Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE :
Veja publicação original: Dior e elas: a trajetória da estilista que levou o feminismo à passarela
Como (e por que) a italiana Maria Grazia Chiuri usa o feminismo e a geração millennial para rejuvenescer a maison criada por Christian Dior há 70 anos
ão duas e quinze da tarde de uma terça-feira de outubro em Paris. A cidade ferve com a Semana de Moda, mas o silêncio no primeiro andar do número 6 da Rue Marignan é sepulcral. No quartel-general da Dior, uma das maisons de luxo mais tradicionais do mundo, tudo é elegantemente sóbrio: as paredes com boiseries, as cadeiras Luís XV, o tom de voz das pessoas. Maria Grazia Chiuri, a estilista romana que assumiu o comando da grife há um ano, depois de 17 à frente da Valentino, está quase 40 minutos atrasada e se faz notar bem antes de ser anunciada. A pisada firme em ankle boots de salto baixo, o tilintar de pulseiras de peso e as risadas generosas são inconfundíveis. Assim como é o aperto de mão vigoroso, seguido de dois beijinhos, que recebo da designer de 53 anos: uma mulher estilosa que se sente tão bem em sua pele quanto no cargo que ocupa.
Pudera. Desde que Yves Saint Laurent sucedeu Christian Dior, em 1957, a maison parece ter escolhido os melhores designers para os momentos de sua história. Saint Laurent trouxe o vestido trapézio e o olhar das ruas para as passarelas no fim dos anos 50. Marc Bohan traduziu a irreverência das décadas de 60, 70 e 80, preservando os códigos tradicionais da grife. Gianfranco Ferrè foi o rei da exuberância e do prêt-à-porter dos anos 90. John Galliano emprestou a extravagância da vida noturna de Londres e a sensualidade dos corsets à era das supermodels. E Raf Simons foi o intelectual das linhas retas que preferia a discrição à exposição. Não é de estranhar, portanto, que, no momento em que o feminismo se tornou o novo preto, Maria Grazia tenha sido o nome escolhido para assumir a direção artística da grife.
Um ano depois de sua estreia, e com exclusividade para a Marie Claire Brasil, a estilista apresenta a coleção de Verão 2018 da Dior (que chega ao Brasil em março), faz um balanço das anteriores e discorre sobre a geração millennial, o novo feminismo e nossa capacidade de conciliar família e trabalho.
Homenagem feminista
“Neste primeiro ano de Dior, consegui homenagear as mulheres em todas as coleções. Na primeira, trouxe Chimamanda Ngozi Adichie, a escritora nigeriana autora da frase ‘We should all be feminists’ [que virou camiseta, viralizou nas redes e marcou a nova era de Maria Grazia na Dior], na Cruise Collection, passeamos pelo trabalho da psicanalista Clarissa Pinkola e da pintora modernista Georgia O’Keeffe. No Inverno, investi nas boinas e uniformes [numa alusão a um grande exército feminino]. Agora, no Verão 2018 [que estampa as fotos desta reportagem], homenageamos Niki de Saint Phalle, uma das maiores artistas plásticas do século 20, época difícil para as mulheres. A arte, até hoje, é um reduto dos homens. Duvido que você encontre uma menina que acredite que possa ser um Michelangelo. Esse direito nos foi negado. Na moda é igual. Nunca imaginei que chegaria aonde cheguei. Na minha cabeça, os grandes designers só poderiam ser homens: Ferrè, Armani, Valentino… Chanel era uma exceção. Os poderosos mesmo eram todos homens.”
Millennialmania
“Não olhamos para os millennials por marketing, mas por necessidade. A internet mudou tanto nosso estilo de vida que é impossível não dialogar com essa comunidade. Quando eu tinha 20 anos, não sabia de nada, era totalmente naive. Já os meus filhos [Rachele, 20, e Nicolo, 24, do casamento com o empresário Paolo Regini, dono de uma tradicional camisaria de Roma] sabem de tudo! Têm seu próprio ponto de vista, mas se interessam pelos dos outros. São visionários. Desde como se portar nas redes – coisa que eu definitivamente não sei – até qual é o melhor tipo de alimento para viver bem. Por causa deles, hoje penso três vezes mais na comida que vou ter em casa. Cresci em uma Itália de italianos. Comendo pizza e estranhando os estrangeiros. Meus filhos não. Cresceram dentro desta nova sociedade e respeitam as diferenças porque conviveram com elas.”
