Saiu no site ÉPOCA NEGÓCIOS
Veja publicação original: Como uma executiva assumiu um empreendimento de € 1 bilhão para expandir as fronteiras da medicina
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Leonor Beleza, CEO da Fundação Champalimaud, foi incumbida de colocar Portugal no mapa global de inovação
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Mesmo quem viu vídeos e fotos do prédio — um orgulho arquitetônico de Lisboa — se impressiona ao chegar à sede da Fundação Champalimaud, à margem do rio Tejo, na freguesia de Belém. A amplidão do jardim, as linhas orgânicas dos três prédios e os janelões imensos disputam a atenção do visitante. Percebe-se que foram investidos com bom gosto os € 100 milhões destinados à construção desse centro de pesquisas, inaugurado em 2010. O projeto é do mesmo arquiteto que assinou o Complexo para o Cérebro e as Ciências Cognitivas do MIT, nos Estados Unidos, o indiano Charles Correa. Dentro da fundação, cerca de 400 pesquisadores de diversos países avançam em território desconhecido, em estudos sobre neurologia e câncer, justificando o letreiro prateado no jardim: “Champalimaud Center for the Unkown”.
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O patrimônio da instituição passa de € 1 bilhão. No prédio principal, da antessala da presidência pode-se ver o pôr do sol no Tejo e oliveiras centenárias em terraços suspensos. Lá trabalha a executiva que comanda toda essa operação: Leonor Beleza, advogada por formação, política de carreira, apaixonada por saúde e ciência.
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Leonor é uma mulher elegante e discreta. Não costuma dar entrevistas. Na tarde luminosa em que recebeu Época NEGÓCIOS, começou a conversa mostrando interesse pelo Brasil. Comentou a política nos dois países, discordou do assessor, riu um pouco e logo mergulhou nas explicações sobre sua missão e trajetória.
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A executiva está convicta de que o progresso da saúde passa pelo domínio dos dados, como fizeram as grandes empresas de tecnologia da informação. “A área da saúde é das mais prodigiosas em empreendedorismo”, diz Leonor. “Há um mundo de necessidades e também um mundo de possibilidades criadas pela inteligência artificial e pelo uso de dados.” De acordo com sua estratégia, aliar conhecimento, fluxo regular de novos dados e poder de análise nos levará adiante no território do desconhecido. Tratamento, pesquisa e desenvolvimento ocorrem em espaços vizinhos: o complexo incuba, no momento, seis startups. Os projetos dessas empresas incluem o estudo de regeneração cerebral, da relação entre visão e comportamento e do uso de impulsos neurais para controlar máquinas, como drones.
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Leonor já desbravou outras áreas. Em 1985, tornou-se a primeira mulher a ocupar um ministério em Portugal, na pasta da saúde, no governo do social-democrata Cavaco Silva. Antes disso, já havia assumido cargos importantes na administração pública. Ex-ministra, tornou-se conselheira de dois bancos locais, o Totta & Açores e o BCP, em períodos distintos. Esse currículo fez dela uma das mulheres mais influentes de Portugal, cotada em seu círculo de admiradores como candidata natural à presidência da república. Mas seu principal legado até o momento é dirigir a Fundação Champalimaud. O centro clínico colocou Portugal no mapa da pesquisa e dos tratamentos avançados de câncer e neurologia.
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Desde que saiu da crise financeira do fim dos anos 2000, Portugal entrou numa boa fase econômica. Isso se reflete em números, como as patentes depositadas na Europa por residentes do país. O indicador cresce continuamente desde 2012 e chegou no ano passado a 220 pedidos, quantidade similar à da Rússia, por exemplo. Alguns hubs de inovação, como a Fundação Champalimaud, têm papel crucial nisso.
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Leonor ajudou a criar a entidade a partir de um convite inusitado feito por António Champalimaud, um dos homens mais ricos de Portugal no século 20. Os dois começaram a conversar a respeito em 2000. “Um dia, Champalimaud me telefonou dizendo que pretendia criar uma fundação dedicada a pesquisas em saúde e me perguntou se eu concordaria em ser presidente dessa instituição. Foi algo extraordinário”, conta a executiva. “Uma coisa é tomar a iniciativa de realizar algo. Outra, bem diferente, é criar um projeto que depende das decisões de outra pessoa”, conta.
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Aos 19 anos, em 1937, Champalimaud começou a gerir os negócios do pai e ergueu um império em cimento, aço, construção, bancos, seguros e vinhos — nada a ver com saúde. Quatro décadas depois, em 1974, após a Revolução dos Cravos, seu patrimônio foi tomado pelo governo português. António se reergueu no Brasil, começando pelas áreas que conhecia bem, cimento e aço, até expandir para o agronegócio.
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De volta a Portugal, nos anos 90, retomou os bens confiscados. Quis vender seus ativos no setor financeiro para o espanhol Santander, mas o governo português vetou o negócio — o impacto na economia local seria muito grande. Ele então se tornou dono do Banco Totta & Açores e assim passou a trabalhar com Leonor, presidente do conselho fiscal. “Eu era uma personagem pública e todo mundo sabia quem ele era, claro. Mas eu o conhecia muito mal”, diz a executiva. “Numa fase curta da vida, havíamos nos encontrado uma vez e falado outras poucas vezes, quando ele comprou o banco Totta. Durante muito tempo não tivemos conversa nenhuma até aquele telefonema, em 2000.”
