Saiu no site ÉPOCA:
Veja publicação original: As mães que perderam a guarda dos filhos após acusarem os pais de abuso sexual
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Por Rafael Ciscati
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Tecnicamente é muito difícil comprovar o abuso sexual infantil, um crime quase sempre cometido em casa
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A primeira lembrança que Mayara* tem daquele sábado, 20 de agosto de 2016 — o último dia em que viu o filho —, é de um estrondo. Um golpe potente que escancarou a porta do sobrado onde ela e a família moravam, em um condomínio em São Paulo. A segunda é a de policiais aglomerados em sua sala de estar, com os quais deparou logo que correu escada abaixo. A terceira é aquela que, passados dois anos, mais lhe dói. É a memória de uma frase: “A senhora é a Mayara? Viemos buscar o menor João Paulo”. Foi o momento em que ela desabou.
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Mayara é uma psicóloga de 48 anos, cabelos lisos e voz firme. Por mais de três décadas, ocupou cargos altos na diretoria de grandes empresas. Nas redes sociais, depoimentos de antigos colegas descrevem-na como uma gestora habilidosa e decidida. Ao longo dos 12 dias que antecederam aquele sábado fatídico, no entanto, Mayara conta que vacilou repetidas vezes. Seu primeiro vacilo, embora breve, ela disse que aconteceu quando o filho João Paulo, poucos dias depois de passar duas semanas de férias na casa do pai — de quem Mayara se separara em 2014 —, lhe fez um apelo: “Ele se sentou, sério, no balcão da minha cozinha”, lembrou Mayara. “E disse: ‘Mamãe, me ajuda’.” Segundo ele, então com 5 anos, o pai o machucava constantemente. Às vezes sozinho, às vezes na companhia de um amigo, introduzia o dedo no ânus de João Paulo. “Eu pensei: ‘Meu Deus, o que eu faço com essa criança?'”, disse Mayara a ÉPOCA, sem conseguir conter o choro.
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Aquela não era a primeira história de abuso que Mayara ouvia, embora fosse a mais grave. Desde que tinha pouco mais de 2 anos, a criança relatava, a sua maneira, as estranhas brincadeiras em que o pai a envolvia. “A gente brinca de p… com p… Não é legal isso?”, João lhe perguntou certa vez, durante uma ida ao supermercado. O relato foi gravado por ela. No áudio, ouve-se um João Paulo que, na época, mal sabia falar: “Eu já fiz isso com meu pai e vou fazer de novo, ué”, dizia, entremeando as palavras com interjeições infantis. A suspeita de abuso foi notificada por Mayara à Justiça e levou ao divórcio do casal.
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Naquele agosto de 2016, após a conversa no balcão da cozinha, Mayara saiu com o filho a tiracolo e correu a uma unidade do Conselho Tutelar do bairro em que viviam, pronta a relatar o ocorrido. De lá, os dois foram encaminhados a uma delegacia. João Paulo foi ouvido sozinho. No relato descrito no inquérito, contou como o pai o penetrava com o dedo repetidas vezes ao dia, com o auxílio de uma pomada retirada de uma bisnaga branca e azul: “Meu pai fica enfiando o dedo com força no meu bumbum. Já pedi, chorando, para ele parar. Mas ele não para”. João Paulo ainda disse que presenciava jogos sexuais entre o pai e outro homem: “Ele mostrou o pipi para o meu pai. Eu peguei uma faixa ninja e coloquei no meu olho, que eu não queria ver nada”, relatava o menino. “A delegada não teve dúvidas: me orientou a interromper as visitas do pai de imediato”, disse Mayara. “Seu filho é uma criança abusada, mãe. Ele, agora, é um problema do Estado”, teria dito a policial, segundo Mayara.
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Mayara voltou para casa com a certeza de que a situação se resolveria. Foi uma convicção efêmera. No 12º dia de paz, um oficial de justiça e dois policiais irromperam em sua sala de estar. Sem conseguir contato com o filho, o pai fora à Vara de Família. Alegou que Mayara inventara o abuso para afastá-lo da criança — a mesma estratégia que, segundo ele, ela teria tentado durante a disputa de 2014. Mayara praticava “alienação parental”. Mayara perdeu a guarda da criança — e, considerada uma ameaça à saúde do filho, foi impedida de ter contato com ele.
