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Comunidade ‘incel’: Como a misoginia se espalha em grupos de homens na internet

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Veja publicação original: Comunidade ‘incel’: Como a misoginia se espalha em grupos de homens na internet

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Por Melissa Jetsen

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Jack Peterson tornou-se um porta-voz não-oficial da comunidade incel (celibatários involuntários). E aí ele decidiu abandoná-la.

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Em maio, Jack Peterson foi a um encontro marcado pelo Tinder. Com uma mulher. Eles jantaram num restaurante italiano em Chicago e conversaram casualmente sobre suas vidas. Para Peterson, que tinha 19 anos na época, foi uma conquista de proporções épicas.

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Até recentemente, Peterson se identificava como um “incel” (ou celibatário involuntário). Os incels acreditam que, por motivos totalmente fora do seu controle — são baixos demais, carecas demais, sem mandíbula definida –, não são capazes de atrair mulheres. Eles acham que estão condenados a ficar sozinhos para sempre.

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Para muitos incels, essa visão de mundo fatalista vem acompanhada de um ódio tóxico em relação às mulheres, a quem eles culpam por sua solidão. Incels regularmente atacam e desumanizam as mulheres na internet; alguns fantasiam estuprar e matar as que os rejeitaram.

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Peterson diz ter entrado para esse movimento por causa da camaradagem que existe entre os homens, não pela misoginia. Ele criou laços com outros homens que também se sentiam feios e inadequados. Mas aí, algo aconteceu — e ele quis abandonar aquele mundo.

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Em 23 de abril, Alek Minassian jogou uma van contra pedestres em uma rua de Toronto, matando dez pessoas (oito das quais eram mulheres). Horas antes, ele postou uma mensagem no Facebook celebrando a “Rebelião Incel”. Minassian também elogiou Elliot Rodger, autor de um massacre em 2014 que atribuiu o crime ao seu ódio pelas mulheres.

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De repente, todo mundo queria conversar com os incels. Quando a imprensa começou a procurá-los, Peterson, que trabalhava como voluntário em um site popular dessa comunidade e tinha acabado de lançar o podcast Incelcast, decidiu vir a público. Ele queria dizer ao mundo que nem todos os incels são misóginos violentos. Alguns eram pessoas como ele — párias, derrotados confessos que não tinham ninguém além de uns aos outros.

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Ele apareceu na Global News, do Canadá, onde defendeu que o conteúdo misógino e as referências a Rodger e outros assassinos fossem apagados dos sites incel. Ele falou com a BBC. Foi sujeito de um perfil no site The Daily Beast. Falou e falou, e as pessoas pareciam estar ouvindo. Ele tornou-se o porta-voz não-oficial dos incels.

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E então, uma semana depois, Peterson abandonou a comunidade abruptamente.

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A decisão foi anunciada em seu canal pessoal no YouTube, no começo de maio. No vídeo gravado em seu quarto, com cartazes dos filmes “De Olhos Bem Fechados” e “Eraserhead” e uma flâmula do time de beisebol Chicago Cubs ao fundo, Peterson explicou que tinha pedido aos donos do site incels.me para “bloquear minha conta permanentemente, para que eu não possa mais postar no fórum”.

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De alguma maneira, ele vislumbrou uma saída.

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A iniciação na comunidade

Peterson, cujo nome verdadeiro é Kalerthon Demetro, cresceu em Chicago, filho de uma mãe solteira. Ele largou a escola no ensino médio e sempre foi um adolescente solitário com acesso ilimitado à internet.

Sua primeira experiência com comunidades online veio aos 11 anos, no fórum 4chan. Deprimido e sofrendo bullying na escola, Peterson encontrou pessoas parecidas com ele. Era seu espaço seguro.

Ao entrar na adolescência, Peterson tornou-se um jovem recluso, passando semanas sem sair de casa. A certa altura, ele descobriu a comunidade dos “artistas do xaveco” e os vídeos do YouTube que ensinavam como conquistar meninas. Ele não tinha muita sorte nesse departamento, e foi então que ele começou a considerar a vida amorosa um jogo. Um jogo que ele claramente estava perdendo.

Depois disso, ele encontrou vídeos postados por um usuário chamado Steve Hoca. O tema dos vídeos era sua vida de “solidão real e forçada”, ou TFL, na sigla em inglês. O termo costuma ser usado na internet por homens que acham que não encontram companhia ou sexo por causa das mulheres.

Cerca de um ano e meio atrás, Peterson começou a acompanhar o fórum r/incels, no site Reddit. Ele já tinha ouvido falar do termo no 4chan, mas foi então — lendo histórias de solidão e rejeição — que Peterson percebeu que o termo também se aplicava a ele. Ele também era um incel.

“Sempre achei que tinha algo errado comigo porque todas as outras pessoas estavam transando e entrando em relacionamentos e eu não conseguia”, disse ele ao HuffPost em uma série de entrevistas.

Warren Spielberg, psicólogo especializado nos problemas de meninos e homens, compara os sites de incels a gangues, que também oferecem aos jovens vulneráveis uma sensação de pertencer a algo.

“Todas as gangues são formadas em torno de um inimigo”, diz Spielberg. “Neste caso, são as mulheres.”

“Eles estão furiosos porque as mulheres não estão os salvando”, afirma Spielberg.

COURTESY OF JACK PETERSON; INCELS.ME
On the left, Peterson around the age of 12. On the right, results from a recent survey of incels.me users.

Por dentro dos fóruns dos celibatários

Em novembro de 2017, o Reddit baniu a comunidade r/incels por incitação à violência contra as mulheres. Na época, Peterson estava completamente envolvido na cultura incel. Pela primeira vez em muito tempo, diz Peterson, ele fez amigos.

