Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Como saber se estou em um relacionamento abusivo?
Meninas, a carta de hoje é sobre sutilezas, meninos e lobos e nuvens.Esta:
“João, te escrevo mais por desabafo do que por um pedido de solução. Sei que usar o termo ‘relacionamento abusivo’, diante de tantos casos mais claros e graves, pode soar meio exagerado no meu caso. Mas eu sei o inferno em que vivo. E mais ou menos quente, inferno é inferno.
Vivo num relacionamento longo (sete anos). Meu parceiro é um homem um pouco mais velho, inteligente, animado, sociável e capaz de grandes gentilezas. Mas é aí que mora todo o problema: ele aparentemente é um cara normal, sem grandes curvas pra fora da realidade. Só que na intimidade é outra conversa. Como é que eu explico isso pra você?
Ele não é agressivo – ao menos fisicamente, nunca encostou em mim. Mas conviver com ele, vou cada vez mais percebendo, é uma espécie de tortura chinesa, um lento e gradual processo de minar todas as minhas bases. É como se eu passasse a duvidar inclusive da minha memória dos motivos por que brigamos.
+Como lidar com a dor quando você termina o relacionamento?
Vou explicar melhor. Ele adora brigar. Ou melhor, ele adora ter razão. É dificílimo ter uma conversa razoável porque ele empilha tantas coisas, tantas questões e com tanta velocidade que quando eu vejo eu já nem sei mais por que é que a gente tava discutindo. As coisas mais bestas geram brigas imensas. A roupa que eu uso, por exemplo. Como ele é esclarecido e sabe que se reclamar disso diretamente ele mesmo não vai conseguir se desculpar pelo machismo de implicar com a roupa da mulher, ele usa umas estratégias enviesadas. Começa puxando algo correlato, alguma lembrança, algum perigo iminente de alguém me cantar e ele ter que me defender pra que tudo descambe numa briga entre nós infinita.
A mesma coisa acontece quando ele tem ciúmes de algo ou alguém. Como ele é esclarecido, ele nunca vai me perguntar diretamente se eu fiz isso ou aquilo com aquele cara. Mas ele vai circular o assunto, me pregar umas pecinhas, perguntinhas daqui e dali até que eu admita. E mesmo quando nunca fiz nada com o fulano, eu sei que ele não acredita muito nisso e fica me testando sutilmente.
João, sei que isso parece algo menor diante de tantas mulheres que são agredidas, mas eu te juro que é infernal. Porque ele é desses caras que, inclusive, defendem o empoderamento feminino. Ele tem amigas. É tido como um cara esclarecido. Mas quando, na nossa intimidade, me ofende é com os piores xingamentos. Ele sempre se arrepende, pede desculpas, manda corações, me explica que eu também levei ele a fazer isso ou aquilo, que amor é assim, difícil… Ele garante que é doido por mim e que vale a pena lutar pelo nosso ‘projeto de vida’.
+Meu namorado é muito cruel quando brigamos. O que fazer?
Projeto de vida, João… Sim, ele diz isso. Um tempo atrás ele encasquetou porque fui a uma festa sozinha com amigas. E lá, ele soube depois por redes sociais, ele viu que um ex-namorado meu também tinha ido. Quando ele viu isso, ficou maluco. Mas aquele tipo de maluquice de voz mansa. Tentou sondar pra ver se eu contava algo. Mas até aquele momento eu nem havia entendido que ele sabia que meu ex esteve lá e, sinceramente, eu mal o vi, não sabia que ele iria, e o que tem de errado em ir a um lugar a que um ex de mais de oito anos atrás foi? Bom, sei lá. Pra mim não tinha nada de errado. Mas quando ele me interrogou sutilmente e eu nem lembrei que deveria ter dito a ele sobre o ex, ele deu a cartada de que sabia. E daí por diante foi um festival de desconfiança e agressão verbal. Disse que amor é confiança, que ele tem certeza de que eu ficaria mal se acontecesse o inverso, de que se eu tivesse contado antes estaria tudo bem… O pior? É que me senti culpada…
Cara, João, eu nem mesmo me atentei ao fato de que ir a uma festa em que um ex foi (sem saber que ele iria) era algo grave e que merecesse ser relatado… Até porque esse ex é alguém com quem eu mal falei ou vi nos últimos anos.
O meu ponto é que meu namorado diz tanto, de um jeito tão sutil, que no final acabo sempre me sentindo péssima, pesada, do mal…
Eu amo meu parceiro, João. Adoro ele quando ele está na chave boa, mas eu fico tão arrasada, tão minúscula quando essas coisas acontecem… E me sinto tão louco por não conseguir ver o mundo do jeito que ele vê (porque ele me faz ver que o que ele tá dizendo é correto, normal, eu que não enxergo…)… Olha, eu não sei mais o que é certo e errado. O que fazer ou como ver a vida de uma forma mais serena. Será que tem que ser assim?”
ABUSO “SUTIL” É ABUSO
Meninas, não, não e não. Não tem que ser assim. Não mesmo. E sem moralismos aqui. Porque sim, eu sei: cada pessoa é protagonista de uma biografia e, por conta disso, cada pessoa está amaldiçoada a julgar e esperar do mundo uma versão que encaixe com seu ponto de vista.
