Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE
Veja publicação original: Como mulheres de importantes terreiros de Salvador combatem a intolerância religiosa
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Elas não têm medo de ser candomblé, apesar de frequentes ataques a seguidores das religiões de matriz africana em todo o país – muito menos sentem vergonha de sua fé. Marie Claire foi até a Bahia conhecer mães de santo à frente de importantes terreiros e sua luta contra a intolerância religiosa
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No Gantois, é festa de Oxum, a guardiã da água doce. Depois da roda de dança para os Orixás, vem a pausa para preparar o balaio de oferendas. Filhos da casa paramentados, com convidados, simpatizantes do candomblé e até turistas sairão em procissão para deixar presentes no Dique do Tororó, atração de Salvador, a capital baiana. O percurso se inicia em ladeiras estreitas, no bairro da Federação. Homens de branco organizam o cortejo, mantendo-o coeso e parando o trânsito. Após o percurso de volta, o ritual continua no salão principal e culmina em um jantar. Do começo ao fim, reina a paz.
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Então, na cidade mais negra do país, adeptos de religiões de matriz africana sofrem menos discriminação? Ninguém se deixe enganar pelas aparências.
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É perto de 23 horas quando o grupo inicia a cerimônia a céu aberto, no Dique. O movimento ali, geralmente intenso, está calmo. Nem há embates de fé. O dono da festa é o Ilé Iyá Omi Àse Iyamasé, nome completo do Gantois. Conduzido por 64 anos pela icônica Mãe Menininha, é o terreiro de prestígio – e a fama talvez proporcione blindagem. “Comigo, ninguém mexe”, diz Carmen Oliveira da Silva, 89 anos, a ialorixá (sacerdotisa-mor) do Gantois desde 2002. Garante que nunca houve “agressão de qualquer jeito” na tradicional festa de Oxum. “Mas a gente não abusa e procura juntar as pessoas”, diz a filha caçula de Mãe Menininha. É por crer na força da união que ela nunca foge à luta por mais liberdade para seu culto. “Não atinge minha casa, mas atinge a dos meus irmãos”. E em cheio.
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Entre 2015 e 2017, o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis) do Ministério Público da Bahia recebeu cerca de 140 casos de intolerância religiosa, o que corresponde a um quinto do volume da promotoria especializada. Já no Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela da Secretaria de Promoção da Igualdade Social (Sepromi) do Estado da Bahia, quase um terço dos 331 atendimentos desde 2013 entra na categoria. “Não temos registros de intolerâncias de terreiros de candomblé e umbanda contra outras religiões. As vítimas sempre são os terreiros”, observa a secretária Fabya Reis, da Sepromi, concluindo que “não há como dissociar” de discriminação racial. Não à toa, há agora uma preferência pela expressão “racismo religioso”. “Tolerar é suportar e pressupõe uma relação de poder. Quem tolera é o dominante e decide quando deixar de fazer isso”, esclarece a promotora Lívia Maria Santana e Sant’Ana, coordenadora do Gedhdis.
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Nem sempre denúncias viram caso de polícia e de Justiça. “Tivemos um menino de 10 anos de escola particular que, por obrigação do candomblé, precisou ir à aula de roupa branca e fios de contas (colares sagrados)”, conta Nairoibi Aguiar, coordenadora do Centro Nelson Mandela. Sofreu bullying. Notificada, a escola ministrou palestra sobre a religião e pediu a retratação do ofensor.
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A mãe se deu por satisfeita e não quis judicializar o fato.
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As manifestações de racismo religioso podem ser sorrateiras. Se até os anos 1970, para tocar os atabaques sagrados (instrumento de percussão afro-brasileiro) era preciso pedir uma licença na hoje extinta Delegacia de Crimes contra os Costumes, Jogos e Diversões Públicas, agora o candomblé é livre. Pelo menos na teoria.
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“A perseguição tem nova roupagem, é velada”, analisa Maria Lucia Santana Neves, 53, a Mãe Lucia. “Às vezes não dá pra expressar em palavras o que estão nos fazendo. Deixa dúvida se não estamos exagerando, se não é para deixar para lá. Aí vamos deixando.” À frente do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, ela mesma nunca fecha os olhos para afrontas à sua fé. Reclama do assédio insistente de neopentecostais das vizinhanças. “Dizem aos jovens para não entrarem aqui, porque não é lugar de bem. Se minhas filhas de santo saem para a faculdade com torço, vêm com a Bíblia falando ‘Jesus te ama’”, conta. “Só que a gente não se curva, pois tem direitos iguais.”