Quando um novo site, o incels.me, foi lançado para ocupar aquela lacuna, ele foi um dos primeiros usuários. Nos cinco meses seguintes, Peterson escreveria 7 207 posts.

“Era como emprego em período integral”, diz ele, rindo nervoso.

Peterson diz que tinha uma aba aberta no incels.me o tempo todo, quase todos os dias. Ele e outros usuários trocavam mensagens dizendo sentir-se feios, solitários e deprimidos — uma espécie de competição para ver quem estava pior.

Embora haja poucas pesquisas sobre a comunidade incel, uma pesquisa recente com 300 participantes ativos do incels.me dá alguns insights sobre os usuários.

Eles são jovens — mais de 66% dizem ter menos de 25 anos, como Peterson — e quase dois terços dizem não ter amigos de verdade. Mais de metade disse já ter considerado cirurgia plástica. A maioria disse sofrer de doenças mentais ou diferenças neurológicas, como autismo.

“Não tenho namorada nem amigos nem nada de bom acontecendo na minha vida, mas pelo menos tenho vocês”, escreveu Peterson em março. Às vezes, os posts são dolorosamente sinceros. Quando perguntaram no fórum o que os incels fariam se arrumassem uma namorada pela primeira vez, Peterson respondeu que daria beijos e abraços nela.

O perigo da misoginia

Peterson descreve a comunidade incel como um grupo de apoio. Mas, junto com posts sobre tristeza, havia discussões comemorando o assassinato de mulheres e defendendo a redução dos direitos femininos.

Depois de crescer no 4chan, onde as pessoas fazem postagens provocativas e ofensivas só para chocar, Peterson disse estar acostumado com a misoginia explícita.

“Tentava filtrar tudo aquilo para encontrar os conteúdos bons”, diz ele.

Às vezes ele conversava com outros incels que iam longe demais. Em março, um usuário postou uma mensagem com o título: “Outra vagabunda empacotou”, em referência ao assassinato de uma modelo. Peterson respondeu: “a violência não é uma coisa boa”Quando perguntaram quais as vantagens e desvantagens do estupro, ele disse: “desvantagem — você está cometendo estupro. não é legal, mano”. Quando outro usuário postou uma lista de leis que beneficiaria os incels — que incluía a proibição do voto e do trabalho para as mulheres –, Peterson escreveu: “as leis são ok, nós é que somos feios demais para ser bem-sucedidos”.

Peterson diz com convicção que não odeia mulheres. Se havia alguém que ele odiasse na época em que se identificava como incel, era ele mesmo. Muitos de seus posts antigos estão cheios de ódio por si próprio e referências ao suicídio.

“Preferia ser literalmente uma barata a um homem feio”, escreveu ele. Quando pediram que os usuários se descrevessem com uma única palavra, Peterson escolheu “lixo“. Um usuário certa vez escreveu que as mulheres não são humanas. “Sim, são, mano”, escreveu Peterson. “Nós é que não somos.”

Ele não nega que haja ódio e violência genuínos na comunidade incel, dizendo que alguns membros são “uns loucos do caralho”. Ele também diz que escreveu coisas das quais hoje se arrepende.

Questionado sobre os efeitos de longo prazo dessa imersão numa subcultura que desumaniza as mulheres, Peterson disse não ter certeza dos efeitos. Ele diz interagir tão raramente com mulheres que é difícil avaliar se sua capacidade de ter compaixão e se comunicar foi afetada.

A saída

Depois do ataque de Toronto, o interesse da imprensa sobre os incels explodiu. Mas havia um problema: era praticamente impossível encontrar um incel disposto a dar entrevistas. Quando Peterson veio a público, seu telefone não parou de tocar.

E, pela primeira vez em muito tempo, Peterson começou a falar com pessoas de fora daquela comunidade.

“Dar essas entrevistas, aparecer na TV e tal, literalmente fui obrigado a sair de casa”, diz ele. “Fui forçado a ser produtivo. Foi um alerta. Há outras coisas na vida além de ficar online falando que sou um derrotado.”

Ele encontrou jornalistas, incluindo várias mulheres que demonstraram empatia e curiosidade em relação à sua vida e isso pareceu fazer diferença. Especialistas que trabalham com rapazes como Peterson dizem que muitas vezes basta uma conexão real com adultos saudáveis e atenciosos.

“Esses caras precisam se expor a homens e mulheres dispostos a dizer: ‘Uau, o que você está dizendo não faz sentido e parece que está te fazendo muito mal'”, diz Robert Heasley, co-diretor do Men’s Resource Center, na Filadélfia, e pesquisador do tema masculinidade há três décadas.

Peterson concorda: “Quando finalmente fui exposto a esses seres humanos normais e sãos que foram gentis comigo, me senti um vilão por fazer parte desse grupo”.

No vídeo em que anunciou sua saída da comunidade incel, ele diz que não quer ficar se lamentando.

“Tem coisas que eu quero fazer”, diz ele para a câmera. “Se eu continuar nessa comunidade — e nada contra a comunidade, fiz amigos –, mas, se continuar, nunca serei capaz de sair dessa vida. Nunca serei capaz de ascender.”

Agora ele está passando por uma espécie de reeducação. Peterson vem lendo muitas reportagens críticas dos incels, tentando entender a perspectiva dos outros. E ele espera levar uma vida mais produtiva daqui em diante. Uma vida que envolva mulheres.

Ele tem até mais encontros marcados pelo Tinder.

“Estou começando a sentir que, OK, talvez eu seja um cara normal que teve experiências ruins e ficou trancado em casa alguns anos”, diz ele. “Talvez eu possa ser uma pessoa normal.”

 

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