Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Clara Averbuck: Como descobrir se você está em um relacionamento abusivo
Em texto para Marie Claire, colunista fala sobre suas experiências e conclui que a carência é a mãe da roubada
Nem sempre temos a consciência de que estamos em um relacionamento abusivo. Especialmente nós, mulheres que falam a respeito do tema e até ajudam outras mulheres a sair de roubadas do tipo, seja direta ou indiretamente, estamos sujeitas. Somos mulheres, afinal, como todas as outras.
Bradar aos quatro ventos que nessa não caímos mais não nos impede de, achando que estamos andando no raso, um belo dia, pisar em um canal, ser sugada lá pra dentro e só se dar conta quando é tarde demais para sair. Quer dizer, nunca é demasiado tarde. Mas vai ficando mais difícil.
O que é um relacionamento abusivo, afinal? Algumas mulheres acham que precisam chegar no extremo, que é a agressão física, para que vire abuso. Mas ei: existem várias formas de abuso. Nada brota de repente. Até chegar no físico, muitas outras etapas acontecem. Estou aqui hoje, eu, Clara, mulher independente e que, mesmo antes de ler sobre feminismo, já praticava e buscava liberdade e autonomia, pra dizer que também já entrei nessa roubada, uma, duas, três, quatro vezes.
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Quatro. Como?
Porque existe um sistema de manipulação e nós caímos nele. E se eu chamo de sistema é porque é assim mesmo que percebo: um conjunto de regras. Se ele grita, se ele te diminui, se ele força sexo. Se ele te manipula através do sexo. Se ele te compara a outras, se ele fere sua autoestima, se ele usa seu dinheiro indiscriminadamente, ou, pior, faz com que você acredite que deve bancá-lo, afinal, estamos juntos, não é mesmo? Sim. Eu acredito nisso. Como não tenho renda fixa e geralmente me relaciono com homens que também não tem, acredito que em uma hora um vai ter, em outra, o outro vai ter, e assim as coisas vão se equilibrando. Mas se pesar demais para o seu lado, cuidado: pode ser abuso financeiro. Sim, isso existe e está inclusive previsto na Maria da Penha.
Há algum tempo uma amiga me procurou em uma situação muito delicada. Ela tinha um negócio com o namorado e o abuso já estava num ponto em que ela acreditava que as pessoas não compravam o produto, e sim o invólucro dele, que foi o homem que fez. Era tudo dela, a criação, a comunicação, mas ele a fez acreditar que era por causa da… embalagem. Pode? Não pode, não. Mas acontece.
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Duvidar de tudo que você diz também é uma forma de abuso. Mexer nas suas redes? Abuso. Não, não fazemos apenas o que deixamos que façam com a gente. Não vivemos em uma bolha no vácuo, há todo um sistema que nos leva a tomar certas decisões e atitudes.
E como sair disso, vocês me perguntam? Bom, não fiquei 8 anos solteira à toa. Depois do último, pensei: eu nunca mais posso cair nisso. Preciso ficar forte e entender os mecanismos. E a conclusão que eu cheguei, já há algum tempo, se resume a uma frase: a carência é a mãe da roubada.
Somos ensinadas que não estamos completas sem um amor, sem a outra metade, a tal da tampa da panela, da metade da laranja. E muitas vezes acabamos aceitando o inaceitável em nome disso. Repito: mesmo as mulheres mais independentes, esclarecidas, com mil livros na cabeça e na cabeceira, carreira e contas bancárias sólidas, mesmo essas não estão livres disso. É uma questão estrutural. É algo que está muito entranhado em nossas construções.
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Não estou falando que todos os homens são monstros e nem que devemos fugir deles e viver solteiras para sempre. Amar é bom, relacionamentos podem ser saudáveis, ainda que complicados, mas temos que estar atentas a essa construção de amor romântico que nos anula. Na verdade, de onde vejo, acho que muitos deles são vítimas de uma construção de masculinidade tóxica que execra o feminino e é calcada em violência e dominação. Não sabem sequer nomear seus sentimentos e viram uns deficientes emocionais, que não sabem lidar com os sentimentos sem ser de formas violentas. Porém, mesmo eles sendo vítimas dessa masculinidade, quem paga o preço alto somos nós, mulheres.
E é só conversando entre nós que isso pode mudar. Eles precisam conversar entre eles também. Nós com eles, se eles ouvirem, claro; eles entre eles; e, sobretudo, nós entre nós, unidas, se julgamentos e podendo não sentir vergonha das fragilidades que temos. Se não formos juntas, não vamos a lugar algum.