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Veja publicação original: ‘Casei com um homem que me batia, que era sustentado por uma amante e que fez eu me isolar do mundo’
FAMÍLIA PLURAL
Porque somos todos iguais na diferença
Você está acostumado a ler aqui sobre organizações familiares. Hoje, pedimos licença para contar a história da Joana*
Geralmente você lê sobre pessoas que não possuem núcleo familiar padrão aqui, mas hoje vou emprestar minha coluna para a Joana*. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida – se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos – homens e mulheres.
O texto a seguir aborda violência contra a mulher.
Durante dez anos, vivi um casamento tranquilo. Me casei aos 18 com um homem que namorava desde os 15. Com ele tive dois lindos filhos, um casal. Porém, chegou um momento em que nos tornamos mais amigos do que marido e mulher. Nossas famílias eram de origem evangélica e, com o passar dos anos, comecei a me sentir oprimida. Trabalhava apenas em casa, cuidava dos filhos e do marido, tinha de ser a mãe zelosa, a filha exemplar, a serva devotada de Deus, a esposa leal, era tudo isso, menos eu mesma. Passamos a viver um casamento de aparência, onde tínhamos uma relação de irmãos. Minha carência só aumentava e percebi que não dava mais para ficar com ele nessas condições, era o fim.
Logo que me separei conheci um homem extremamente encantador e galanteador e que sempre fazia eu me sentir especial, linda e única. Ele era instrutor e dono da academia que eu frequentava. Me entreguei àquela paixão que nascia e que era tão nova para mim. Minha família, por conta da religião, não aceitava a relação, principalmente a minha mãe, que me orientava a reatar com meu ex-marido.
Contra tudo e todos decidi seguir adiante e, menos de três meses depois do início do relacionamento, fomos viver juntos. Meu ex-marido pediu para ficar com nossos filhos, que na época tinham cinco e dez anos. Concordei.
Acreditei que nessa nova relação eu poderia, finalmente, trabalhar fora, viver a vida de forma diferente. Me joguei de cabeça. Ele também tinha filhos e acreditei que poderíamos ser uma família completa e feliz.
Com o passar dos meses, o que era sonho começou a se transformar. Ele, que era dez anos mais velho, se mostrou extremamente ciumento e passou a me tratar como se eu fosse propriedade dele. Os maus-tratos, que no início eu enxergava como sinal de amor, começaram com agressões verbais, pequenos tapas e empurrões. Ele dizia que ele era “o único louco que me aceitaria com dois filhos de outro casamento”, quando eu me arrumava, falava que eu “parecia uma putinha”. Tudo foi piorando, até o ponto de ele me deixar trancada em casa.
A primeira agressão física foi depois de uns quatro meses que começamos a morar juntos. Teve uma festa na academia, eu tinha organizado e arrumado tudo. Me arrumei para depois voltar. A filha dele, que morre de ciúmes do pai e sempre tentava fazer intriga entre a gente, comentou com ele sobre a minha roupa, que estava muito curta. Um rapaz que frequentava a academia começou a me elogiar, dizer que estava tudo muito bonito. Ele ficou enfurecido e disse que quando chegássemos em casa eu “ia ver”, que eu “ia aprender” a respeitá-lo.
Decidi voltar para casa antes de a festa terminar, ele foi comigo. Logo que chegamos, ele me empurrou para a cama, levantei e ele me empurrou novamente. Começou a me bater, dar tapa no meu rosto, que ficou desfigurado. Disse que ia me jogar na rua, rasgou a roupa que eu estava usando. Depois saiu, foi até a academia encerrar a festa. Na volta, pediu perdão e tentou ter relação sexual comigo. Na minha percepção, achei que era por ciúmes, que perdeu a cabeça, e aceitei o pedido de perdão. No dia seguinte, fomos ao shopping, ele pediu para eu passar maquiagem no rosto antes de sairmos, mas mesmo assim as marcas estavam evidentes. Nunca havia apanhado de ninguém, nem do meu pai.
Outros segredos sobre a vida dele vieram à tona. Descobri que ele tinha um relacionamento com outra mulher, que o sustentava. Mas minha dependência emocional era tão grande que não me importava com nada, nem com a outra mulher. O mais importante era que ele ficasse comigo. A pior amarra que a mulher pode ter é a emocional, não conseguia me libertar emocionalmente e, quando começou a me maltratar, eu já tinha aberto mão de tudo na minha vida.
Uma vez, ele saiu com a filha e me deixou trancada em casa. Pulei a janela e fui para a casa de parentes. Tinha ido de short, mas levei uma calça para usar na volta e evitar brigas. Ele chegou antes de mim, me ligou e disse para eu subir para casa na mesma hora. Quando cheguei, começou a me xingar, a me humilhar. Eu disse que ele era um monstro, foi quando ele me deu um soco e estourou o meu nariz. Eu estava com uma blusa branca e ficou toda manchada de sangue, ele me pegou pelo cabelo e me jogou embaixo do chuveiro, esfregava meu rosto, me machucando ainda mais. Fui deitar e depois ele veio como se nada tivesse acontecido. Na terceira vez, eu já estava saturada.
