Saiu no site HUFFPOST:
Veja publicação original: Bruna Moreira, a charcuteira que mostra que trabalhar com carne é coisa de mulher
.
“A área da carne, do fogo, é bem masculina. Quando você fala que trabalha com carne, a galera duvida do seu potencial. Mas aí a gente vai lá e quebra tudo”, se diverte.
.
“Sou da roça, do Pereira, distrito de Santa Luz. É no interior do interior, sertãozão, semiárido, nordeste da Bahia”. É assim que Bruna Moreira se apresenta. E nem precisava dizer, o sotaque denuncia. O jeitinho particular das sílabas iniciadas com D e T, na sua fala mansa e sucinta, entregam que ela veio de longe. Hoje, mora em Salvador, e exerce uma profissão um pouquinho diferente: a charcutaria.
.
A palavra vem do francês “Charcuterie”, uma junção de chair (carne) e cuit (cozido). O nome é estranho, mas se você assistiu a alguma das últimas temporadas do Masterchef Brasil, deve estar mais do que craque no assunto. Essa modalidade culinária é mais antiga do que a história humana pode documentar – então vamos dar uma revisada no assunto.
.
A charcutaria uma coisa bem medieval, é ancestral. Dizem que o homo sapiens evoluiu uma fase quando descobriu o fogo e começou a cozinhar, né? Eu acho uma coisa muito bonita.
.
.
A charcutaria é arte do preparo, inicialmente para fins de preservação, de qualquer tipo de carne. Os resultados dessa alquimia são vários. Deste processo, saem os presuntos, salames, salsichas, linguiças, defumados e a carne do sol, por exemplo. Não há registro de quando o método começou a ser usado, e Bruna garante que ele figura na própria história da evolução humana. A preservação dos alimentos, em especial das carnes, permitiu que a humanidade sobrevivesse durante períodos de escassez e possibilitou longas viagens de migração, onde nem sempre era possível obter alimentos frescos diariamente.
.
As técnicas de preparo são infinitas. E, apesar da grande variedade, o grau de complexidade é apenas aparente: uma boa carne, sal e especiarias, são o suficiente para que a “mágica” aconteça. “É uma coisa bem medieval, é ancestral. Dizem que o homo sapiens evoluiu uma fase quando descobriu o fogo e começou a cozinhar, né? Eu acho uma coisa muito bonita”.
.
Eu sou canhota, então minha mãe me dizia que eu tinha nascido com a mão errada para fazer as coisas (risos). Imagine!
.
.
A verdade é que Bruna sempre gostou de cozinhar. Entre as brincadeiras que mais lembra da infância, está uma específica na qual ela e os amigos passavam de barraca em barraca na feira, pedindo para cada vendedor um exemplar de seus produtos. Juntavam o que conseguiam arrecadar, e rumavam para debaixo de um umbuzeiro que tinha na roça. Lá, acendiam o fogo e preparavam um prato com o que tinha. “Eu não lembro de ser bom o gosto (risos). Mas era massa, desde essa época eu já inventava algumas coisas”, conta.
.
Às vezes errava o ponto de um prato ou outro, deslize que era atribuído ao fato de escrever com a mão esquerda. “Eu sou canhota, então minha mãe me dizia que eu tinha nascido com a mão errada para fazer as coisas (risos). Imagine! No interior tem um pouco de preconceito com isso”, se diverte. Mesmo com essa “particularidade”, continuava cozinhando coisinhas para os dois irmãos e alguns amigos.
.
Veio para a cidade grande aos 13 anos, quando o padrasto conseguiu um emprego em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. E mesmo com todas as setas apontando que o seu caminho era na cozinha, demorou a se dar conta. Fez curso de perfuração de poço, estudou biologia e largou, foi parar no interior do Piauí para estudar zootecnia, desistiu. De volta a capital baiana, no entanto, ficou sabendo da existência do curso de gastronomia, no qual poderia pôr em prática todas aquelas brincadeiras de criança. Fez vestibular, passou e começou a cursar.
.
E foi bem no comecinho, logo no terceiro semestre, que encontrou a sua vocação. Em uma disciplina sobre carnes, foi lhe passada a tarefa de pesquisar sobre a charcutaria. E ela não parou nunca mais. “Pesquisei, pesquisei e pesquisei. Fui para Minas Gerais fazer um curso com Mário Portela, que é um grande nome da charcutaria. E quando voltei comecei a desenvolver os meus próprios produtos”.