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A decisão da Justiça se ampara na lei da alienação parental, de 2010, criada para, em teoria, impedir que durante um processo de divórcio um dos pais afaste os filhos do convívio do outro. Segundo seus defensores, a legislação pode auxiliar juízes a resolver disputas familiares; segundo mães, advogados e juristas, é mal utilizada e se tornou parte da estratégia de defesa de homens suspeitos de abuso. A aplicação da lei é investigada em uma CPI, e um grupo com mais de 100 mães — Mayara entre elas — organiza-se para cobrar sua revogação.
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A lei de alienação parental é uma jabuticaba jurídica. Apesar de o conceito aparecer em decisões tomadas em diversos países, somente no Brasil há um texto específico sobre o tema. A teoria que lhe serve de base é questionada por psicólogos e juristas há mais de 30 anos. O conceito de alienação parental foi criado pelo psicólogo forense americano Richard Gardner e apresentado em um artigo publicado em 1985 numa das revistas da Academia Americana de Psicanálise. Gardner, que se suicidou em 2003, trabalhava como perito em tribunais. Apesar de admitir que o fenômeno pode ser levado a cabo por qualquer um dos pais, Gardner lista uma sequência de artimanhas potencialmente utilizadas por mães “abandonadas”: “A mãe pode se queixar de maneira tão amarga de suas restrições financeiras a ponto de levar o filho a crer que vai morrer de fome”, escreveu.
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O ponto mais polêmico diz respeito à existência de uma Síndrome de Alienação Parental (SAP), um conjunto de sintomas manifestados pela criança que vivenciou o processo de “vilanização” do pai. Nos casos mais graves, dizia o psicólogo, a criança pode mesmo relatar casos de abuso sexual que nunca ocorreram. As ideias de Gardner não têm boa aceitação por seus pares. Uma tentativa de seus adeptos de incorporar a SAP ao Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM, na sigla em inglês) — a bíblia da psiquiatria mundial, que lista os transtornos reconhecidos pela comunidade científica — terminou em frustração. Em 2015, um grupo de pesquisadores da Universidade de Roma concluiu que a síndrome não existe.
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Apesar da controvérsia, a lei brasileira foi comemorada por especialistas em Direito de Família. “Ela veio responder a uma situação que já acontecia nos tribunais, embora não tivesse nome próprio”, disse a ÉPOCA a ex-desembargadora Maria Berenice Dias. Aos 70 anos, Dias tomou decisões que contribuíram para ampliar o entendimento do Judiciário acerca do conceito de “família”. Foi ela quem cunhou o termo “homoafetividade”, ao defender a existência de famílias formadas por casais do mesmo sexo. “Fui a primeira pessoa do Brasil a julgar um caso segundo o conceito da alienação parental”, disse ela, que se aposentou em 2008 — antes de a lei entrar em vigor. Hoje, ela tem um escritório de advocacia em Porto Alegre.
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A lei lista um conjunto de situações em que ocorre a alienação parental. Comete a falta o genitor que tenta dificultar o contato do ex-parceiro com a criança; que fala mal do ex-parceiro diante do filho ou que — no limite — denuncia o ex-parceiro por um crime que não cometeu. As sanções vão de simples advertência até a reversão da guarda. “Como quando a mãe faz uma falsa acusação de abuso sexual — algo que não é assim tão incomum”, afirmou Dias. Acostumada a acompanhar divórcios conflituosos, ela contou que algumas mães — e também alguns pais, embora mais raramente — acusam o antigo parceiro como forma de pressionar por acordos vantajosos. “Às vezes, a mãe interpreta mal algo que o filho disse”, afirmou Dias. “E, aí, seu primeiro impulso é fazer de tudo para protegê-lo.”