Passei a me defender, jogava as coisas em cima dele. Levei uns murros, mas consegui quebrar o braço dele – que já estava trincado. Eu disse que ele nunca mais ia encostar a mão em mim. Ele teve de operar o braço depois disso. Mesmo me defendendo, minhas costas ficaram roxas, pois ele não batia mais no meu rosto para não ficar marcas. Acho que eu devia ter me defendido antes.
Ele sempre tentava me tirar do sério e ter argumento para me bater. Com o passar do tempo, eu parei de discutir.
Em seis anos de relação (nos casamos judicialmente), ele sempre atrapalhou os meus trabalhos, aparecia do nada, ficava ligando. E o pouco dinheiro que eu ganhava entregava todo para ele, mas achava normal, pois ele dizia que eu era gastona e que era melhor eu dar tudo para ele controlar, que quando eu precisasse de algo era só pedir. Também não me deixava estudar, dizia que se eu voltasse para a escola ele me largaria. Chegou até a montar um salão para mim na academia, só para me controlar, mas eu não podia ter clientes homens.
Muitas vezes ele sumia, desaparecia por dias, meses. Eu tinha de me virar para conseguir dinheiro para me sustentar, pois mesmo tendo o salão na academia, ele trancava tudo e eu não podia entrar. Ele dizia que sumia por minha causa, porque eu não o obedecia. Mas era mentira, além da amante que o sustentava, ele tinha outras, pelo menos mais três mulheres.
Ele chegou a ficar sete meses fora de casa, sumido. Toda vez que ele estava com alguém, criava brigas comigo para passar dias e noites fora. Quando voltava, me dava presentes, me agradava, passava três meses bonzinho e depois voltava a ser o que era. Eu achava que ele ia ver que estava errando, que ia melhorar.
Me afastei da minha família, pois ele dizia que meus parentes não o aceitavam. Meus irmãos e minha mãe nunca souberam da história de fato. Eles sabiam que ele era mulherengo, que me abandonava, mas que eu voltava o tempo todo. Por isso não queriam se envolver.
Deixei de ver os meus filhos muitas e muitas vezes, eles cresceram sem a minha presença constante. Para piorar, tinha ciúmes do meu filho, que ao longo desse processo acabou tendo síndrome do pânico. Meus filhos iam passar alguns fins de semana comigo. Com a minha filha ele nunca teve problemas, mas o menino fazia ele se lembrar do meu ex-marido.
No falecimento da minha mãe ele me torturou muito. Quando ela ainda estava doente, no hospital, ele não queria que eu ficasse lá, queria que eu ficasse apenas com ele. Mas me mantive firme e fiquei com a minha mãe. Ela morreu e, no velório, ele disse que estava demorando muito, que era para irmos embora. Fomos e, no dia seguinte, no enterro, nem consegui ficar perto dos meus filhos, pois o meu ex-marido estava lá e ele não me deixava chegar perto, ficava me puxando para longe dos meus familiares. Tenho ódio de mim por ter me permitido passar por isso.
Quase quatro anos depois do início dessa relação abusiva, comecei a fazer terapia. Foram poucos meses, pois não tinha como pagar, mas isso começou a me dar forças para sair dessa relação. Passei a ler muitos livros de autoajuda e nunca perdi a minha fé. As palestras do padre Fábio de Melo sobre relacionamentos doentios também me ajudaram muito. Comecei um resgate de mim mesma. Minha filha veio viver com a gente e na frente dela ele não me batia, mas continuava com as agressões verbais.
Um dia, no ano passado, ele chegou em casa dizendo que ia embora de vez, tentou me culpar, mas comecei a me sentir aliviada quando ele foi embora dessa última vez. Doía, era triste, mas ele me fazia tanto mal que passei a não sentir mais falta. Entendi que nossa relação era como uma droga para mim e passei a me perguntar: por que tudo isso?
Ele voltou na casa uma vez e eu não estava. Como ele ia e voltava sempre, achou que eu voltaria atrás. Há três meses, me ligou pedindo o divórcio. Eu disse: é só isso? Ok. Depois nunca mais apareceu, nem ligou. Estou aguardando a papelada, sem acreditar muito que ele vá seguir adiante com o processo.
Hoje, tenho a guarda compartilhada dos meus filhos com o meu ex-marido, voltei a estudar e, recentemente, consegui um trabalho fixo. Quero fazer faculdade de serviço social e depois de psicologia. Minha filha continua morando comigo e conversamos muito abertamente sobre tudo, pois não quero que ela passe pelas coisas que passei. Meu filho se mudou com o pai para o Paraná, mas falamos sempre ao telefone.
Deixei de viver a minha existência para viver a de outra pessoa e não vou permitir que isso aconteça de novo. Além dos traumas que tento superar diariamente, ele me deixou com várias dívidas. Meu maior medo, hoje, é que ele peça a parte dele na casa que estou construindo quando perceber que, de fato, não tem mais volta.
(colaborou Adriana Del Ré)
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*O nome foi trocado para preservar a identidade da vítima.
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