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Mãe Lucia desenvolveu táticas próprias de combate. Certa vez, um evangélico interrompeu suas atividades em dia de festa, porque queria pregar ali no portão. Ela o convidou reiteradas vezes a entrar e ver o que acontecia lá dentro. O visitante preferiu dar no pé. Filha de Iansã (ou Bamburucema), senhora dos ventos e das tempestades, e Ogum (ou Nkosi), senhor do ferro, da guerra e da agricultura, Mãe Lucia é neta de Mãe Mirinha do Portão, uma iniciada de Joãozinho da Gomeia, pai de santo de sucesso nos anos 1950 e 60. Jovem, virou Mameto Kamurici (por comandar um terreiro de nação angola, ela é mameto, em vez de ialorixá ou mãe de santo), ao suceder a avó, que morreu em 89. “Tenho orgulho, porque ela passou isso de não ter medo de enfrentar. Nunca omiti minha religião, nem deixei de usar os símbolos. Do jeito que me veem vestida aqui, vão me ver em qualquer lugar, até se viajo para outro país.”
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Doença que volta forte
Mostrar-se é um ato de resistência de alto impacto. O candomblé chegou ao Brasil com escravos. “Para os brancos, os negros não tinham alma, eram bens. Então, nasceu como religião de gente que nem era vista como ser humano”, diz o historiador Marcos Rezende, coordenador do Coletivo de Entidades Negras (CEN), presente em 17 estados. Assim, tentou-se proibir, destruir, demonizar. Apesar de tudo, a fé sobreviveu. Graças a táticas de camuflagem, como o sincretismo dos orixás com os santos e o hábito de adotar uma espécie de dupla identidade. Do portão para dentro, a pessoa se assumia candomblecista. Do portão para fora, tirava símbolos e podia até se dizer católica. “A estratégia mudou”, diz Rezende. O CEN promoveu por mais de dez anos uma caminhada do chamado povo de santo. Vieram outras ações para se mostrar. “Para o Censo de 2010, fizemos a campanha ‘quem é de axé diz que é’”, conta. “As notícias depois do Censo afirmavam que o candomblé é a religião que mais cresce no país.”
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Era uma falsa verdade: apenas muita gente tinha saído das sombras. Não todos “de axé”. “Há quem se proteja tanto que quase se prejudica. Tem medo de identificar sua religião. A mim, nem precisa perguntar”, diz, rindo, Gersonice Azevedo Brandão, 72 anos, a equede Sinha. Equede é um cargo que equivale a uma zeladora dos Orixás. Ela é uma das lideranças da Casa Branca, ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká, considerado o primeiro terreiro do Brasil e o pioneiro no tombamento junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), na década de 1980.
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Hoje, são nove no país, oito deles baianos, incluindo o Gantois. “Tombar foi uma novidade. Coisa de negro, pobre e ignorante: o que tem para ser patrimônio histórico?”, provoca ela, nascida e criada ali, iniciada aos 7 anos. “Sou de um tempo em que criança era proibida de assistir ao candomblé. Como se pratica uma fé e seu filho não pode estar com você?” Naturalmente elegante, ela diz que, embora agora existam leis para proteger, os ataques a terreiros continuam. “Para mim, é uma doença e, cada vez que volta, vem mais forte.”
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Em uma noite de festa, a Casa Branca já sofreu apedrejamento. As pedras eram muitas e grandes, quebraram telhas. “Teve correria e ficamos preocupados em alguém se machucar, mas o candomblé não parou.” O terreiro já sofria intolerância, só que menos explícita. “Vinham jogar sal na nossa praça de Oxum (para exorcizar) ou dizer que aqui dava uma bela casa de oração. Se eu ouvia, falava: ‘Mas aqui já é uma casa de oração’.” Equede Sinha acredita que esse assédio diminuiu um tanto depois que o terreiro passou a oferecer à comunidade cursos de capacitação, feiras de saúde e afins. “Algumas pessoas moravam perto por 20, 30 anos e tinham medo de entrar aqui, porque achavam que a gente comia criancinhas.”
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Não faltam atos de pirraça, depreciação, humilhação. A advogada Isaura Genoveva, 34, também equede na Casa Branca, é servidora pública. Quando faleceu uma pessoa de seu terreiro com quem tinha forte ligação espiritual, precisou cumprir um ano de luto vestindo branco. Colegas de trabalho não perdoaram. “Aí não era mais Isaura, passei a ser a macumbeirinha”, conta. “Tinha gente que levava Bíblia, fazia roda de oração.”
