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Seja na TV, no cinema ou no imaginário popular, as mulheres estão sempre em guerra. Brigam pelo amor de um homem, disputam o título de a mais bem-vestida e nunca se dão bem com a sogra. Essa percepção distorcida (e machista) da realidade, no entanto, não traduz a profundidade do relacionamento agridoce entre as mulheres.
Somente uma mãe, irmã ou amiga é capaz de compreender as aflições diárias pelas quais passam. “Estamos vivendo a redescoberta da sororidade. Quem se comove com o sofrimento de uma mulher é outra mulher”, acredita Letícia Sabatella.
A atriz mergulhou na relação feminina para interpretar Helô no filme “Querida Mamãe”, adaptação da peça teatral homônima de Maria Adelaide Amaral _ainda sem data de estreia. A personagem passa por um período conflituoso após um casamento mal-sucedido e vê a relação com a mãe se deteriorar com o despertar de uma paixão por outra mulher. Nesse momento, todas refletem sobre a necessidade do apoio mútuo para a própria sobrevivência. “É comovente ver essa universalidade que é a relação entre mulheres, se enfrentando e se amparando e se comovendo com a existência uma da outra”, descreve Letícia.
Nesta entrevista, Letícia também conta como passou a explorar a agressividade para gravar o filme e comenta a experiência de viver a primeira personagem homossexual de sua carreira.
Marie Claire – Para interpretar Helô no filme, você buscou inspiração em sua própria vida ou na relação com sua mãe?
Letícia Sabatella – A inspiração foi na memória emotiva de muitas mulheres, na relação entre elas, que é mais complexa em nossa sociedade. Muitas delas foram criadas para, de algum modo, não se entenderem. Mas a competição feminina é uma grande ilusão porque, no fim das contas, são elas que se apoiam mutualmente. Em geral, num momento de necessidade, a ajuda vem de uma amiga e o apoio, da irmã ou da mãe, por mais conflituosa que seja a relação. O filme traz esse amor por baixo dos desentendimentos. Mãe e filha se alfinetando, se cobrando, porém, uma ao lado da outra.
MC – Como foi a experiência de interpretar uma mulher que se relaciona amorosamente com outra?
LS – É algo que nunca tinha tido oportunidade de fazer. Em certo momento do filme, o fato de ela se envolver com outra mulher é quase indiferente. É muito significativo para a mãe, Ruth (Selma Egrei). Mas para a Helô, é como se tivesse encontrado a delicadeza que precisava, a compreensão ou alguém que a enxergasse. Ela descobre um olhar mais sensível. Lembro do dia em que estava cuidando da minha filha, Clara, e ela disse: “Nossa, você é boazinha”. Quando falou isso, notei que não sou tão ruim, tão precária quando pensava. Ela falou com tanta pureza, tanto amor. Aquilo quebrou todas as minhas inseguranças, me senti mais forte. A Leda (Cláudia Missura) tem essa função de ver além das aparências da Heloísa. É um amor que vem como um bálsamo para a Helô, que está tão sem vida no começo da história. Dá para ver que o relacionamento é muito legítimo e saudável.
MC – O filme ainda não tem data para estrear, mas como você imagina que será a reação do público ao ver um relacionamento entre duas mulheres?
LS – Quem assistir talvez venha a se comover porque é realmente um encontro de almas. Mas não é um filme romântico. É um drama. A história de amor, na verdade, é entre mãe e filha. O envolvimento com Leda gera mais desentendimentos e conflitos entre elas, tira todo mundo da zona de conforto. Não é um filme para pessoas que têm uma definição sexual ou outra. É bem mais amplo. Talvez ajude muitas famílias a lidar com a situação. As pessoas poderão refletir sobre os buracos criados na alma de quem é forçado a representar um papel na sociedade. É uma doença tirar a pessoa de sua identidade.
MC – Como é, para você, uma atriz de personalidade delicada, interpretar alguém que reage com tanta agressividade à vida?
LS – Está sendo um exercício. Pude colocar para fora minha agressividade. Acredite: Ela existe! Apenas não tenho motivos para exercê-la dessa forma. Não teria saúde para isso.
Vejo luz e sombra dentro de mim, assim como em um assassino ou numa pessoa que esteja me xingando na rua, ou alguém que perde as estribeiras em determinado momento. Quantas vezes eu mesma já perdi o controle em uma situação de estresse… Aos 45 anos, já passei por muitas situações limites. Essa noção me faz compreender pessoas como a Helô. Já tive reações que me deixaram envergonhada e orgulhosa de mim mesma. A Helô parece viver em um estado de TPM constante e eu compreendo essa hipersensibilidade. Às vezes, fico noites sem dormir, tenho um lado bastante compulsivo e obsessivo. Mas uma rotina mais saudável me deixa melhor. A ausência de condições também podem me tornar instável.
MC – Qualidade de vida, para você, influencia o comportamento?
LS – Todas as pessoas que têm boa alimentação, não vivem para o trabalho e são respeitadas como seres humanos, e não apenas como máquinas, podem apresentar reações muito mais saudáveis. Já quem vê suas possibilidades de boas condições de vida serem tiradas podem reagir de forma bem mais nociva. Há casos e casos, mas acredito que estigmatizar alguém e torná-lo o bode expiatório para os males da sociedade não é a melhor saída. É preciso reconhecer as sombras que existem dentro de si próprio. A partir daí, é possível impor limites para determinadas situações. O que não pode é sair matando todo mundo, apoiando a pena de morte. Do contrário, a sociedade se torna doente e autoritária. O autoritarismo é a cegueira da própria sombra. Acreditar ser inteiramente bom e o outro completamente mau é ter um tipo de mentalidade sem compaixão.
MC – Sua profissão a ajudou a desenvolver essa empatia pelas pessoas?
LS – Eu já era assim quando criança. Sempre gostei de me relacionar com crianças de todas as classes sociais. Cresci na roça, em Itajubá, Minas Gerais, e depois fui para Curitiba, onde estudei balé clássico no teatro Guaíra. Era uma escola pública na época: eu pegava ônibus e não tinha esse “apartheid” social. Nunca vivi numa redoma superprotegida e acho que isso ajudou. Confesso que me incomodava com as diferenças. No Natal, sentia vergonha de ganhar uma boneca, já que meus vizinhos não tinham nada. Por vezes, larguei o presente para ir brincar de esconde-esconde, pega-pega e outras atividades coletivas com as crianças. Preferia brincar na rua. A profissão é uma consequência de uma sensibilidade minha, meio escapista. Fui uma criança que gostava muito de ler, de ter o mundo próprio, minhas fantasias. Aprendi muito com meus avós. Eles contavam histórias e levavam caixinhas de fósforo para brincar de casinha. Minha imaginação era muito fértil.
Veja publicação original: “Competição entre mulheres é uma grande ilusão”, diz Letícia Sabatella