Saiu na MAND FOR MINDS
As mulheres que concorrem ao Eliseu são numerosas e confirmam avanços na participação política feminina. No entanto, as duas candidatas com chances de passar para o segundo turno não têm uma plataforma feminista
Recentemente, Valérie Pecresse, candidata presidencial de Os Republicanos, a direita tradicional francesa, teve que tomar uma decisão difícil: ela deveria aceitar o convite para participar, em 18 de janeiro, de um popular programa de televisão, cujo apresentador, Jean-Jacques Bourdin, fora acusado apenas dias antes de agressão sexual contra uma ex-colega?
O dilema nasceu da combinação de dois fatores que vêm agitando a política da França: um movimento MeToo em que diversas personalidades masculinas foram acusadas de assédio sexual; e um número inédito de mulheres concorrendo ao Palácio do Eliseu.
Pecresse finalmente concordou em participar do programa, sob a condição de poder abordar as imputações contra Bourdin. “Se essas acusações forem comprovadas, elas são sérias e devem ser condenadas. O combate ao assédio sexual e à violência contra mulheres é uma luta pessoal para mim”, disse ao vivo ao jornalista de 72 anos, visivelmente atônito.
“Por tempo demais a sociedade olhou para o outro lado […] demasiadas mulheres tiveram medo, por tempo demais, de fazer uma queixa […] a lei do silêncio acabou”, completou a republicana. Apesar de a iniciativa ter desencadeado reações polarizadas, segundo alguns ela aponta para um tema inevitável na campanha presidencial.
“Esta é a primeira campanha eleitoral desde o Me Too, e a confrontação na TV foi um ponto de mudança. Ela mostrou que há pressão para se posicionar em questões de assédio sexual”, comentou a conselheira municipal e feminista Alice Coffin, que integra o movimento MeToo Politique, que denuncia a violência sexual e sexista na política.
Normalização de mulheres no poder
Em dezembro, após derrotar diversos adversários masculinos, Pecresse se tornou a primeira mulher a ser indicada pelo partido conservador para concorrer à presidência. “Foi corajoso da parte de Pecresse se manifestar na televisão sobre o assédio sexual”, avalia Coffin. “Ela também acreditava que não seria um risco político excessivo. Isso mostra que a temática tem potencial para decidir o jogo, em termo de votos.”
Com mais candidatas presidenciais de legendas tradicionais do que nunca, este é um momento de guinada na política francesa. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, também concorre pelo Partido Socialista, e Marine Le Pen mais uma vez faz campanha pelo ultradireitista Reagrupamento Nacional, que ela lidera. Por fim, a ex-ministra da Justiça Christiane Taubira tornou-se recentemente a quarta concorrente, numa tentativa de unificar a esquerda francesa em crise.
Analistas apontam que essa presença na corrida presidencial é a confirmação dos avanços das últimas décadas em potencializar a participação política feminina. As leis ajudaram: por exemplo, a que impõe multa aos partidos que apresente menos de 49% de mulheres entre seus candidatos parlamentares.
Com 38,7% a representação feminina na Assembleia Nacional, a câmara baixa do Parlamento, é a mais alta de todos os tempos, e a metade dos cargos presidenciais é ocupada por mulheres.
“O nível de progresso é quase revolucionário”, exalta a politóloga Catherine Achin, da Universidade Paris Dauphine. “Há uma normalização da presença das mulheres em escalões altos do governo. Mesmo no nível local, embora apenas 20% dos prefeitos sejam mulheres, metrópoles como Paris, Lille e Marselha elegeram prefeitas.”
“Visíveis, mas não escutadas”
Contudo, os obstáculos permanecem, com a discriminação cotidiana desempenhando um papel central. “O nível de sexismo na política francesa ainda é muito alto, e toda política com que converso confirma”, comenta Coffin.
Sua MeToo Politique recebe denúncias anônimas frequentes: “Não se passa uma semana sem uma política relatar os insultos que teve que escutar durante um discurso público, ou os comentários online sexistas e misóginos.”
Florence Sandis, autora do livro Brise le plafond de verre (Quebre o teto de vidro), trabalhou com as candidatas durante as últimas eleições parlamentares, e concorda: “Diversas políticas me disseram: ‘Somos visíveis, mas não somos escutadas.’ Muitos partem do princípio que elas são incompetentes. Isso é porque na França nós associamos poder a masculinidade.”
Apesar do progresso político, os escalões máximos do poder permanecem dominados por homens. Embora o gabinete do presidente Emmanuel Macron seja equilibrado, em termos de gênero, a maioria dos ministérios-chave é encabeçado por homens – exceto o da Defesa.
O mesmo se aplica aos líderes do Parlamento e da maioria das siglas políticas. A única primeira-ministra que a França já teve foi Edith Cresson, em 1991. E ocupar o Palácio do Eliseu continua sendo o obstáculo mais alto. “Um monte de mulheres já se tornaram ministras emblemáticas, mas nenhuma presidente da República. É uma barreira invisível”, acusa Achin.
Segundo a cientista política, para entender como o papel da presidência francesa é visto por lentes masculinas é importante voltar até o ano 1958, quando Charles de Gaulle foi eleito primeiro presidente da Quinta República, após a crise política-militar na Argélia.
“De Gaulle era um militar e um herói de guerra. Ele configurou a presidência e deixou nela sua marca, com seu corpo e estatura imponentes, de uma maneira muito masculina. Desde então, só temos visto graduados brancos no cargo – e essa ideia de que o presidente deve ser masculino, viril e suficientemente confiante para ter nas mãos as chaves do arsenal nuclear.”
Feminina sim, feminista não
Consultas de intenção de voto sugerem que, no pleito de abril, a ultradireitista Marine le Pen ou Valérie Pecresse podem acabar enfrentando Macron num segundo turno. No entanto, nenhuma das duas tem uma plataforma feminista.
“Le Pen certamente não defenderia os direitos femininos, caso eleita. Suas atitudes políticas, na verdade, preocupam quem dá valor a essas questões”, assinala Amandine Clavaud, diretora do Observatório de Igualdade de Gêneros do think tank Fundação Jean Jaurès.
Nem mesmo Pecresse – que prometeu se tornar “a primeira mulher presidente da França”, mas nega ser feminista – inspirou as ativistas dos direitos femininos, apesar de sua recente investida contra o assédio sexual.
Em janeiro, a candidata republicana apresentou sua equipe de campanha presidencial: um grupo exclusivamente masculino de 11 assessores para as principais áreas políticas. “Há uma diferença fundamental entre ter mais candidatas na eleição e promover um programa mais feminista”, comenta Clavaud.