Saiu no site UNIVERSA:
Veja publicação original: Como funciona uma ocupação de mulheres no centro de São Paulo
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Por Bárbara Tavares e Helena Bertho
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Na entrada do prédio de número 63 da Rua do Ouvidor, no centro de São Paulo, há sempre alguém de sentinela. O edifício de 13 andares, todo ocupado por artistas, abriga no nono andar um espaço ainda mais peculiar: um coletivo de sete mulheres, também artistas, que, além de produzir obras de arte, ainda institui no prédio diretrizes femininas e feministas.
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O cuidado na portaria, portanto, tem explicação: “É para nossa segurança”, diz uma das artistas que mora no prédio. Ela acompanhou a reportagem de Universa numa visita ao local. Esse é o jeito que visitantes e curiosos podem entrar ali.
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O edifício, que no papel pertence ao Governo do Estado de São Paulo, abriga cerca de 110 pessoas, entre músicos, pintores, escultores, tatuadores, circenses, e seus familiares. Os moradores ocupam o local há quatro anos e se organizam de maneira independente, dizem eles, sem liderança nem cobranças. “Decidimos tudo que é de interesse comum em assembleias gerais”, diz um dos residentes. No mais, cada andar é gerido à maneira de seus ocupantes.
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A ocupação das sete mulheres
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O nono andar tem uma sala grande, de cerca de 50 metros quadrados, cozinha, três quartos, banheiro e varanda com vista para o Centro – que causaria inveja em muitas varandas gourmet. A mobília – sofás, cadeiras, um pufe grande que faz as vezes de cama, mesa, geladeira e fogão – é simples, tudo fruto de doações. Um gato preto dorme tranquilo no encosto de um dos sofás. Na sala, uma das paredes é coberta por um mural com obras de arte, outra, por tecidos estampados, e o resto permanece em branco, aguardando mais intervenções artísticas.
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Uma lousa aponta a agenda da semana, com reuniões e oficinas, cartazes exibem frases de ordem como “Nossa luta é na rua” e, na varanda, há uma horta comunitária com tomates, manjericão, boldo e outras hortaliças.
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Todo esse espaço é ocupado e gerido por três mulheres. Funciona como moradia e também como área de oficinas e diálogos. Ali rolam aulas de alongamento, dança, canto, de produção de brinquedos sexuais (feitos de material reciclado), workshops de autoexame ginecológico, projeções de filmes e muita conversa sobre empoderamento feminino.
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O trabalho no andar começa no acolhimento. As portas estão abertas principalmente para mulheres trans e viajantes. São três moradoras fixas, entre elas, a colombiana Erika, de 34 anos, e as outras quatro vagas são rotativas. Essas moradoras podem ficar até um mês ali. A ideia é oferecer abrigo temporário.
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“Temos uma cozinha coletiva. Duas vezes por semana, nos organizamos para recolher e reciclar alimentos que seriam jogados fora pelos mercados locais. Quando falta alguma coisa, a gente faz uma intera para comprar”, conta Erika.
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Às terças-feiras, as sete moradoras se reúnem para trocar experiências, e abrem espaço para que outras moradoras do prédio participem das conversas.
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“Somos mulheres independentes econômica e intelectualmente. Então, quando chega uma que não é autônoma, vendo nosso trabalho, ela aprende muito e começa um processo de questionar uma série de coisas”.
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Combate ao assédio na ocupação
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As mulheres do nono andar se tornaram referência para as outras. Em casos de assédio na ocupação, por exemplo, são a elas que as vítimas recorrem. “Antes de chegarmos aqui, não acontecia nada com o homem que abusava ou assediava. Agora, ele é expulso”, diz Erika.
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“Homem que assedia mulher é expulso”
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Ela explica que, depois de uma denúncia, é feita uma reunião com todos os moradores do prédio. Lá, as duas versões são escutadas: a do assediador, “porque ele também tem direito a falar”, e a da vítima. Então, a assembleia decide qual medida será tomada.
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Um homem foi expulso por tocar uma mulher enquanto ela dormia com a filha, há um mês. “Já vimos homens casados e solteiros fazendo isso”.
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Há nove anos Erika mora em ocupações e pensões na Argentina, no Uruguai, na Venezuela e no Equador. Diz ter sofrido assédio diversas vezes. “Sou uma mulher que viaja, então muitos homens pensam que, por isso, passo necessidade, que sou vulnerável. E não é assim. Eu trabalho pelo meu, sou independente”.
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“Tem casa demais sem gente e gente demais sem casa”
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“Lamentavelmente, estamos num mundo muito desigual. Como se diz, há muita casa sem gente e muita gente se casa”, diz Erika, misturando palavras em português e espanhol.
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Em junho de 2014, um mês depois da ocupação, o Ouvidor 63 recebeu uma notificação de reintegração de posse. De lá pra cá, o Governo do Estado, que não utiliza o edifício desde a década de 1980, tentou leiloá-lo três vezes. Não conseguiu por falta de interessados.
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Por causa do trauma pelo desabamento do prédio no Paissandu, os moradores acreditam que, passando por melhorias e manutenções, o Ouvidor poderia ser cedido a seus ocupantes. Eles estão esperançosos.
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Pinturas, desenhos e intervenções fazem do prédio uma espécie de supergaleria de arte. Além das paredes, as portas dos elevadores (que não funcionam), os degraus das escadas e as janelas também servem de telas para obras. “Aqui se faz arte, se vive e se sobrevive dela”, diz Erika.
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A ocupa das sete mulheres é uma história em construção.
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