Uma italiana em Paris
“Quando cheguei à Dior [em julho de 2016], tive um choque com a cultura formal da empresa: muito francesa para uma italiana como eu [gesticula]. É uma abordagem muito diferente e eu não tinha consciência disso. Enquanto todos falavam ‘Dior Revolution, Dior Revolution’ [gesticula mais ainda, como se tivesse um megafone nas mãos], só pensava: ‘Vim aqui para fazer o meu trabalho’. E esse trabalho tinha que ser divertido como eu. Pronto: nasceram as camisetas-manifesto. Desafio é isto: pegar um lugar maravilhoso e tradicional como a Dior e mostrá-lo para o mundo de um jeito moderno, contemporâneo. Sabe qual foi a frase que eu mais ouvi da marca ao final do primeiro desfile? ‘Obrigado por seu bom humor!’ [gargalhadas]. E por que não? É totalmente possível!”
Quem faz bem dorme bem
“Você acha que perdi o sono porque tive menos de um mês para desenhar minha primeira coleção na Dior? Imagine! Eu morava na Avenue Montagne [onde ficam o escritório e os ateliês da maison], mas dormia superbem. Não perco o sono por trabalho. Se você faz o que ama, tudo dá certo, até o sono. Minha estreia na maison é a prova disso. Foi tudo intuitivo. Já conhecia Chimamanda antes de vir para cá. Tinha assistido a um TED com ela, lido o livro Americanah, e aquilo ficou guardado dentro de mim. Aí, quando cheguei aqui, todos me diziam: ‘A Dior é uma marca feminina’. E eu pensei: ‘Taí: uma marca feminina e feminista’. Foi instintivo. Ao coletar referências para a coleção, percebi que queria expressar meu ponto de vista sobre as mulheres, sobre o feminismo, mas de um jeito novo, capaz de tocar as mulheres de hoje. Minha filha, Rachele, de 20 anos, me ajudou muito.”
Maternidade x profissão
“Não são coisas excludentes. Isso é um pensamento muito antigo, quase patriarcal. Podemos ter sucesso na profissão que escolhemos e ser boas mães para nossos filhos, mas não podemos ser boas em tudo o tempo todo – senão piramos e ficamos atrás do impossível. O trabalho é parte de mim, eu amo demais o que faço. Mas prezo ter uma parte da minha vida em que ele não esteja presente. Tenho amigos que não têm nada a ver com a moda e eu simplesmente amo isso. São pessoas queridas que me acham interessante por outras qualidades que não passam pelo meu lado profissional. Fora que, para mim, a moda é algo muito sério [irônica], tão sério que não gosto de conversar sobre ela com qualquer pessoa [risos]. Agora, falando sério, nós, mulheres, podemos ser o que quisermos. Um exemplo nesse sentido é a Anna Fendi, da família fundadora da marca. Uma grande mulher, uma grande designer e também uma grande mãe.”
Missão de vida
“Estou aqui para dar poder às mulheres. Para mostrar ao mundo que podemos decidir o que vestir e o que fazer para estarmos bem com nós mesmas. Não somos passivas. Temos estilo e desejos próprios. Eu tive sorte de viver a moda dessa maneira, para me expressar, quase como uma brincadeira. Foi o jeito que encontrei de me sentir livre. Minha família, principalmente minha mãe, era muito severa. Uma ordem era uma ordem, não podia ser discutida. Aí, quando completei 13 anos, comecei a mudar. Lembro que ela queria que eu pusesse um vestido super girly e minha atitude era mais rock’n’roll. Queria jeans surrado, jaqueta militar. E não era pela moda, mas pela atitude. Não me sentia bem em um vestido comportadinho, precisava me expressar. Até hoje sou assim. Há momentos em que me olho no espelho e não me reconheço. Aí tenho que mudar tudo: pintar o cabelo, trocar de roupa, mudar o make. Esse olho preto comecei a usar com uns 40 anos de idade, ou seja, há 13 anos. Já já eu mudo de novo. Só não mudo de emprego e marido [risos]. Sono molto fidele! Moltissimo! Foram dez anos na Fendi, 17 na Valentino, e um casamento de décadas.”
Presente e futuro
“Acordo às 7 da manha, tomo café, vou para o escritório, trabalho, volto para jantar. Nada especial, bem boring. Desde que me mudei para Paris, fico bastante sozinha e gosto disso. Nunca estive só na vida. Casada, com dois filhos, isso não existe. É bom ter tempo só para mim. Só vou para Roma, onde nasci, nos fins de semana – e, mesmo assim, não em todos –, e estou adorando, sabia? Descobri o prazer da minha companhia. Se você me perguntar o que quero para o futuro, respondo: ‘Quero isso, ser feliz comigo mesma’. Não sou de fazer muitos planos, vivo um dia após o outro. Já fiz muito mais do que poderia imaginar em minha vida e hoje minha única pretensão é ser feliz todos os dias.”
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