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Veja publicação original: Dinheiro para mulheres candidatas: menos ou nada?
A decisão do Supremo de ampliar o financiamento para candidatas e o risco de retrocesso
A decisão do Supremo de ampliar o financiamento para candidatas e o risco de retrocesso
- Henrique Neves da Silva
O STF, ao julgar a ADI 5.617, deu um passo importantíssimo para minimizar o desequilíbrio histórico sofrido pelas as mulheres na política. A interpretação e aplicação do entendimento do Supremo Tribunal não podem levar a disparates ou ensejar o recrudescimento da vitória conquistada. Os levantamentos demonstram que mulheres, na maioria das vezes, sempre foram abandonadas e alijadas dentro dos partidos políticos, apesar da regra que impõe a distribuição das candidaturas em no mínimo 30% e no máximo 70% para cada gênero. O preconceito é evidente. Sempre que se fala nesses percentuais, a referência é aos 30% “das mulheres”. Por que não falar em 30% de candidatura “dos homens”, como também previsto pela regra?
Enfim, como afirmei em texto anterior (candidatas de verdade[1]), não bastava garantir que as mulheres tivessem, no mínimo, 30% das candidaturas. Era necessário que se assegurassem condições básicas e dinheiro para que as suas campanhas pudessem realmente existir. Se os eleitores não sabem que a candidata existe, ela dificilmente terá votos.
Na última quinta-feira o STF se deparou com o tema e examinou a constitucionalidade do art. 9º da Lei 13.165/2015. A decisão foi unânime em reconhecer a quebra da igualdade de gêneros, tanto em relação ao percentual mínimo de 5% (insuficiente) e máximo de 15% (excludente e desigual) dos recursos do Fundo Partidário para financiar campanhas eleitorais femininas. Houve discordância apenas em relação às consequências da decisão.
A maioria acompanhou o voto do min. Edson Fachin e julgou procedente a ação direta para, como consta do resultado: i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três”, contida no art. 9º da Lei 13.165/2015, eliminando o limite temporal até agora fixado; ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção; iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/1995.
Não há dúvidas que as mulheres devem ser reconhecidas e não podem ser submetidas às campanhas eleitorais em condições adversas ou notoriamente inferiores às asseguradas aos homens. Porém, a partir da decisão do STF, poderiam surgir algumas dúvidas, principalmente por parte daqueles que não desejam enfrentar a realidade, as quais devem ser dissipadas o quanto antes, inclusive para efeito de orientação dos partidos e das próprias candidatas.
Para compreender o emaranhado das normas eleitorais e partidárias, é necessário lembrar que os partidos possuem, atualmente, duas fontes diversas de recursos públicos para financiar campanhas eleitorais. A primeira, antiga, é o Fundo Partidário, previsto na Constituição e regulado pelo art. 44 da Lei dos Partidos Políticos. Esse fundo tem como finalidade histórica subsidiar a manutenção dos partidos políticos em anos eleitorais e não eleitorais, podendo ser utilizado, também, em campanhas eleitorais. A partir da proibição das doações de pessoas jurídicas, o valor desse Fundo foi elevado, como forma indireta de financiar as campanhas eleitorais.
A segunda fonte, novidade da reforma eleitoral de 2017, é o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, ou simplesmente “FEFC”. Ele foi criado com o propósito específico e único de financiar campanhas eleitorais, o dinheiro não utilizado pelos partidos ou candidatos deve, após as eleições, voltar aos cofres públicos.
Para o exercício de 2018, os recursos do Fundo Partidário estão orçados em quase R$ 890 milhões, dos quais cerca de 780 vem do Orçamento da União e mais de 108 decorrem das multas eleitorais aplicadas. O valor do FEFC será divulgado em junho pelo TSE. Estima-se que seja superior a R$ 1,7 bilhão.
Quando o art. 9º da Lei 13.165 foi editado pelo Congresso Nacional, em 2015, o FEFC não existia, pois ele foi criado somente em outubro de 2017, o que significa dizer também depois da propositura da ADI 5617, em outubro de 2016. Assim, tanto a lei como a inicial da ADI não examinaram aspectos do FEFC. A análise foi restrita aos recursos do Fundo Partidário.
A primeira dúvida é saber se a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5617 também atinge os recursos públicos distribuídos por intermédio do FEFC? Não é difícil perceber que ambos os fundos tratam da distribuição de recursos públicos.
A resposta a essa pergunta significa, na prática, saber se além dos 30% do Fundo Partidário, o que gira em torno de R$ 266 milhões, as mulheres teriam acesso a também, no mínimo, 30% dos recursos do FEFC, ou seja, cerca R$ 510 milhões, totalizando cerca de R$ 776 milhões para financiar candidaturas femininas.