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De autoria do ex-deputado federal Régis de Oliveira, a lei foi empurrada pela pressão diligente de Analdino Paulino Neto, um senhor de 65 anos, calva acentuada, olhos muito azuis e certo apreço por palavras de baixo calão. Em finais dos anos 90, Paulino Neto e um amigo criaram a Associação de Pais Separados (Apase). A organização dá orientação jurídica a pais que temem perder a guarda dos filhos em processos de divórcio turbulentos. “Viajo o Brasil inteiro prestando consultoria”, disse Paulino durante uma conversa em um café em São Paulo, enquanto mastigava uma quiche de queijo acompanhada por água de coco.
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Seu interesse pela questão surgiu por causa de reveses pessoais. “Minha mulher, quando ficou grávida, passou a se sentir muito poderosa”, disse, agitando-se na poltrona. No divórcio, após o nascimento da filha, Paulino contou que foi agredido pela ex-mulher e afastado do convívio com a menina. “A mulher, quando tem um filho, parece que trepou com ela mesma”, teorizou, erguendo a voz e atraindo a atenção das pessoas nas mesas próximas. “Ela se esquece de que precisou de sêmen para engravidar.”
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A Apase decidiu que deveria pressionar por mudanças na legislação porque as leis brasileiras, em sua visão, demoravam a acompanhar mudanças na sociedade. “A maioria dos pais, hoje, quer participar da vida dos filhos”, disse. “O problema é que o Judiciário não entendia isso, e as mães se viam capazes de enredar os filhos, para separá-los dos pais. São ‘mães medeia’.” Nas palavras dele, o Brasil vive “uma guerrilha urbana entre casais separados”. Nessa guerra, as mulheres se valem de duas armas importantes: a Lei Maria da Penha (“Um número muito grande de denúncias de agressão é falso”, disse) e as falsas denúncias de abuso sexual contra menores. “O que essas mães querem é privar os homens do direito de ser pais”, disse. Nesse instante, uma senhora veio à mesa acompanhada pelo filho. “Quanta sabedoria, hein, meu senhor? Meu ex-marido desapareceu e me deixou sozinha com um filho para criar.” Paulino mordeu a quiche, sem se abalar.
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Mayara peregrina pelo Judiciário há quatro anos, tentando provar que seu filho falava a verdade sobre os abusos do pai. Sempre ouve: “Você sabe que é muito difícil provar abuso, mãe. Vamos esquecer essa história”. Logo que soube que pai e filho brincavam de “p… com p…”, Mayara decidiu que “precisava agir para confirmar ou refutar a história” contada pela criança. “Quando meu filho me contou aquela história (sobre a brincadeira de “p… com p…” do pai durante o banho), fiquei incrédula”, disse Mayara. Até ali, seu casamento fora marcado por alguns conflitos. Segundo ela, Antônio*, um administrador de empresas também na casa dos 40 anos, descontrolava-se sempre que bebia; nessas ocasiões, rasgava as próprias roupas e arranhava o rosto em surtos que, por um período, chegaram a ser diários. Mas sempre fora um pai cuidadoso: “Ter um filho era seu maior desejo”, contou Mayara. “Quando João Paulo nasceu, ele ficou exultante.”
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A história da tal brincadeira deixou Mayara tão preocupada quanto surpresa. “Numa tarde, cheguei (em casa) no horário do banho, sem avisar.” Pai e filho tomavam banho. Ambos, segundo ela conta, tinham pênis eretos: “O que está acontecendo aqui?”, lembrou-se de ter gritado. A resposta veio na forma de socos e pontapés. Mayara entrou na Justiça com um pedido de Medida Cautelar, expulsou o marido de casa e tentou restringir seu acesso ao filho. Relatou no tribunal a cena presenciada. A juíza decidiu que Antônio deveria ser afastado da criança enquanto a história era apurada. “Mas me advertiu de que, se não fosse verdade, eu poderia sofrer sanções.” Na ocasião, lembrou Mayara, a advogada do pai disparou que “virou moda mãe acusar pai de abuso”.