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O bilionário contou a ela, naquele momento, sobre seu plano de criar a fundação. Em 2004, Champalimaud morreu vítima de câncer de pâncreas. Ele nunca havia sido filantropo, mas seu testamento era claro: legava € 500 milhões para a criação de uma instituição de pesquisa de ponta contra o câncer e queria Leonor na presidência.
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Nascida no Porto, ela, 70 anos, dois filhos e dois netos, vem dando forma a esse projeto inovador, que inseriu Portugal no roteiro internacional das pesquisas em saúde. Tornou-se herdeira de uma responsabilidade enorme, vinda de uma pessoa de quem não era próxima. Só soube qual seria sua missão exata depois da morte de Champalimaud e da abertura do testamento. Àquela altura, não tinha nenhuma intenção de voltar a se dedicar profissionalmente a questões de saúde. Como ministra, já havia se deparado com muitos dos percalços de um cargo público. Respondeu a processos judiciais, já resolvidos, por um escândalo de distribuição de sangue contaminado. Champalimaud não era o único poderoso a admirá-la. Em seu livro de memórias, o ex-presidente português Cavaco Silva a elogia e reconhece a coragem com que ela enfrentou “grupos de interesse” do setor de saúde.
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Com base em sua formação em Direito, Leonor já havia ajudado a escrever parte da história recente portuguesa. Participou da reforma do código civil, depois da Revolução dos Cravos. “De uma hora para outra, mudamos tudo”, diz, sobre aqueles tempos. “Todos que participamos do processo tínhamos a noção de que era preciso aproveitar o momento e fazer depressa, antes que se estabelecesse uma sociedade convencida de que se poderia seguir devagarinho.” O problema, completa ela, é que leis não mudam a mentalidade — essa leva mais tempo.
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Começou assim, nos anos 70, a defender publicamente os direitos das mulheres, que só com o fim da ditadura de António de Oliveira Salazar (governante de Portugal entre 1933 e 1968) tiveram acesso a carreiras na diplomacia e no Judiciário. Até sua nomeação como secretária de Estado e depois como ministra, nenhuma mulher tinha chegado lá. Teve de insistir para que, nos textos do governo, os cargos fossem escritos no feminino.
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Aceito o convite de Champalimaud, Leonor guardou o segredo da proposta e pediu instruções detalhadas, que nunca vieram. Nem no testamento. Um grande amigo e advogado do bilionário, Daniel Proença de Carvalho, hoje presidente do conselho de curadores da fundação, chegou a fazer ao bilionário perguntas relacionadas ao tema, mas não obteve uma resposta exata sobre como a fundação deveria trabalhar. “O Champalimaud tinha intuição para escolher colaboradores. Em seu percurso profissional, Leonor tinha dado provas de coragem política e cívica. E coragem é uma característica que ele admirava nas pessoas”, lembra Carvalho.
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Passados 15 anos, a Fundação Champalimaud tem rumo definido e reputação internacional. Conta com nomes de peso no corpo científico e no conselho de curadores, como o neurocientista português António Damásio, o ganhador do Nobel de Medicina de 2002 Robert Horvitz e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A política de trabalho é arrojada e estimula os pesquisadores a se submeter a avaliação externa. Recentemente, eles conseguiram captar € 30 milhões de outras fontes para seus trabalhos. Em 2012, a revista americana The Scientist classificou a fundação como o melhor lugar para trabalhar com ciência fora dos Estados Unidos. Chegar a esse ponto não foi fácil.
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Havia decisões complicadas a tomar no início. Como usar a herança? O sucinto testamento foi interpretado com todo o rigor. O doador pretendia apoiar a pesquisa científica na área da medicina. Queria, portanto, ajudar as pessoas a terem mais qualidade de vida. “Champalimaud trabalhava por resultados bem traçados”, diz Leonor. “Então, começamos em 2005 a estabelecer a rede de contatos essenciais com pessoas, laboratórios, universidades e fundações.” Na primeira fase, os cientistas ajudaram a pensar nos temas que mereciam prioridade. Com curadores escolhidos, equipe montada e áreas determinadas, partiu-se para a construção do prédio, na orla lisboeta, não muito distante do ponto de onde navegadores portugueses partiram para o desconhecido, no século 16. Optaram por financiar as próprias pesquisas, apesar dos muitos conselhos recebidos para que apoiassem o que já vinha sendo feito. “Teria sido mais fácil, sem dúvida, apoiar o que já existia. Do jeito que fizemos, o risco era maior, mas também a possibilidade de alcançar uma reputação de mais destaque, caso tudo corresse bem.”
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O objetivo do modelo de gestão adotado é garantir a perenidade da herança. A julgar pelo patrimônio, que dobrou de tamanho, o trabalho está bem-feito. No fim de 2017, gestores profissionais administravam € 480 milhões em ativos com liquidez pertencentes à fundação. Como sucesso atrai sucesso, em setembro de 2018 um neto do fundador da Danone doou € 50 milhões à instituição. A verba financia a construção de um centro clínico dedicado à pesquisa e ao tratamento do câncer de pâncreas. A nova unidade, receberá também o sobrenome Botton, da família espanhola que se juntou ao Champalimaud na empreitada. Deverá abrir ao público no fim de 2020.
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