Por outro lado, nos debates da reforma eleitoral de 2017, diversas vinculações e fórmulas de distribuição do FEFC foram discutidas no Congresso Nacional. Não se chegou ao consenso. Com os vetos presidenciais, o máximo que ficou previsto na lei é que entrega do dinheiro público para o partido somente pode ocorrer após a direção executiva nacional estabelecer e divulgar os critérios de distribuição dinheiro entre seus candidatos, como consta hoje do §7º do art. 16-C da Lei 9.504/97.
Vale, então, perguntar: na estipulação dos critérios de distribuição dos recursos do FEFC, os partidos devem destinar ao financiamento de candidaturas femininas, no mínimo, 30% do valor global recebido, se a proporção de candidatas não for maior?
Sobre o Fundo Partidário, outra indagação. Como se sabe, os valores destinados aos partidos não são entregues em uma única oportunidade. Os recursos são transferidos mensalmente pelo TSE, em duodécimos. No exercício de 2018, os primeiros já foram pagos e os últimos somente serão entregues após as eleições, quando não é mais possível realizar gastos eleitorais.
Assim, o percentual de 30% considerado na decisão da ADI 5617 deve ser calculado sobre todo o valor anual, o que asseguraria cerca de R$ 266 milhões às mulheres ou deve incidir em cada parcela mensal entregue? Se considerada apenas as parcelas, qual período deveria ser contemplado? Até o dia da eleição, a partir do que, as futuras seriam aplicadas somente no próximo pleito?
Outra questão: os valores são entregues aos órgãos partidários nacionais, que de acordo com critérios próprios, redistribuem parte aos órgãos estaduais, os quais, por sua vez, repassam (pouco, é verdade) aos municipais. A partir dessa sistemática, o percentual de 30% deve ser calculado sobre o total nacional dos recursos recebidos ou sobre as parcelas recebidas em cada estado?
Considerado que o valor recebido pelo órgão nacional pode, em tese, ser destinado apenas ao financiamento de campanha presidencial, como seriam calculados os valores e a respectiva proporcionalidade, se o candidato é uma única pessoa, homem ou mulher?
Pensando nas campanhas majoritárias, não é estranho que nas coligações o titular seja de um partido e o vice de outro. Os valores do Fundo Partidário são individualizados por partido. A existência de coligação não altera o que cada agremiação recebe. Então, a pergunta anterior também cabe em relação aos partidos coligados, como calcular os 30% em candidatura única?
A regra do preenchimento das vagas de acordo com os limites de gênero só se aplica nas eleições proporcionais. Na majoritária, é possível e infelizmente frequente que todos os candidatos do partido sejam homens. Caberia estender o percentual de 30% também para as campanhas majoritárias, a partir de um levantamento nacional?
Nas eleições proporcionais há outra distorção quando os partidos se coligam. A regra dos 30% é calculada sobre o total dos candidatos lançados pela coligação. Há partido coligado que sequer lança candidato próprio ou lança apenas um(a), sem prejuízo de se chegar ao percentual mínimo de gênero a partir das candidatas filiadas as outras agremiações coligadas. Como seria calculado os 30% individualizado por partido nessas situações? Se não houver candidata, onde o valor será gasto? Se for apenas uma, ela receberá todo o dinheiro?
Há outra questão. Desde 2009, os partidos políticos são obrigados a destinar 5% dos recursos do Fundo Partidário para custear programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Essa regra sempre foi de difícil aplicação e constante descumprimento, o que ensejou a rejeição das contas de várias agremiações, com determinação de usar o saldo inutilizado, acrescido de multa, no exercício seguinte, sem prejuízo da agremiação respeitar o percentual próprio do exercício.
Em 2015, o Congresso Nacional alterou a legislação para que esse percentual fosse gerido pela Secretária da Mulher de cada partido, ou na sua falta, pelos institutos ou Fundações (Lei 9.096/95, art. 44, V). Era uma forma de dar às interessadas, ao menos, o poder de gestão sobre os seus recursos. No mesmo ano, foram acrescentados os §§ 5º-A e 7º ao art. 44 da Lei dos Partidos Políticos para estabelecer que, a critério dos órgãos responsáveis, esse valor poderia ser acumulado, em exercícios diferentes, para utilização campanhas eleitorais futuras de mulheres. Criou-se, assim, uma espécie de poupança para que o valor arrecadado em ano não eleitoral pudesse ser utilizado na eleição seguinte. Vários partidos procederam dessa forma nos últimos anos.
