pessoas deslegitimam meu trabalho ao duvidar que eu seria capaz de realizá-lo. O desafio é encarar críticas e xingamentos de quem não faz ideia do esforço contido ali”, afirma ela.
O impedimento da expressão da mulher negra em sua totalidade geralmente acontece por meio da crítica, dos cancelamentos e ataques nada velados. No Facebook, por exemplo, 81% dos discursos de ódio são direcionados a elas, como mostra uma pesquisa do brasileiro Luiz Valério Trindade, da Universidade de Southampton, na Inglaterra.
Para Angelita Garcia, socióloga e membro da Aliança Pró-Saúde da População Negra do Município de São Paulo, esse é um dos muitos traços do racismo persistente na nossa sociedade, causado principalmente pela objetificação da mulher negra.
“No Brasil colonial, quando ainda estava instaurada a escravidão, homens e mulheres negros eram destituídos de humanidade, e isso se perpetua até hoje no nosso imaginário social. A objetificação, que põe a mulher negra em um posto de subalternidade e de hipersexualização, impacta na maneira como ela vai experienciar seu corpo e em como a sociedade vai olhar para ele. Silenciamento, interrupções, questionamentos, invisibilização ocorrem na tentativa de manter essa população ‘no seu lugar’ ”, explica Angelita. Por essa perspectiva, a elas não caberiam lugares de produção do saber como o que Wanessa ocupa.
Angélica Ferrarez, doutora em história e ativista acadêmica explica que existe uma imagem construída da mulher negra guerreira, servil e sexualizada. “Quando nos deslocamos das noções às quais fomos confinadas, subvertemos a lógica no imaginário social e causamos um abalo sísmico”, explica.
Ao verem mulheres negras ocupando lugares intelectualizados, de chefia ou sendo uma empreendedora de sucesso, cria-se um choque entre as baixas expectativas da sociedade e quem elas realmente são, levando a uma enxurrada de críticas. O descontentamento com a expressão da mulher negra, portanto, demonstra a incapacidade de enxergá-la como dona do próprio discurso, de suas discussões e ações.
Na mira do ódio
Haydée Paixão Soula, 32 anos, advogada, antropóloga, capoeirista e idealizadora da AflorArte Produções, encontrou resistência na academia durante o mestrado. Ela conta que teve sua intelectualidade questionada pelo orientador quando propôs usar a capoeira como trabalho de campo. Mais tarde, foi reprovada na matéria.
A mensagem, segundo Haydée, foi de que não haveria lugar no âmbito acadêmico para esse tipo de conhecimento, independentemente das várias argumentações teóricas feitas pela paulistana, todas invisibilizadas por seu interlocutor.
Para Célia Reis, doutora em história e pesquisadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a recusa à capoeira não ocorreu à toa, tampouco o dilema de Ashley compartilhado no Instagram. “Na cultura eurocêntrica, o corpo é visto como desprovido de intelectualidade. Estabelece-se uma dicotomia que não permite relação entre ambas as capacidades, física e mental”, explica.
Por esse motivo, para mulheres negras, que possuem seus corpos constantemente vigiados, a intelectualidade é considerada uma transgressão. “O que está por trás dessa crítica é o desejo de restabelecer uma ordem colonial perdida. Esse comportamento encarrega as mulheres negras de mais uma função: além de ocupar, elas precisam legitimar tudo o que fazem, algo que exige um esforço muito maior”, diz Angélica.
A vida delas é preenchida por uma série de negociações que busca conciliar a imagem que possuem de si mesmas com a que, por vezes, precisam manter para frequentar determinados espaços. Marcela Lisboa, 29 anos, produtora e diretora da agência Naya, se lembra das inúmeras situações em que optou por não falar sobre sua relação com a religião para não ser deslegitimada como intelectual.
Ela é evangélica pentecostal e precisou suprimir essa parte de sua personalidade porque a religião costuma ser ligada a algo menos racional e, portanto, menos valorizado. “Antes, me entender como um ser pensante e pertencente ao lugar do saber estava ligado a referências do materialismo histórico, que não inclui o exercício da espiritualidade”, afirma ela.