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Certa noite, Fernanda* chegou em casa e foi assediada no elevador do próprio prédio onde mora. “Gostosa, quanto é o programa?”, falou no seu ouvido um homem desconhecido se aproximando muito além do que ela gostaria. Ela reagiu com raiva e xingou o homem, que fugiu. Só que a portaria exige que todas as pessoas que entram no prédio deixem seus dados em um caderno. Fernanda, que é formada em Direito, recolheu os dados e foi até a delegacia mais próxima, a três quadras de onde mora. No caminho, passou por mais um assédio: três homens que cruzaram seu caminho tentaram se aproximar dela falando de sua aparência. Ao chegar na delegacia, um policial lhe atendeu de má vontade e registrou errado seu boletim de ocorrência, classificando o crime de injúria, como se ela tivesse se ofendido por ser confundida com uma prostituta, o que não foi o caso.
Fernanda buscou a ajuda das advogadas Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, do escritório Braga & Ruzzi – Advocacia para mulheres, que retificaram o boletim para “importunação ofensiva ao pudor” (a tipificação mais próxima para o assédio de rua) e elas conseguiram uma audiência de conciliação entre a vítima e o agressor, parte de um programa de justiça restaurativa para casos de delito com pequeno potencial ofensivo, da cidade de São Paulo.
A audiência contou com a presença do agressor e seus advogados, da vítima e suas advogadas e de escrivão e delegado, que sugeriu resolver a questão com um pedido de desculpas. Fernanda não aceitou e explicou o motivo. “Ela estava preocupada que ele entendesse que ela havia ficado brava por ser confundida com uma prostituta como se isso diminuísse a prostituta, e não era essa a questão”, explica Ana Paula. A questão, obviamente, era sobre os homens se acharem no direito de invadir o espaço pessoal e dizer o que quiserem a respeito da aparência de uma mulher sem a menor abertura para isso. “Eu quero que você aprenda a respeitar a mulher e pare com esse tipo de atitude porque isso amedronta, intimida, constrange, isso não é cantada”, disse Fernanda, segundo suas advogadas.
Marina e Ana Paula sugeriram resolver o ocorrido com uma doação para uma ONG voltada para as mulheres, e a Think Olga foi escolhida por causa da campanha Chega de Fiu Fiu.
“Fernanda ficou muito feliz com a ideia porque ela mesma. tomou consciência do que é o assédio por causa da campanha Chega de Fiu Fiu. Justamente por causa da campanha ela decidiu levar a queixa adiante, porque sabia que o assédio não é algo natural”, conta Marina.
O agressor aceitou a proposta e assinou um termo se comprometendo a não cometer assédio mais uma vez, caso contrário, será aberto um processo contra ele. “Se ele fosse condenado, o dinheiro iria para o estado, para o fundo penitenciário. E, dessa forma, ele é revertido para a própria causa, o que é muito melhor”, diz Ana Paula. E nós da Think Olga ficamos muito felizes com o reconhecimento!
Se você foi vítima de assédio de rua, as advogadas sugerem fazer um boletim de ocorrência, mesmo que você não tenha os dados do agressor, já que o BO pode ser útil para fins de estatística, para que instituições acessem esse número e façam campanhas a respeito. “Por mais que não tenhamos os dados do agressor, quanto mais criarmos essa cultura de denúncia, mais isso será encarado como é, um crime”, diz Ana Paula. “E até para o homem parar de achar que é dono do nosso corpo, porque muitos acham que podem chegar e invadir nossa intimidade, nosso corpo e tudo bem”, completa Marina.
Caso você tenha os dados, o ideal é fazer uma denúncia. A pedido da Think Olga, a Braga & Ruzzi – Advocacia para mulheres fez um dossiê sobre o assédio de rua no Direito brasileiro. Confira:
As “cantadas” na lei brasileira
Nós não temos ainda no Brasil um crime que corresponda às “cantadas” de rua. A figura penal que mais se aproxima não chega a ser crime, mas contravenção penal (que é um delito de menor potencial ofensivo, com penas muito baixas) de importunação ofensiva ao pudor.
Art. 61 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3688/1941):
Importunar alguem, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor
Pena: multa “de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
Dependendo do modo como se der essa “cantada”, pode ainda configurar ato obsceno. Por exemplo, se o agressor mostrar as partes íntimas ou simular masturbação, sexo oral e outros.
Já essa atitude é considerada como crime, e está prevista no Código Penal:
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena: detenção de três meses a um ano ou multa.
Entre as condutas possíveis, a mais grave é a do crime de estupro, que pode se configurar caso venha a ocorrer toque de partes íntimas ou seios da mulher ou beijo à força.
Art. 213 do Código Penal: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena: reclusão, de seis a dez anos.
O que fazer em um caso de assédio?
Uma mulher que foi assediada sexualmente pode registrar boletim de ocorrência em qualquer delegacia de polícia (preferencialmente uma delegacia da mulher). Embora não seja obrigatório estar acompanhada de advogada, aconselhamos fortemente, pois sabemos que o ambiente de delegacia tende a ser altamente revitimizador. Principalmente nesse tipo de caso, que, infelizmente, ainda é visto como algo de pouca importância pela sociedade e que ainda é confundido com “cantada” ou elogio.
O delegado é obrigado a registrar o boletim de ocorrência e, se não o fizer, cabe denúncia à Corregedoria de Polícia – confira o Pergunte a Ela sobre o que fazer caso a autoridade policial se recuse a registrar a ocorrência.
Na hora do registro, é importante estar atenta ao crime que está sendo anotado. É comum que, pela falta de preparo para lidar com este tipo de crime, a conduta seja registrada como “injúria” (que é o ato de ofender alguém). O problema disso é que a injúria é um crime de ação penal privada, ou seja, caberia à mulher contratar uma advogada e mover sozinha uma ação contra o agressor. Já os tipos descritos acima (importunação ofensiva ao pudor, ato obsceno e estupro) são de ação pública, ou seja, é o Estado quem investiga e processa o autor do crime. Apenas para o caso de estupro é preciso que a mulher deixe expressa a sua vontade de processar o agressor. Para os demais, basta o boletim de ocorrência para que isso ocorra.
Os dois grandes problemas na verdade são:
1) Nesse tipo de crime é difícil saber quem é o autor. Raramente a mulher consegue pegar os dados da pessoa que a assediou, o que dificulta que realmente ocorra alguma investigação e processo penal. De toda forma, achamos válido o registro da ocorrência até para fins de estatística, o que pode pautar políticas públicas e até mesmo edição de leis mais firmes sobre o assunto. Além de que esse tipo de atitude tem um peso político na própria instituição da polícia que, ao se deparar com aumento de demanda dessa espécie, se tornará cada vez mais preparado para lidar com ela.
2) Quando a mulher consegue os dados do agressor, é difícil que tenha provas, o que pode impedir alguma condenação, visto que será a palavra dela contra a dele. Contudo, havendo audiência, é possível buscar algum acordo que traga para esta mulher algum tipo de reparação, seja uma indenização, seja uma doação revertida para alguma instituição, seja um pedido formal de desculpas e o reconhecimento da violência sofrida, com a assinatura de um termo comprometendo aquele agressor a nunca mais cometer este tipo de assédio, caso contrário, será reaberto o processo contra ele.
* Fernanda é um nome fictício usado para proteger a identidade da vítima.
Publicação Original: Combate à cultura do assédio: por que devemos registrar a “cantada” de rua na delegacia