Saiu no site BBC Brasil:
“Se a lei Maria da Penha existisse naquela época, eu teria buscado proteção nela”, diz à BBC Brasil, por telefone, a ativista que empresta seu nome a uma das legislações de combate à violência doméstica mais importantes do mundo.
“Mas antes ninguém nem falava em violência doméstica. Dizia era que fulana tinha marido ruim.”
“Aquela época” eram os anos 1980 e a história que Penha conta já se tornou uma das mais significativas do movimento feminista brasileiro.
Biofarmacêutica de formação, a cearense sobreviveu a duas tentativas de assassinato pelo ex-marido. Na primeira, um tiro à queima roupa de espingarda pelas costas, enquanto dormia, a deixou paralisada da cintura para baixo. Poucos meses depois, ele tentaria eletrocutá-la sabotando o chuveiro elétrico.
Mas apesar de conseguir levar o ex-marido à Justiça duas vezes, por quase 20 anos Penha tentaria sem sucesso colocar o culpado detrás das grades. Isso só foi possível depois que o caso foi parar nos tribunais internacionais.
Um dos desdobramentos do caso foi a lei que hoje leva seu nome.
‘Amor demais’
Nos início dos anos 1980, o Brasil ainda não dispunha de nenhuma delegacia especializada na proteção da mulher.
Naquela época, a preocupação de movimentos feministas no Sudeste era desconstruir a defesa de maridos e namorados homicidas que, levados a julgamento, alegavam na Justiça crime passional.
“As mulheres eram assassinadas pelos companheiros e a defesa investia na história de que eles tinham cometido esses atos tresloucados porque amavam demais”, lembra Penha.
Em um dos casos mais simbólicos, o paulista Raul Fernandes do Amaral Street, conhecido por Doca Street, foi condenado a apenas dois anos de prisão – com suspensão condicional da pena – por ter matado a namorada, Ângela Diniz, na casa de veraneio dela em Búzios, em 1976.
Não foi senão cinco anos depois, com o slogan “quem ama não mata”, que os movimentos feministas conseguiram que a sentença fosse revista e elevada para 15 anos de prisão.
Em outro caso que reforçava o histórico de penas brandas, o cantor Lindomar Castilho matou a ex-esposa, a também cantora Eliane de Grammont, durante uma apresentação dela em 1981. Ficou sete anos na prisão.
Penha havia conhecido seu marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, nos anos 1970, quando fazia mestrado em São Paulo. Viveros, conta Penha, era prestativo e benquisto. Tinha pouco dinheiro e muitas vezes recebia ajuda da namorada cearense.
Eles se casaram em 1976 e tiveram sua primeira filha no fim daquele ano. Terminados os estudos, foram viver em Fortaleza.
Água para o vinho
“Quando a naturalização dele saiu, por conta do casamento e das filhas, ele mostrou a verdadeira face. Eu fiquei perdida”, conta Penha à BBC Brasil.
“Ele ficou violento, batia nas crianças por nada. Eu vivia tensa, procurando evitar que as crianças quebrassem alguma coisa. Isso foi me deixando muito insegura no relacionamento.”
A ativista diz que levou anos até entender o efeito psicológico da mudança de Viveros. “Ficava ansiosa porque não sabia se um dia ele ia chegar todo feliz ou chutando tudo pro ar.”
A brutalidade permeava a relação dos pais com as filhas, quem ele costumava punir colocando sob o chuveiro com água fria.
“As minhas filhas na época tinham sete, cinco e dois anos de idade incompletos. A minha pequenininha estava se equilibrando para andar e um dia fez xixi sentada. Com a mão suja de xixi ela se levantou e apoiou a mão na parede. Ele deu um grito alto, assustou ela e deu-lhe um tapa forte”, diz.
“A do meio chupava o dedo. Ele amarrou a mão dela com um cordão para ela parar. Aí ela conseguiu desamarrar, e ele bateu nela e colocou ela debaixo do chuveiro com água fria”, conta Penha.
Ela diz que esses fatos eram mantidos em segredo do resto da família e amigos. Apesar de se sentir aprisionada e isolada, a esposa temia que um pedido de divórcio fosse gerar uma reação ainda mais violenta do marido.
Mas a relação já estava irremediavelmente fraturada.
Sobrevivente
Certa manhã, em maio de 1983, Penha despertou com um estampido agudo dentro do quarto. Tentou se mexer e não conseguiu. “Puxa, o Marco me matou”, pensou.
“Chegaram meus vizinhos, que eram médicos, e quando me examinaram eu estava muito mal. Tinha um rombo nas minhas costas e eu já estava perdendo quase todo meu sangue para o colchão.”
Viveros contaria à polícia que acordou no meio da noite com barulho em casa. E que ao chegar à cozinha, deparou-se com uma gangue de quatro assaltantes. Após uma breve luta, eles teriam lhe acertado um tiro de raspão no ombro e baleado Maria da Penha, que se encontrava em outro quarto, adormecida.
Penha, que passaria os quatro próximos meses no hospital, não tinha como questionar essa versão mas já tinha dúvidas sobre ela. “Eu raciocinava, como é que um homem luta com quatro pessoas e não morre, não leva um tiro? E eu, dormindo, levei um tiro”, diz.
Nos próximos meses, a história de Viveros cairia como um castelo de cartas. Nenhum vizinho, mesmo os vários que se sobressaltaram com os tiros nas primeiras horas da manhã do fatídico dia, viu os supostos assaltantes deixando a casa.
