Saiu no site MARIE CLAIRE
A promotora de Justiça Gabriela Manssur escreve sobre a nova iniciativa em que está envolvida, o projeto Tem Saída, que tem como objetivo inserir mulheres vítimas de violência doméstica no mercado de trabalho, encaminhando-as às empresas comprometidas com a causa
Desde o início da evolução humana, o papel das mulheres na sociedade se resumia às atividades reprodutivas e de cuidado (dar à luz, cuidado com os filhos, com a casa…), funções essas que não eram consideradas importantes economicamente. Por outro lado, os homens desenvolviam atividades remuneradas, pois recebiam um salário e, com isso, pagavam as contas da casa como alimentação, vestuário, energia elétrica, moradia, saúde, educação.
Sob esse ponto de vista, o trabalho exercido pela mulher dentro de casa era desconsiderado e desvalorizado, muito embora sabendo que, sem esse papel importantíssimo, os homens não conseguiriam sair para trabalhar, pois não existiria quem exercesse o cuidado com os filhos e com a casa. Mas, em um sistema capitalista, esse tipo de atividade desenvolvida pelas mulheres e denominada “trabalho reprodutivo social” não era considerada lucrativa, tampouco geradora de renda, mas, sim, um “não trabalho”.
Dessa forma, o estereótipo do gênero feminino foi se desenvolvendo a partir do papel desempenhado pelas mulheres, no espaço privado e quase que imposto pela sociedade: não saíam para o mercado de trabalho, não lhes era permitido o direito e a oportunidade de desenvolverem atividades remuneradas e, portanto, numa sociedade capitalista, eram consideradas de menor importância.
Em contrapartida, permanecendo em seus lares, sem renda própria e muito aquém de obterem satisfação pessoal, elas se tornavam dependentes não só do ponto de vista econômico, como também psicológico: teriam essas mulheres que seguir as ordens dos seus companheiros sem nenhum tipo de autodeterminação e autonomia na administração dos lares e de suas vidas por serem consideradas “inativas economicamente”.
Consequentemente, o espaço público era destinado aos homens, e o espaço doméstico, às mulheres, havendo uma verdadeira naturalização desse conceito que justifica, em grande parte, uma desigualdade social, econômica e política estruturante e estrutural, com necessidade de correção.
Surge inclusive desse contexto um dos principais motivos que justifica o alto número de violência contra a mulher, muito relacionada aos estereótipos de gênero: a dependência econômica. Caso as mulheres não cumprissem com os papéis a elas destinados de bela, recatada e do lar e sem renda própria, eram maltratadas, humilhadas, controladas e, muitas vezes, agredidas física, moral, psicológica e sexualmente.
Há pouco mais de 100 anos é que algumas pessoas reconheceram a violência de gênero como fenômeno social, passaram a debater o assunto e a se levantar contra esse modelo de sistema patriarcal pelo qual a sociedade foi fundamentada.
Movimentos sociais e o próprio movimento feminista, à época, exigiam uma abordagem concreta do assunto, com coleta de dados significativos e pesquisas de campo aprimoradas para se detalhar esse cenário de acordo com a realidade. A iniciação desse debate foi importante sob dois pontos de vista àquela época: por coletar, analisar, distribuir e divulgar índices até então abordados de maneira superficial no Brasil e por ser a porta de entrada dos estudos sobre a mulher na academia brasileira.
A pauta também abriu espaço para mudanças significativas que ainda são objeto da luta feminista, atualmente em busca de espaço igualitário no mercado de trabalho no que tange à ocupação de cargos de liderança, assédio no ambiente de trabalho, equiparação salarial e uma melhor distribuição da soma dos trabalhos domésticos e produtivos, que ficaram como “legado” para praticamente todas as mulheres.
Mesmo que os movimentos feministas e a atuação do sistema de Justiça estejam em constante busca por equidade e igualdade em todos os espaços e aspectos econômicos e sociais, os índices de violência contra as mulheres seguem altos e há uma forte ligação entre estereótipos de gênero, violência doméstica e mercado de trabalho.
A implantação da Lei Maria da Penha foi um marco histórico e prevê um importante conjunto de mecanismos necessários ao empoderamento feminino de mulheres que são ou foram vítimas de violência de qualquer natureza, confirmando que a independência e autonomia financeira é um fator que interfere drasticamente no desfecho do quadro de violência.
Com efeito, sem independência financeira, as vítimas seguem no relacionamento, mesmo que estejam claros os sinais de que romper a relação com o agressor é a única e melhor saída. Contudo, para conseguir se livrar do “ciclo da violência”, há necessidade de poder econômico e estabilidade financeira mínima.
Em um levantamento que realizei quando fui Promotora de Justiça no Núcleo de Violência Doméstica de Taboão da Serra (SP), entre os anos de 2012 e 2016, constatei que praticamente 30% das mulheres que sofrem violência e não denunciam estão em situação de risco pelo fato de dependerem economicamente dos companheiros, sem perspectivas e oportunidades de trabalho, tampouco de resgate da autoestima e coragem para saírem de uma vida marcada pela violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
E não só isso: 18 dias por ano são as faltas atribuídas às mulheres vítimas de violência, o que gera um prejuízo anual de R$ 1 bilhão para a economia brasileira (dados da Universidade Federal do Ceará, 2017 – Relatório da Violência Doméstica e seu impacto no Mercado de Trabalho e na Produtividade das Mulheres).
Finalizei meu estudo concluindo que essas mulheres sentem medo e vergonha em assumir, no trabalho, que sofrem violência e acabam não justificando as faltas, a baixa rentabilidade e falta de concentração, que afetam em 50% sua produtividade. Consequentemente, são demitidas ou pedem demissão, voltando para os braços de seus algozes.
Se tem uma coisa que me empodera, me traz segurança, felicidade e autoestima é meu trabalho. Pensei: se me faz tão bem, por que não aproximar esse universo das mulheres que sofrem violência? E não digo apenas daquelas mais pobres, com menos oportunidades de emprego e estudo. Essas, sem dúvida, são “o alvo principal”.
Me preocupo também com aquelas que, por fazerem parte de uma sociedade que ainda acredita que a única construção social possível para a felicidade de uma mulher seja o casamento, abandonaram estudo e profissão em troca de dedicação integral aos filhos e família. Porém, “ganham de brinde” a dependência financeira. E se um dia sofrerem violência, principalmente psicológica e precisarem virar a mesa, terão grandes dificuldades para retornar ao mercado de trabalho. Acabam se tornando prisioneiras do “status social” e as principais vítimas dos relacionamentos abusivos. Tenho recebido, diariamente, muitos relatos de mulheres de classe média, média-alta nesse sentido.
Preocupados com esse cenário _violência contra a mulher, vulnerabilade econômica e falta de oportunidade_, firmamos uma parceria de sucesso. Juntos (Ministério Público, Secretaria Municipal do Trabalho e Empreendedorismo, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, OAB, ONU Mulheres e iniciativa privada), desenvolvemos o projeto TEM SAÍDA, com o objetivo de inserir essas mulheres no mercado de trabalho com prioridade, encaminhando-as para empresas comprometidas com a causa.
Essa união de esforços tem feito com que muitas mulheres desenvolvam seus potenciais e talentos profissionais, conquistem sua autonomia financeira e vivam livre de qualquer tipo de violência, direito de todas nós e compromisso do Brasil, Estado Democrático de Direitos. A oportunidade de trabalho é mais uma ferramenta eficaz no enfrentamento à violência contra a mulher e uma luz no fundo do túnel: sim, TEM SAÍDA.