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Nascida no candomblé e confirmada aos 7 anos, filha de professor, ela estudou em uma escola adventista, “porque era a melhor do bairro”. Ali, não assumia sua religião. “Queria me sentir inserida. O racismo é perverso e cresci nessa dicotomia.” Na infância, seus dias úteis eram de protestante e os fins de semana, de candomblecista. Já adolescente, perto dos 14, perdeu o pai e teve uma crise. Decidiu dar um tempo de sua fé. Tentou outras. Espiritismo, igrejas adventista, batista e católica. “Não me sentia bem naqueles espaços.” Retomou as raízes aos 17, e com mais convicção. “Não tenho problema em sair com roupa do candomblé. Não há nada de errado nisso.” Não usa torço todo dia porque sente calor com a cabeça coberta. Não dispensa, porém, suas contas e pingentes dos orixás.
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Água e luz
Jaciara Ribeiro dos Santos, 50, transformou sua “história de dor” em símbolo de luta. O caminho para seu terreiro, Axé Abassá de Ogum, já prenuncia um cotidiano de preconceito sempre pronto a aflorar. No pedaço de vielas sem mão muito definida, é preciso parar e pedir informação. Mais de uma vez, a resposta, que vem depois de um silêncio arredio, é algo como “Não sei de terreiro nenhum”. Na chegada, Mãe Jaciara está sentada em frente aos búzios, para narrar o caso da ialorixá Gildásia dos Santos, sua mãe biológica.
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Por participar do movimento “Fora, Collor”, em 1992, ela foi fotografada, a caráter, para reportagem de um veículo de circulação nacional. Sete anos depois, em 1999, a mesma imagem de Mãe Gilda, como era chamada, acrescida de tarja preta nos olhos, foi publicada com um texto do periódico evangélico Folha Universal com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida de clientes”. Foi um baque. “Ela não suportou se ver naquele jornal ‘como uma ladra’, dizia. Ficou deprimida. Começou também uma onda de ataques.” Evangélicos iam ao terreiro orar para o lugar “cair”. Houve quem invadisse. “Um casal bateu com a Bíblia na cabeça dela.”
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Mãe Jaciara morava antes no Paraná, onde tinha a vida arrumada. Diz que recebeu um chamado dos Orixás para largar tudo e retornar a Salvador. Quis lutar. Com um advogado de ONG, abriu processo por uso indevido da imagem. Mãe Gilda não viveu para ver a vitória. “Assinou a procuração no dia 20 de janeiro, às 11 horas. No dia seguinte, saiu para a hidroginástica e teve um infarto fulminante.” Era 2000, ela tinha 64 anos. A filha reabriu o terreiro e, “depois de dez anos de resistência”, ganhou na Justiça. O valor da indenização caiu para menos de um quarto e foi dividido com o pai e os cinco irmãos.
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Nada a fez parar a batalha por reparação. Conseguiu que a data da morte de sua mãe, 21 de janeiro, fosse transformada em Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007. Em 2014, outra façanha: a colocação de um busto de Mãe Gilda na Lagoa do Abaeté, tão usada para ritos do candomblé. O monumento acabou depredado em 2016 e ela foi atrás de reforma e reinauguração. “Sempre usei minha força de mulher negra oprimida e de Oxum, que, sendo da água, se tiver uma pedra no caminho, bate mas contorna.” Três dos seus irmãos viraram evangélicos após a morte da mãe. “Um não fala comigo há sete anos. Minhas sobrinhas mudavam até de calçada se me viam. Diziam que cuido dos diabos da avó.”
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Na programação de janeiro de 2018, houve um ato no busto de Mãe Gilda e outro no Gantois. Há eventos em outras datas, como a Alvorada dos Ojás, em novembro, mês da consciência negra. Candomblecistas saem às ruas para amarrar panos brancos sagrados em árvores, na capital e também em Lauro de Freitas – onde, em 2017, sumiu parte dos tecidos. Por estar “em período de obrigação” na data, Mãe Lúcia deixou para pôr sua cota nas árvores da sua área pouco depois. Deu tempo de saber do acontecido e decidir somar à sua missão a recolocação dos ojás arrancados. E teve uma ideia: “Escrever algo nos panos”. Escolheu a palavra paz.
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“A gente quer respeito”, resume mãe Carmen, que, nascida e criada no Gantois, é batizada na Igreja Católica e fez primeira comunhão. Não há receita para chegar lá, mas a promotora Lívia dá uma pista. “A ignorância sobre as religiões leva ao ódio. O conhecimento gera alteridade.” Mãe Lucia constrói até uma cena para demonstrar a eficiência dessa solução: “Se você entra em uma sala escura, fica imaginando coisas terríveis. Quando acende a luz, vê que não tem um bicho de sete cabeças ali”. Que venha a luz.
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