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Para apurar se a história de abuso tinha componentes de verdade, o ex-casal e o filho deviam passar pela avaliação de uma psicóloga forense. A pedido da defesa do pai, a tarefa ficou a cargo de uma perita privada, escolhida por eles. Nas palavras de Mayara, a passagem pela perita apontada pela defesa do ex-marido foi “um desastre”. O laudo disse que a relação de João Paulo com o pai era harmoniosa; e que a insistência da mãe no episódio do abuso refletia uma “personalidade persecutória”. Citando um texto de Richard Gardner, a perita concluiu que o comportamento “paranoico” de Mayara era comum em casos do gênero e que João Paulo não dava sinais de ter sido molestado. Segundo a avaliação, Mayara sofria de transtorno de personalidade esquizotípica, que a tornava propensa à paranoia. Mesmo assim, quando questionada pela juíza que cuidava do caso, a psiquiatra confirmou que Mayara não representava risco para a criança.
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Dois anos depois, quando ela notificou ao Conselho Tutelar o crime de Antônio, a criança passou por uma bateria de exames. No Instituto Médico-Legal do hospital Pérola Byington, um médico-legista examinou suas lesões, para tentar determinar se eram resultado de violência sexual. “A médica me alertou de que eram grandes as chances de o laudo dar negativo”, recordou Mayara. Foi o que aconteceu. O documento apontava a presença de lesões, que poderiam ou não ter sido causadas pelo pai. Não havia vestígios conclusivos de violência nemde sêmen. Sem provas contundentes, e com dois laudos apontando possíveis desequilíbrios psiquiátricos, a Justiça decidiu que Mayara oferecia riscos ao filho. A guarda foi entregue ao pai. O abuso, Mayara já se convencera, era difícil de provar.
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Apesar de incômoda, a afirmação é verdadeira. “Na maioria das vezes, o máximo que conseguimos fazer é avaliar a probabilidade de a violência ter acontecido ou não”, disse o juiz Humberto Maion, do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, numa manhã de fins de julho. Maion despacha de uma sala comprida, com assoalho de madeira escura, no quarto andar do Fórum João Mendes Júnior — um imenso labirinto de corredores com vista para a Catedral da Sé. Sempre que lhe cai em mãos um caso de abuso sexual intrafamiliar — ocorrido no interior de uma família —, sua conduta se repete: rapidamente, a criança é afastada do suposto agressor. A seguir, num processo sem prazo definido para ser concluído, tenta-se apurar a veracidade da acusação. “É raro, mas já vi casos em que a acusação era mentira”, disse Maion.
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A apuração lida com uma série de complicadores. Raramente há testemunhas do abuso e nem sempre a violência deixa marcas físicas distintivas. Nos casos em que é feito exame de corpo de delito, é comum que o laudo produzido não chegue a conclusões claras, pois 72 horas após o abuso as chances de o perito encontrar material genético do agressor no corpo da criança são quase nulas. “O que o laudo médico faz é apontar as muitas possíveis causas das lesões”, disse Ivan Miziara, superintendente da Polícia Técnico-Científica de São Paulo. “Quando o laudo é inconclusivo, nós também ficamos angustiados. E isso acontece com mais frequência do que gostaríamos.” O juiz da Vara de Família, a quem cabe decidir nos casos de suspeita de abuso, pode levar em conta perícias psicológicas e psiquiátricas. Mas, na maioria dos casos, elas tampouco trazem respostas incontestáveis. “Nosso trabalho consiste em montar um complexo quebra-cabeça”, disse Cátula Pelisoli, psicóloga do TJ do Rio Grande do Sul.
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“Olha só, elas não param de me mandar coisas.” A paulistana Lúcia estava sentada à mesa da cozinha de casa com os olhos grudados no celular. Há dois anos, ela criou um grupo no aplicativo WhatsApp que reúne mulheres com histórias semelhantes a sua. Em 2014, depois de denunciar o ex-marido por abusar do filho, ela perdeu a guarda da criança. Lúcia se casou com um homem quase 20 anos mais velho. “Gentil e encantador”, segundo ela. O filho do casal tinha cerca de 1 ano quando ela soube que era traída. Seguiu-se um divórcio amigável e um acordo informal segundo o qual o filho dividiria o tempo igualmente entre as casas dos pais. Lúcia disse que tudo corria bem, até o dia em que o garoto voltou para a casa da mãe chorando e vomitando. A situação se repetiu algumas vezes. Na última delas, Lúcia foi dar banho na criança e percebeu lesões na região anal. “O papai mexe no seu bumbum?”, perguntou. “Sim. E dói muito.”
