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Curso feminista explica porque no Brasil não se pode falar de gênero sem falar de raça

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Fernanda Canofre

O Brasil é o quinto país com maior número de feminicídios no mundo. Ainda assim, entre 2003 e 2013, os casos de homicídios de mulheres brancas no país caíram 9,8%, segundo o Mapa da Violência de 2015.  No mesmo período, os homicídios de mulheres negras tiveram um aumento de 54%. Passaram de 1.864 casos para 2.875.

O Brasil é o 129º no ranking mundial de igualdade salarial entre homens e mulheres, segundo o Índice Global de Desigualdade de Gênero de 2016. Um país onde homens têm um salário médio de R$ 1.831, mulheres em geral recebem R$ 1.288 e mulheres negras R$ 946, de acordo com pesquisa de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A mesma pesquisa chama a atenção para o número elevado de mulheres inativas, sem conseguir carteira assinada – quatro a cada dez brasileiras.

Quando se olha para as mulheres negras o cenário é pior. Segundo o Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil   – um relatório anual sobre inclusão no mercado de trabalho no país – as mulheres negras ocupam apenas 1,6% dos cargos em quadro gerencial e 0,4% do quadro executivo. De 548 diretores e diretoras em todo o país, apenas duas são negras.

“No Brasil, especialmente, não tem condição de tu falar de gênero sem falar de raça”, afirma a ativista feminista e do movimento negro, Winnie Bueno. Quando Luciana Genro fez o convite para que ela e a também ativista Joanna Burigo criassem um curso feminista voltado ao público do projeto Emancipa, de educação popular, essa era também uma certeza. A ideia de Winnie se comprova em qualquer análise sobre desigualdade no país. E foi um norte para as duas.

Winnie Bueno no lançamento do Emancipa Mulher | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Desde novembro do ano passado, elas vêm se encontrando para trocar experiências, vivências e conhecimento teórico para construir um curso de 8 meses de duração: o #EmancipaMulher. A proposta, lançada nesta segunda-feira (20), em Porto Alegre, é uma novidade dentro do Emancipa, cursos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com foco na educação popular, que existe desde 2007 em 7 estados do país. Com apoio de professores voluntários e totalmente gratuito, o Emancipa ajuda jovens de escolas públicas a buscar uma vaga no ensino superior.

No site do projeto, o Emancipa explica que seus cursinhos “além de refletir sobre o conteúdo exigido pelos vestibulares de uma maneira que esteja de acordo com o contexto vivido pelos estudantes, também prioriza a educação transformadora” para que os alunos “pensem as suas realidades de maneira crítica e emancipadora”. Com o retorno de Luciana Genro à presidência da ONG, depois de um tempo afastada devido a duas disputas eleitorais, a “emancipação” parecia precisar de feminismo na grade.

“As mulheres não estão aceitando mais passivamente a ideia de que seu lugar é o lar. Cada vez mais, as mulheres estão buscando se profissionalizar, se inserir na sociedade, no mercado de trabalho, na militância política, para isso precisam estudar”, explica Luciana, a quarta colocada na disputa presidencial de 2014, pelo PSOL. “A gente quer que esse estudo que o Emancipa proporciona, no cursinho popular preparatório ao Enem, também seja um estudo de empoderamento feminino e anti-racista”.

Entre teoria e vivências

As duas idealizadoras do Emancipa Mulher querem partir do ponto que gênero e raça não podem ser vistos como recortes isolados. Para elas, ambos são questões estruturantes da sociedade e não existem apenas como complementos uma da outra. “Elas estão entrelaçadas de uma maneira muito forte”, diz Joanna Burigo. “O diálogo que a gente pretende construir é um diálogo que enxergue o quão naturalizadas essas estruturas estão. Para além do que a gente vai construir no curso, em termos de repassar conhecimento que a gente adquiriu ao longo da nossa trajetória de vida, acho que vai ser muito importante pra gente ouvir como esse conhecimento teórico bate na realidade de vida dessas mulheres”.

Yasmin, aluna do Emancipa aprovada em Artes Visuais na UFRGS | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Joanna e Winnie pretendem fazer com que as aulas tenham escuta e fala, da mesma forma que elas o construíram. “Nas nossas trocas mesmo, a gente conseguiu fazer essa escuta e fala. A Joanna traz alguma coisa, algum conceito que eu não compreendo porque na minha trajetória enquanto mulher negra me foi negado. E, às vezes, eu trago coisas para a Joanna que pela trajetória de vida dela, ela também desconhece. Então, tem sido um processo de aprendizado formal para nós também”, conta Winnie.

Militante socialista e de esquerda, como mulher negra, ela diz que a dificuldade em articular questões raça, classe, gênero sempre foi uma “dificuldade presente” em sua vida. Enquanto a companheira lhe ensinou muito sobre teoria queer, Winnie trouxe a articulação do “critério raça em qualquer análise”. “Isso é possível e é necessário. Pela história de formação do mundo. A História de formação do sistema capitalista se dá a partir da exploração de pessoas negras. Qualquer coisa que tu for analisar no capitalismo, tu consegue colocar o critério racial”, diz ela.

Os quatro meses de encontros, debates e trocas, em torno do curso, também ajudaram a criar uma forte amizade entre as duas – que até então só se conheciam no ambiente virtual. Tanto Winnie, quanto Joanna são figuras importantes no debate do feminismo no país, com milhares de seguidores nas redes.

Joanna já está acostumada com cursos através de seu projeto Casa da Mãe Joanna, que tem mais de 6,5 mil curtidas no Facebook, mas diz que a perspectiva de levar um conhecimento que ainda parece “rarefeito”, exclusivo do ambiente acadêmico,  para ser “distribuído de forma gratuita para uma população que não teria acesso” foi o que a motivou a aceitar o convite. Ela diz que a expectativa é ver a teoria – que tanto ela quanto Winnie trazem de suas origens – dialogar com “perspectivas diferentes”.

“O que a gente espera é isso: que a gente consiga produzir, juntamente com as mulheres que vão participar do curso, uma narrativa de emancipação que seja perpassada por questões de gênero, por questões de raça, por questões de classe e que faça sentido para a vivência delas. Não que seja algo que venha dos livros”, projeta.

A primeira edição do #EmancipaMulher acontece só em Porto Alegre, com inscrições abertas a partir dessa semana. Para mais informações sobre o curso e como participar, acesse a página do Emancipa ou Casa da Mãe Joanna.

Lançamento do Emancipa Mulher. Na foto: Joanna Burigo. Foto: Guilherme Santos/Sul21

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