Nisso, tendemos a querer um amor que seja quase um reflexo daquilo que entendemos ser amor. E qualquer coisa fora disso, por menos que seja, nos ofende visceralmente. Em outras palavras, esse amor só funciona se o único ser humano a pisar na Terra for você. Nesse caso, estaríamos todos alegremente condenados a viver sob o reinado de um rei ou rainha amorosos. Seríamos todos súditos do companheiro.
Amor nunca foi isso. Isso que a leitora acima relata não é amor. É posse. É machismo. É o gaslighting. É bruto. Tudo isso para se fantasiar de amor. Mas, no fim, é tudo menos amor. Porque, como eu disse, sem moralismos aqui: amor é um negócio meio bruto. Ou melhor, amor é aquilo de sutil e precioso que nasce num mundo bruto. Amor é uma exceção numerosa num ainda mais numeroso mar de dor, conflitos e solidão. Amor é o milagre a olhos vistos.
+A gente se ama, mas temos temperamentos muito diferentes; devo terminar?
O que não quer dizer, obviamente, que amor é água calma. Não é. Porque rodeado de turbulência. Nós somos turbulência. Mas amor, repito, no fim precisa ser um fim, uma ilha, uma exceção, um buraco de luz em nuvem de tempestade. Porque se não for, não é amor.
Eu sinceramente sei que essa rápida evolução masculina (ainda minoritária, ainda confusa) vai despertar dor em todos os lados. Muitas vezes os homens realmente não sabem as canalhices que cometem. Ou enterram essas canalhices sob toneladas de desculpas e relativismos. Eles estão aprendendo, e conheço um punhado (ainda minoritário) que se envergonha profundamente do que fez e talvez ainda faça. Esses procuram melhorar. Ainda apanharão muito. E apanharão com justiça. Que aguentem. Aguentemos. Numa sociedade machista todo homem, por inércia ou ação, é machista. Sim, eu sei, e me incluo nessa. Sei também que estarei fadado ao aplauso ou à aversão de quem entende nessa frase um autoflagelo/elogio. Paciência. Aceito e estendo a mão. Como diria Capote, carrego aqui o meu próprio chicote.
Sei também que mulheres são igualmente capazes de abusos tão doloridos quanto, embora por tudo o que esta humanidade lhes causou, elas tenham um crédito infinito a ser compensado.
O ponto de verdade é que, meninas e meninos, o relacionamento acima é 450% abusivo. E, de certa forma, um espelho, em fatias ou na totalidade, de muitos das nossas experiências a dois. Ou você, leitora, não já se viu diante de uma ou duas sensações e situações relatadas acima?
O que eu quero dizer?
AMOR DO TAMANHO DA VIDA
Moças, quero dizer que vocês não podem aceitar mais esse tipo de falso amor. O verdadeiro amor não está lá fora, está aqui dentro: na nossa segurança de lutar por respeito, por entendimento, por clareza onde há muita escuridão e dúvida.
O grande amor começa dentro da gente, tanto no processo de entender que se entrarmos no amor não-dividindo o protagonismo tenderemos ao fracasso de bilheteria, como percebendo amor é um processo de aprendizado a dois. No amor, evoluímos. Se você se vê presa a uma cegueira alheia, mesmo que essa cegueira parece esclarecida, pule fora, diga por que, mas pule fora. Se esse falso amor te cega, e te faz duvidar de si, pule fora.
+Devo apagar meu ex das redes sociais?
Você não precisa jamais aceitar o homem que não se abre ao amor. Mesmo que só você saiba disso, porque ele socialmente é amabilíssimo. E, de novo, sem moralismos e polianismos: amor é dureza, mas é evolução. Amor tem briga, mas amor tem também resolução. Amor tá sempre por um fio, mas também pede a insistência naquilo que é bom. Amor exige respeito. Amor que ofende e agride já não é mais amor.
A agressão é o ponto do não-retorno.
A leitora acima deveria partir para outra com a tranquilidade das batalhas travadas, das jornadas cumpridas. Um homem que não se bota capaz de reflexão, de não entender suas próprias contradições; um homem incapaz do silêncio amoroso, esse homem precisa de outras odisseias pra conquistar a iluminação amorosa. Ele precisa ouvir, precisa de tempo, precisa de confronto com o próprio espelho. Não seja o espelho dele. Não fique ao lado de quem te faz minguar. A vida é curta demais.
+Como ter certeza de que ele não é o cara ideal pra mim?
Diga o que sente, peça respeito, exija o silêncio, divida a dúvida, lute a dois. Mas se tudo isso for bom. Só assim. Quando a gente começa a duvidar de si mesmo dentro de um relacionamento, esse relacionamento não é um relacionamento: é uma tortura. Pule fora. Sério. Pule fora. Busque ajuda. Mas pule fora.
Meninas, não aceitem a sutil agressão masculina. Sejamos demasiadamente humanos, mas humanos grandes. Vamos entender que o outro às vezes não verá a vida como nós a vemos. Vamos entender que viver a dois é descobrir coisas a dois. Vamos aprender a guardar nossos silêncios, a pensar mais e melhor no que dizer. Vamos entender que o parceiro não pode ser o depositório das nossas frustrações. Vamos valorizar aquilo que é bom se aquilo que é mal nele não for maior ou ofensivo. Vamos entender que num mundo em que estamos fadados a solidão, amar alguém é uma nesga de companheirismo valiosíssimo. Esse cara aí de cima, nessa carta aí de cima, nada disso acontece.
Amor é aquele que ouve o nosso eco.