.
A área da carne, do fogo, é bem masculina. As mulheres são poucas. Quando você fala que trabalha com carne, a galera dá uma duvidada do seu potencial. Mas aí a gente vai lá e quebra tudo.
.
.
Fez linguiça de frutos do mar, de porco, de bode, de caranguejo e, com essa última, ganhou o concurso Nordeste Gourmet. “Eu descobri que não tinha limites (risos). Dá para fazer de tudo!”, garante. Estagiou no restaurante Amado, cozinhou na área vip da Arena Fonte Nova durante a Copa do Mundo de 2014, e depois tomou o rumo para São Paulo.
.
Na terra da garoa, cozinhou para o chef André Mifano, no Vito, e também no Esquina Mocotó, sob o comando de Rodrigo Oliveira, especializado em comida regional. “Era muito louco ver os playboys se deslocando para o outro lado de São Paulo para comer buchada, comida nordestina. Foi bem marcante, eu consegui muito além do que achava que ia conseguir. Foi resultado de muito trabalho e dedicação, que rendeu muitos frutos quando decidi voltar para casa”.
.
Era muito louco ver os playboys se deslocando para o outro lado de São Paulo para comer buchada, comida nordestina.
.
.
Apesar do protagonismo na área em Salvador, Bruna conta que a profissão de charcuteira, assim, no feminino, é coisa rara de encontrar. “A área da carne, do fogo, é bem masculina. As mulheres são poucas. Quando você fala que trabalha com carne, a galera dá uma duvidada do seu potencial. Mas aí a gente vai lá e quebra tudo”, se diverte.
.
Atualmente, assina os defumados, curados e embutidos da hamburgueria Bravo, que possui três unidades na capital baiana – o carro chefe da casa foi eleito, no ano passado, o melhor hambúrguer do Brasil no prêmio Melhores do Ano Prazeres da Mesa. Ao lado do chefe Rafael Zacarias, Bruna é extremamente criteriosa com a matéria-prima que trabalha. “Aqui a gente faz absolutamente tudo: os molhos, as carnes, os pães. É tudo homemaid. E, nas carnes que eu trabalho, eu tento usar só as especiarias e a temperatura para ter um resultado legal”.
.
É muito forte a relação que eu tenho com a caatinga, com o semiárido. É impossível para mim não falar do Nordeste.
.
.
Em todos esses lugares que trabalhou, um aspecto de sua personalidade sempre esteve presente, gritando em alto e bom tom: suas raízes. Nos braços, as tatuagens de uma mulher carregando uma lata d’água na cabeça, um bode em cima de um umbuzeiro e o contorno de uma vaca e um porquinho dão uma pista disso.
.
“Tenho muito orgulho de onde eu vim, é uma parada que, em todo lugar que eu vou, eu falo do Pereira. O pessoal até brinca que o Pereira não deve existir, que é invenção da minha cabeça (risos). É muito forte a relação que eu tenho com a caatinga, com o semiárido. É impossível para mim não falar do Nordeste, me orgulho demais dessa resistência que a gente carrega”.
.
É um ciclo, a gente sabe de onde vem, quem tá produzindo. As famílias estão sobrevivendo nessa prática.
.
.
Para manter essa ligação forte e afinada, também presta consultoria para pequenos produtores de agricultura familiar da região de onde veio. “É um ciclo, a gente sabe de onde vem, quem tá produzindo. As famílias estão sobrevivendo nessa prática. Nem todo mundo tem o sonho de sair de lá. Eles têm que ter a oportunidade de poder ficar. Ver as famílias recebendo justamente pelo o que estão produzindo para mim é o mais foda”.
.
Antes, no Pereira, Bruna não se arriscava chegar perto da churrasqueira nos encontros de família – afinal, sempre tinha “um homem para comandar a grelha”. Hoje em dia, quando se reúne com os irmãos para assar um bode ou uma linguiça que ela mesma preparou, ela só precisa fazer uma coisinha. Pigarreia, e do alto de seus 1,60, fala: “dá licença aqui, deixa comigo”.
.
.
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
.
Texto: Clara Rellstab
.
Imagem: Juh Almeida
.
Edição: Andréa Martinelli
.
Figurino: C&A
.
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
.
.
.
.
.