As marcas da entrada na casa da família nunca confirmaram que houve arrombamento. As empregadas acharam uma espingarda no armário de Viveros da qual ninguém jamais havia ouvido falar.
O próprio cairia em contradições ao ser chamado para depor uma segunda vez à polícia.
Ainda retomando os movimentos básicos do corpo e reprendendo a viver em cadeira de rodas, Penha diz que a crueldade continuava. Na volta para casa do hospital, ainda no carro, Viveros lhe ordenou que não recebesse visitas nem de amigos nem de parentes. Aos amigos que queriam visitar ou ajudar financeiramente, ele dizia que parassem com “mimos” e “mariconadas”.
“Eu fiquei em uma espécie de cárcere privado”, conta Penha. “Minha família ligava e eu inventava desculpas, dizia ‘estou cansada’… para obedecer às ordens dele”, afirma a ativista.
Mas foi só quando Viveros tentou eletrocutá-la, levando-a para baixo de um chuveiro elétrico, que Penha decidiu que era hora de abandonar o casamento de vez.
19 anos e seis meses
“Passei 19 anos e seis meses lutando para ele ser preso, e durante esse tempo ele foi julgado e condenado duas vezes, e duas vezes saiu do Fórum em liberdade por conta de recursos”, conta Penha. Foi o primeiro julgamento fracassado, oito anos depois, que a levou a contar a história em um livro, Sobrevivi, Posso Contar.
No lançamento, ela disse que o homem que escapara dos tribunais brasileiros não deixaria de ser condenado por qualquer leitor que ouvisse sua história.
Abraçado por duas organizações internacionais de direitos humanos – Cejil (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional) e Cladem (Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher) -, o caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998.
Ao condenar o Brasil, em abril de 2001, a Corte determinou que o país prendesse Viveros e recomendou que fossem garantidas mais proteções legais para as mulheres.
O ex-deputado cearense Mário Mamede recorda quando alguém de sua assessoria lhe procurou em 2002 dizendo que o crime de Viveros estava para prescrever e que a determinação do tribunal internacional seria descumprida.
A razão era que a Justiça cearense não conseguia localizar Viveros. “Como assim?”, surpreendeu-se Mamede, que acompanhou o caso como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará. “Todo mundo sabe que ele vive em Natal e dá aula na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.”
Ali mesmo ligou para o reitor da universidade e obteve o endereço do professor, que foi então notificado. Julgado novamente, Viveros foi condenado a oito anos de prisão – ficou menos de dois.
“Ele cumpriu muito pouco da pena, porque o Tribunal de Justiça do Ceará abateu o tempo que ele passou com recursos”, contou Mamede à BBC Brasil.
“Mas nós ficamos aliviados, porque ele ia ficar em total e absoluta impunidade, como se o fato não tivesse existido. Para a Justiça, ele seria um homem livre e limpo. Com a condenação, mesmo tendo cumprido só uma pena simbólica, ele é um homicida.”
Lei Maria da Penha
No dia 7 de agosto de 2006, cinco anos depois da condenação internacional, o Congresso aprovou a Lei 11.340.
“Essa é uma vitória democrática de todas as mulheres do nosso Brasil”, discursou o então presidente Lula após a aprovação do projeto, em uma cerimônia que contou com a presença da própria Penha.
“Mas se for possível dar um nome a essa lei – e eu acho que nos já a batizamos -, eu acho que essa lei deveria se chamar Maria da Penha.”
A lei já nascia sendo considerada pela ONU como um dos mais bem sucedidos casos de resposta à violência doméstica. Ela ampliou o conceito de violência contra as mulheres, que agora passava a ser não apenas física e sexual, mas também moral e psicológica – uma forma de combate à dinâmica de isolamento, humilhação e manipulação das vítimas por parte dos seus agressores.
A legislação elevou as penas e determinou a criação de infraestrutura de atendimento a mulheres agredidas, como abrigos especiais e delegacias de mulheres permanentes.
Foram também estabelecidos instrumentos legais para que os juízes pudessem tomar medidas urgentes, como tirar as mulheres de casa sem prejuízo para guarda dos filhos, garantir a permanência delas no emprego e determinar o afastamento físico do agressor.
Há dez anos anos em vigor, a legislação colaborou para uma redução de 10% no número de mulheres assassinadas em decorrência da violência doméstica em 2015, segundo ativistas.
Mas Penha, que aos 71 anos continua cruzando o Brasil dando palestras e participando de eventos, diz que ainda há muito onde avançar. Só recentemente a infraestrutura de atendimento chegou a todas as capitais dos Estados, mas ainda é inexistente no imenso interior do país.
“Hoje em dia a violência continua. Elas só estão denunciando nos municípios que têm a política pública – o Centro de Referência da Mulher, a Casa Abrigo, a Delegacia da Mulher”, diz à BBC Brasil.
“Mas tem muita mulher que acha que só é violência quando ela está machucada. Ela não entende que a violência doméstica também é psicológica, moral, sexual.”
Penha se diz honrada com a “confiança” que muitas depositam nela. “Muitas mulheres me dizem: ‘Sem a sua lei, eu já estaria morta’. É uma lei necessária, porque nenhuma mulher merece viver sofrendo.”
Publicação Original: ‘Como sobrevivi a duas tentativas de assassinato pelo marido e mudei as leis do Brasil’