Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Clara Averbuck: Literatura, gênero e o duplo padrão artístico
Em seu texto de estreia em Marie Claire, a escritora Clara Averbuck reflete sobre o papel das mulheres no mundo dos livros
e “feminismo” foi eleita a palavra do ano pelo dicionário Merriam-Webster, eu, se tivesse um dicionário, elegeria a palavra “gênero”, tão discutida e polemizada no ano passado.
Feminismo é uma luta contra um sistema opressor. Não é “o contrário” de machismo, que é um sistema de opressão; é uma reação a esse sistema.
E gênero foi a palavra mais deturpada deste ano. Na escola em que minha filha estudava, um vereador tentou barrar a semana de gênero, que discutiria feminismo, a construção da masculinidade e como ela afeta o comportamento dos meninos desde cedo. Traria à tona e tiraria da invisibilidade o fato de que não existem apenas pessoas cisgêneras, ou seja, que a identidade de gênero não está atrelada necessariamente ao seu gênero designado ao nascer. Foi um bafafá, escândalo, um absurdo. Não vou nem entrar no absurdo de hostilizarem a filósofa Judith Butler em sua passagem pelo Brasil porque ela supostamente estaria espalhando “ideologia de gênero”. Suspiros cansados da ignorância de quem nem sabe o que está falando. Custa dar uma busca no Google?
A simples menção da palavra “gênero” gera arrepios em alguns, e aí nos perguntamos: o que há de tão ameaçador? Na existência do outro, a ponto do Brasil ser o país que mais mata travestis e transexuais no mundo?
Eu acredito que a origem de tudo está na masculinidade tóxica, que destrói a humanidade dos meninos assim que eles nascem. Tem que ser macho, tem que ser homem, não pode chorar e nem demonstrar nenhuma característica feminina. Esse represamento de emoções acaba por explodir em violência de gênero, homofobia, transfobia. Assim como nós, mulheres, somos ensinadas a “nos dar o respeito”, como se já não fosse nosso por direito (porque dos homens cis sempre foi, não é mesmo), existe esse conjunto de regras muito nocivo a todas as relações humanas e que invariavelmente vai acabar em violência.
Eu sou escritora. Publico desde os 17, meu primeiro livro saiu aos 21, virou filme, virou peça. MInha vivência e minhas leituras sempre foram escritas por homens livres, que falavam abertamente de sexo, bebida, sua visão sobre as mulheres, busca por identidade e liberdade. Quando fui escrever meu primeiro livro, pensei: bom, é isso, é assim que eu quero escrever, é disso que eu gosto e é nisso que sou boa. Afinal, se eles podem, puderam, foram bem sucedidos, eu posso também, não é?
NÃO
Não que meu livro tenha sido mal recebido pela crítica ou pelo meu público, mas os mais conservadores ficaram assustados,apavorados, aviltados. COMO podia uma jovem mulher escrever assim? Não pode!
PODE SIM, VIU?
Eu não fui a primeira aqui por estas paragens. Antes de mim vieram Hilda Hilst, Marcia Denser, Carmen da Silva, tantas outras, mas parece que o fato de eu ser jovem e publicar meus primeiros livros, lá no começo dos anos 2000, gerou ainda mais choque. E aí eu pergunto: se eu fosse um homem jovem, tratando dos mesmos assuntos, causaria toda essa celeuma? Tenho certeza que não. E o mais engraçado é que, nessa época, há mais de 15 anos, eu me sentia elogiada quando diziam que eu “escrevia como um homem”, porque os homens eram as minhas referências. Alguns ainda são, é claro, mas tantas mulheres incríveis foram publicadas e republicadas nos últimos anos que isso não tinha como não afetar minha escrita e esse meu conceito idiota. Eu escrevo como uma escritora. Escrevo como mulher, sim, é essa a minha perspectiva, mas não faço “literatura feminina”, um rótulo absolutamente estapafúrdio. Existe uma estante de “literatura masculina” na livraria? Não, então essa é apenas mais uma tentativa de diminuir o que fazemos. Assim como quando dizem que apenas “escrevemos sobre nossas próprias vidas”. Nunca vi ninguém cobrando Charles Bukowski ou Henry Miller por isso, mas, se você é mulher, será questionada ao usar sua vida como matéria prima. Pois bem, deixa eu contar uma coisa: todo escritor usa a vida como matéria prima, mais ou menos explicitamente.
Muito mudou desde que comecei. Muitas mulheres maravilhosas foram publicadas, pequenas editoras abraçaram essas obras, mulheres negras, ainda mais invisibilizadas neste meio elitista da literatura, estão cavando seu espaço, e, lentamente, as coisas estão progredindo. Ainda falta muito. Já caminhamos muito, mas estamos na luta e não vamos parar. Nossas vozes e nossas palavras são nossas armas e não é pra abaixar que é tiro não, é pra receber esse tiro de peito aberto que não vai doer. Muito. Talvez algumas verdades doam um pouco, confesso. Mas é para o melhor.
Leiam mulheres em 2018. Vocês não vão se arrepender.
Clara Averbuck é escritora, tem 7 livros publicados e já teve a obra adaptada para cinema e teatro.
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