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Veja publicação original: Camila e Nathália: As amigas que iniciaram uma revolução feminina na mesa de bar
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Elas criaram uma avaliação de botecos, degustam cervejas e garantem espaço em ambiente masculino. “Falar de bar e cerveja é uma forma gostosa de quebrar o machismo.”
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A desigualdade de gênero se apresenta nos salários, nas oportunidades de emprego, na divisão de trabalho e, também, na escolha de áreas de interesse. Na grita pelos direitos fundamentais, o feminismo da década de 2010 tomou as redes sociais, as universidades, os programas de TV e as propagandas publicitárias. Não tem jeito: a tendência é que mais mulheres se conscientizem que podem fazer aquilo que tenham vontade. E seguindo a tendência, Camila Carvalho e Nathália Freitas, nascidas em Niterói, no Rio de Janeiro, furaram uma barreira invisível e batem diariamente o pé para dizer que mulheres também dominam, conhecem e analisam lugares ditos improváveis, como uma mesa de bar.
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Tem um impacto no machismo porque é uma quebra de tabu, sem dúvida.
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Há dois meses, Camila, publicitária, e Nathália, administradora, deram início a algo totalmente diferente das suas formações: o Somolier de Buteco. A palavra “Somolier” faz alusão aos sommeliers, especializados em vinhos — mas aqui a especialidade é cerveja. O troca-troca de palavras fica por conta da palavra “molier”, uma das formas de se referir a mulheres nos memes da internet. E o boteco dispensa apresentações. A ideia de sentar no bar para analisá-lo surgiu exatamente do entendimento geral de que ainda é estranho mulheres fazerem isso sem a companhia de um homem. “Há poucos dias sentei no bar para esperar a Camila e fiz o meu pedido. A atendente questionou: ‘não vai esperar ele chegar para pedir?’. Até o gênero da companhia definem!”, conta Nathália, que recentemente completou 30 anos.
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Falar de bar e cerveja é uma forma gostosa de quebrar o machismo.
A ideia inicial da página foi da publicitária. Nathália foi convidada pela afinidade — “ela é a pessoa que tinha mais o perfil, tava em bar todo fim de semana, mais que eu, até”. Antes de amadurecer a ideia, cogitaram colocar restaurantes nos roteiros, mas não teria o impacto alcançado e pretendido. “O bar faz mais sentido, principalmente pela questão de ser mulher, porque várias vezes eu ia a um bar e sentia alguma coisa estranha ainda.”
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Quando sento sozinha, é automático: trazem uma cerveja e dois copos.
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A média de 50 novos seguidores por dia mostra que o sentimento de Camila é compartilhado com várias outras mulheres. “Acho que rolou muita identificação. A galera curtiu a ideia porque não tem mulheres falando sobre isso. Agora a gente conheceu mais algumas mulheres que estão começando, então está multiplicando.”
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Se nas redes sociais as pessoas valorizam a inserção feminina em um lugar extremamente machista, quando a tela é bloqueada a situação é diferente. Nathália explicou na entrevista ao HuffPost Brasil que a família só descobriria que ela conta ao mundo suas experiências e senta em bares desacompanhada quando o texto fosse publicado.
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“É machismo. Uma coisa que eu escuto muito é que eu publico muitas fotos, no meu perfil pessoal, com copo de cerveja, como se eu estivesse fazendo uma coisa muito errada. Uma tia até prometeu fazer novena para que eu não gostasse mais de cerveja!”, explica Nathália, com um sotaque carioca carregado. E Camila acrescenta que “provavelmente se você fosse homem, não iria ter essa interferência”.
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Dizem que publico muita foto com copo de cerveja, como se eu estivesse fazendo uma coisa muito errada.
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Na casa de Camila, a situação é outra. Com 25 anos, ela é a mais nova de uma casa dominada por mulheres, junto com a irmã e a mãe. Em relação ao machismo, o pai foi voto vencido. A criação de duas mulheres por outra mulher forte fez com que ele se abrisse a questões que não foram discutidas na sua juventude. A mãe acompanha as filhas nos bares, e o pai também curte a própria cerveja. Mas se o Somolier fosse criado há 30 anos, a aceitação não seria a mesma. “Hoje meu pai já mudou vários pontos [em relação ao machismo] e comprou a ideia da liberdade, ao longo do tempo. Tanto que hoje é o mais empolgado com a página, manda fotos de bares que são legais, recomenda por aí”, conta.
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A preocupação das famílias é justificável em uma sociedade que, diariamente, produz centenas de histórias sobre assédios, abusos e violências contra as mulheres. Por mais que acreditem na importância de furar bloqueios criados pelo machismo, as “molieres” têm medo das situações cotidianas. “Eu fiquei com mais medo ainda depois que eu fui perseguida por dois caras que estavam em um carro. Hoje eu tenho pânico de carros que param perto de mim.” Depois disso, o cuidado é redobrado para conseguir exercer a liberdade e voltar em paz para a casa.
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Várias vezes eu ia a um bar e sentia alguma coisa estranha ainda.
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Tentando a afirmação em um meio dominado por homens, elas contam que o mais complicado para mulheres que trabalham com degustação e gastronomia é a “brotheragem”, aquele movimento de homens apoiarem somente outros homens, mesmo que implicitamente. No ranking de problemas também não fica muito atrás o típico inconveniente, autor daqueles comentários que não elogiam o trabalho e sim a beleza das autoras. Um trabalho minucioso de avaliação de atendimento, comida, tirada de chopp e ambiente do bar ser reduzido a um genérico “vocês são lindas” incomoda, e elas deixam bem claro: “o assunto aqui é bar, ok?”.
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Mesmo com os incômodos, Camila e Nathália acreditam que uma das boas coisas proporcionadas pelo feminismo é a liberdade da mulher poder fazer escolhas. “Falar de bar e cerveja é uma forma gostosa de quebrar o machismo. Nosso intuito é mostrar que mulheres podem estar em qualquer lugar que quiserem”, define Camila.
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Quem sabe a partir da mini revolução iniciada pelas niteroienses uma mulher possa sentar em um bar sozinha, receber só um copo e não ser interpelada sobre a sua companhia masculina – que talvez ela não quer que chegue?
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Lola Ferreira
Imagem: Valda Nogueira
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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