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Em desespero, procurou ajuda no hospital Pérola Byington, referência em casos de violência sexual. Foi avisada de que, antes de tudo, ela deveria fazer um boletim de ocorrência. Recuou. “Anos antes, meu ex-marido me contara que tinha sofrido abuso na infância”, disse ela. “Eu o via como uma vítima também. Não queria resolver a questão na esfera criminal.” Não registrou a ocorrência; preferiu confrontar o ex-cônjuge. Ele recorreu à Justiça, alegou ser vítima de alienação parental. Quando Lúcia registrou o boletim, seu filho passou por exame de corpo de delito, mas, àquela altura, não restavam mais sinais da violência. Ao fim do processo na Vara de Família, Lúcia foi considerada alienadora. O menino foi morar com o pai. Diante do fato, decidiu pesquisar casos semelhantes. Conheceu Mayara, e juntas reuniram outras mães em situação semelhante num grupo de WhatsApp que, hoje, gerencia. Descrentes do Judiciário, decidiram se amparar umas nas outras.
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Naquela tarde de julho, Lúcia ainda sentia os abalos de uma história que acompanhara semanas antes. Uma das mães do grupo, temendo perder o filho, matara a criança com um tiro na cabeça e se suicidara. Em fevereiro de 2017, Dolores Mileide de Souza assistia a uma propaganda de cerveja na TV quando o filho, então com 3 anos, interrompeu-a: “O papai gosta, não é, mamãe?”, contou a psicóloga Izamara Holak, que acompanhou o caso do menino. Dolores confirmou. Ela e o marido haviam se separado meses antes, e ele gostava mesmo de beber. “O papai joga aqui e põe a boca”, disse a criança, apontando para o próprio corpo, de acordo com o relato de Holak.
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Dolores era investigadora de polícia em Apucarana, interior do Paraná. Morava no município vizinho, Cambé, em uma casa simples, com o filho e a mãe. A história da criança a transtornou. Ela relatou o episódio a colegas, que recomendaram que ela procurasse Holak — psicóloga voluntária na delegacia. “Depois de algumas consultas com o menino, eu estava convencida de que ele sofrera abuso”, disse Holak. O pai negou o crime e alegou que sofria alienação parental. Para apurar se o abuso ocorrera ou não, o juiz do caso pediu que a interação da criança com os pais fosse avaliada por psicólogos. “Estávamos na fase de produção de provas periciais”, contou Sandro Bernardo da Silva, advogado de Dolores. “Mas tudo indicava que ela manteria a guarda da criança.”
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Dolores não estava segura. “Ela achava que o menino voltaria a conviver com o pai, voltaria a sofrer abusos”, lembrou Holak. Num áudio enviado a amigos, Dolores contou se sentir sozinha e desesperada. “É um pesadelo”, diz na gravação, enviada por WhatsApp. “E, quando eu vejo o relato de tantas mães… Não sei se vou suportar.” No começo de julho, Dolores enviou uma mensagem para Lúcia. Disse que deixaria o grupo de mães no WhatsApp. Na noite do dia 4, telefonou para a psicóloga Holak. Contou que temia os resultados das visitas monitoradas. Naquela mesma noite, escreveu uma carta de despedida: “Meu filho é um anjo (…) Não vai ser estuprado”. Atirou na criança e em si mesma.
