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Bourdieu analisa a condição feminina

Saiu no site G1

 

Veja publicação original:  Bourdieu analisa a condição feminina

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Sociólogo francês erra ao reduzir as diferenças entre os sexos a uma relação de poder.

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O lançamento de uma nova edição de “A dominação masculina – A condição feminina e a violência simbólica” (Bertrand Brasil, 208 pgs. R$ 54,90), é ao mesmo tempo oportuno e paradoxal. Oportuna porque hoje, muito mais do que na época da publicação original da obra, em 1998, as questões ligadas ao feminismo e à situação das mulheres na sociedade estão sendo debatidas com um sentimento de intensidade e urgência. Paradoxal porque, de certo modo, as mudanças ocorridas nesse lapso de tempo evidenciam certas fragilidades na argumentação do sociólogo francês – sem falar no fato de que, sendo homem, branco, europeu e heterossexual, se ele lançasse o livro em 2019 possivelmente seria acusado de não ter “lugar de fala” para escrever sobre a opressão das mulheres.

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Bourdieu faz uma análise necessária e engenhosa dos mecanismos históricos e sociais, objetivos e subjetivos, que naturalizam e “des-historicizam” valores e práticas que estabelecem uma relação desigual entre os sexos, levando a uma constância relativa dos papéis e das estruturas sexuais nos países do Ocidente. Talvez ele estivesse certo 20 anos atrás, mas é isso mesmo que acontece hoje? O sociólogo parte da premissa de uma hegemonia e de um consenso que já foram fraturados, de tal forma que não é mais possível se colocar no papel de um herói da resistência protestando contra uma ordem sexual opressora e injusta.

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Até porque mesmo as instituições interligadas a quem Bourdieu atribui a responsabilidade pela reprodução e sobrevivência dessa ordem parecem ter mudado de lado, pelo menos em parte: a Igreja, a escola e a família, que hoje operam no sentido oposto ao descrito pelo autor, trabalhando pela destruição, e não pela reprodução, do status quo. De qualquer forma, parece estranho criticar o fato de que família, escola, Igreja e Estado ratifiquem a ordem social preponderante: ora, é óbvio que ratificam, se não ratificassem nenhuma ordem social resistiria por duas gerações. Seria isso desejável?

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A distância temporal permite perceber que, frequentemente, Bourdieu se perde em um tom engajado e panfletário, de convocação e chamamento das mulheres a uma ação coletiva de resistência. Há também momentos em que ele cai no ridículo, como ao criticar o simbolismo associado à ereção: “(…) o movimento para o alto sendo associado ao masculino, como a ereção, ou a posição superior no ato sexual”. Oi? Ou, ainda, quando envereda pelo hermetismo tão caraterístico de uma certa produção acadêmica francesa, mal copiada nas universidades brasileiras: “(…)uma espécie de espessura semântica, nascida da sobredeterminação pelas harmonias, conotações e correspondências” etc.

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Ainda assim, o livro faz alertas interessantes aos movimentos feministas, como o de não se deixar atrelar ou engolfar em movimentos (político-partidários, acrescento) estranhos a suas preocupações e seus interesses específicos. Isso é particularmente evidente no Brasil de hoje, onde movimentos de minorias e de afirmação de direitos individuais se deixam claramente cooptar por um determinado partido e por uma determinada ideologia.

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Mas o problema principal de “A dominação masculina” é ceder à tentação, muito comum aos intelectuais franceses da geração de Bourdieu (começando por Michel Foucault, com quem, aliás, ele não se dava bem), a reduzir tudo a relações de dominação e poder. Ora, nem tudo na vida – nem muito menos na relação entre os sexos – se enquadra nessa dinâmica supostamente onipresente de opressor-oprimido; nem tudo é violência simbólica destinada a perpetuar essa dinâmica; por fim, nem todas as diferenças entre o masculino e o feminino são construções sociais. Reduzir a relação entre os sexos a relações de poder, ou a relações de produção, é evidentemente uma tolice.

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E, mesmo considerando que Bourdieu tem razão ao sublinhar o caráter histórico e cultural de determinados hábitos e valores, também é inegável que hábitos e valores alternativos também seriam historicamente e culturalmente fabricados. Ou seja, a relação do autor diante da História e da cultura é de revolta, não de análise – como se fosse possível suprimir esses condicionantes e substituí-los por outros, por decreto de uma minoria que é hoje uma classe falante cada vez mais distante da sociedade comum.

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O problema é que hoje não existem mais na sociedade modos de pensamento consensuais nem valores compartilhados que permitam uma análise baseada na noção de que existe uma hegemonia a ser derrubada e substituída por outra. A suposta guerra entre homens e mulheres não é mais que uma narrativa, entre muitas que se multiplicam numa base diária no Brasil e no mundo. O objetivo, ao que parece, não é superar uma situação identificada como indesejável, mas perpetuar uma situação de confronto que pouco interessa às pessoas comuns, mas que certamente interessa a alguém e a determinados grupos.

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