No julgamento da ADI 5617, o inciso V do art. 44 foi mantido (não era objeto da ação) e os §§ 5º-A e 7º foram considerados inconstitucionais, por arrastamento. Em outras palavras, a obrigação de utilizar 5% do Fundo Partidário para difusão da participação política da mulher foi mantida – estabelecendo-se que esse percentual é autônomo e não pode ser compensado com os valores destinado às campanhas femininas. Contudo, a regra que permitia a acumulação desse percentual e sua utilização pelas mulheres em eleições futuras foi excluída da legislação.
Surge a dúvida, o que o partido deve fazer com os recursos dos exercícios anteriores acumulados para esse fim? Eles não poderão mais ser utilizados nas campanhas das mulheres? Será obrigatória a sua utilização apenas em programas de difusão da participação feminina? Seria inconstitucional ter poupado tais valores para utilizá-los em favor das mulheres? Os partidos podem ser punidos por isso?
Todos esses aspectos, e vários outros, precisam ser elucidados e respondidos o quanto antes, pois as campanhas eleitorais terão início em poucos meses. Nenhum questionamento, porém, é mais importante do que saber sobre qual base de valores o percentual de 30% deve incidir. Como dito acima, a resposta a essa pergunta, representa diferença superior a meio bilhão de reais.
Mas, pior – muito pior – seria defender que os recursos incidem apenas em relação à parcela do Fundo Partidário que for efetivamente utilizada pelos partidos políticos para financiar candidaturas.
Essa conclusão encontra certa correlação com as alegações daqueles que sustentam que os recursos do Fundo Partidário, a partir da criação do FEFC, não podem ser utilizados para financiar campanhas eleitorais.
Realmente, os propósitos que motivaram a criação de cada fundo são diversos. Grande parcela do Fundo Partidário é destinada, por previsão legal, a manutenção das sedes e pagamento de pessoal, no máximo 50% no Diretório Nacional e 60% nos Estaduais. Vinte por cento do Fundo Partidário deve ser obrigatoriamente repassado para os Institutos/Fundações Partidários. Cinco por cento devem subsidiar os programas de participação já referidos. Essas três destinações demonstram que, se realizados gastos administrativos até o total permitido, 75% dos recursos já estariam comprometidos, o que inviabilizaria, por extrapolar o total, a aplicação de mais 30% em favor de campanhas das mulheres, ainda que não se considere que, em tese, as candidaturas femininas poderiam chegar a 70% do total de candidaturas, o que, entretanto, é altamente improvável, por conta do inegável e odioso ranço histórico que restringe a participação feminina a níveis vergonhosos.
É certo, portanto, que os partidos não utilizam a totalidade do Fundo Partidário para financiar as campanhas eleitorais. Por mais que se economize, a prática demonstra que a maior parte desses recursos públicos é destinada para os outros fins previstos na legislação.
Caso se entenda que a decisão do STF se aplica apenas em relação aos recursos públicos efetivamente alocados pelos Partidos para o financiamento de campanhas, um possível ardil para driblar esse entendimento seria efetuar todos os pagamentos de natureza administrativa com recursos do Fundo e não destinar nenhum centavo para as campanhas eleitorais, as quais seriam financiadas apenas a partir da conta de recursos próprios da agremiação.
Para evitar isso, caberia responder, com risco de esvaziar completamente a necessária ação afirmativa, se o percentual de 30% também se aplica aos recursos privados dos partidos políticos utilizados em campanhas eleitorais?
Em outras palavras, seria válido confirmar que independentemente da origem – pública ou privada – quaisquer recursos aplicados em campanhas eleitorais deveriam observar, ao menos, a proporcionalidade de gênero entre as candidaturas existentes, de modo a evitar que um gênero fosse beneficiado em detrimento do outro, como sempre ocorreu.
Essa paridade, baseada na isonomia, abre outra discussão para saber se cada candidato, independente do gênero, tem direito a uma parcela mínima dos recursos alocados para as campanhas eleitorais. Afinal, se o partido não pode dar um mínimo de suporte ao seu candidato, mas lhe exige a fidelidade, por que a candidatura foi lançada? Essa questão, porém, deve ser abordada em outra ocasião.
Nesse momento, o mais relevante é compreender como serão calculados os 30% em prol das mulheres – medida justa, que visa corrigir erros históricos – e garantir que a importante decisão do STF não resvale para a inocuidade, aplicando o percentual apenas em relação à parte do Fundo Partidário usado nas campanhas eleitorais. Se nada for empregado ou transferido pelo partido para esse fim, trinta por cento de nada é nada. O significativo avanço não pode ensejar interpretação que acarrete retrocesso.
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