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Hoje, as mães coordenadas por Mayara e Lúcia pedem a revogação da lei da alienação parental; ou, ao menos, sua reformulação, de modo a proteger quem porventura denuncie abusos sexuais. Em maio deste ano, o grupo foi a Brasília participar de uma sessão da CPI dos Maus-Tratos. Presidida pelo senador Magno Malta (PR-ES) e criada para apurar situações que ponham em risco menores de idade, a CPI já foi palco de episódios controversos. Em novembro passado, Malta foi criticado por expor um homem preso por pedofilia ao escrutínio dos parlamentares. Pouco antes, propusera a condução coercitiva de Gaudêncio Fidélis, curador da exposição Queermuseu, para prestar depoimento. “É um homem polêmico, mas foi quem nos deu ouvidos”, disse Mayara. À agência de notícias do Senado, Malta disse estar convencido de que a lei da alienação parental é usada em defesa de abusadores. “Temos hoje um turbilhão de mães vivendo seu desespero. Infelizmente, gente do mal tem em todo lugar, inclusive no Judiciário”, disse o senador.
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Mesmo com relatos como os de Mayara, Lúcia e Dolores, é difícil avaliar a boa ou má execução da lei, pois faltam números oficiais sobre o assunto. É impossível dizer com que frequência a alegação de alienação parental é usada nos processos em que existe uma suspeita de abuso sexual. “O Brasil é o país do achismo jurídico”, disseram a ÉPOCA, por e-mail, o juiz Romano Enzweliler e a advogada Cláudia Galiberme. Em 2014, eles publicaram o artigo “Alienação parental, uma iníqua falácia”, no qual questionam o embasamento teórico da lei e reúnem casos em que o texto foi usado em decisões controversas. Na falta de dados representativos, os dois recorreram a decisões disponíveis no site do STJ. Encontraram ao menos 11 casos — de 28 — em que acusados de abuso alegam ser vítimas de “falsas memórias” implantadas por mães mal-intencionadas. “Em alguns casos, a lei é usada como escudo para acobertar pedófilos”, disseram os juristas.
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Segundo eles, o mais grave é que, apesar das muitas dúvidas quanto a seus possíveis malefícios, a lei tenha sido rapidamente adotada pelos tribunais. “No país dos modismos jurídicos, a alienação parental virou uma febre”, escreveram. De fato, dados do TJ de São Paulo dão conta de que a popularidade do conceito cresceu de maneira surpreendente. Se em 2013 o tribunal julgou 150 casos de alienação parental, em 2017 foram mais de 3 mil. No Reino Unido, uma recente tendência do Judiciário a tratar conflitos no divórcio como casos de alienação parental foi combatida por acadêmicos. “O diagnóstico errôneo da alienação parental pode culminar na separação da criança de uma mãe que somente tenta protegê-la”, escreveu a professora Jane Fortin, da Universidade de Sussex, no jornal The Guardian.
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Em mais de uma ocasião, ÉPOCA tentou conversar com os pais citados. Manteve conversas por WhatsApp com Antônio, ex-marido de Mayara. Ele concordou em dar uma entrevista pessoalmente. Mas, dizendo-se atribulado com compromissos de trabalho, desmarcou a conversa três vezes. Após duas semanas, um assessor de imprensa entrou em contato com a reportagem em seu nome e acusou ÉPOCA de estar “intimidando” seu cliente. “Vocês foram influenciados pela ex-mulher do meu cliente, uma mulher condenada pela Justiça”, afirmou, por telefone, aos gritos, o assessor. O marido de Lúcia não respondeu às tentativas de contato.
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Enquanto cobra a revogação da lei, Mayara luta para voltar a ver seu filho. Nos últimos dois anos, procurou provar à Justiça que é sã: submeteu-se à análise de psiquiatras, na tentativa de colocar por terra o diagnóstico de transtorno de personalidade esquizotípica que recebeu. Um laudo, produzido pelo professor Jorge Adelino Rodrigues da Silva, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contestou os anteriores e atestou sua normalidade psíquica. “A situação é enlouquecedora, mas eu não tenho o direito de enlouquecer. Porque meu filho pediu ajuda, e a Justiça não ouviu. Preciso estar sã, para brigar por ele.”
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*Os nomes foram trocados para preservar a intimidade dos citados nesta reportagem
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