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Artistas trans precisam ocupar os palcos do teatro brasileiro

Saiu no site METRÓPOLES:

 

Veja publicação original: Artistas trans precisam ocupar os palcos do teatro brasileiro

Por Sérgio Maggio

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Tenho uma personagem em travessia de gênero em “L, O Musical”, espetáculo que acaba de completar 116 sessões com mais 20 mil espectadores pelo circuito CCBB (Brasília, Rio, São Paulo e Belo Horizonte). Quando começa a peça, Simone, interpretada sensivelmente pela atriz brasiliense Gabriela Correa, é vista por todos (espectadores e demais personagens) como uma mulher lésbica de trejeitos masculinizados.

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Ninguém sabe que “ela” enfrentou uma crise de gênero. Percebeu-se homem no corpo de mulher. Sofreu, mergulhou em seu íntimo e conscientizou-se diante de tamanha dor. Quando as cortinas são abertas, Simone mantém-se ainda como mulher lésbica porque tem pela frente uma segunda e crucial batalha: o amor da personagem Rute D´Almeida (vivida por Ellen Oléria).

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Karina Zambrana
Rute e Simone: amor em conflito
(Foto: Karina Zambrana)

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Simone teme que Rute não a aceite como um futuro homem trans e esse “não” é o seu conflito. Quase um impedimento em seguir. Rute ama o seu corpo feminino. Tem um fascínio especial pelo seios, que serão, num tempo adiante, retirados a fim de que Simone siga sua adequação de gênero. Quando “L, O Musical” termina, Simone caminha para a plenitude. Será ele, numa ficção que continuará na cabeça do espectador.

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Desde que comecei a escrever a história de Simone, uma trama paralela ao eixo central da história, sabia que precisava ter uma atriz em cena. Nunca passou pela minha cabeça ter um ator trans no papel porque Simone está dramaturgicamente ainda em corpo feminino, mesmo superada a sua crise de gênero.

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Na reta final de “L, O Musical”, exatamente quando o espetáculo completou 100 sessões, recebemos na plateia mineira artistas do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans), que colocaram a presença da personagem em xeque. Até então, entendia que o termo “trans fake” (cunhado, recentemente, para contestar a presença de personagens trans vividos por intérpretes cis) estava ligado à esfera dramatúrgica.

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Na penúltima sessão de “L, O Musical”, recebemos para uma roda de conversa dois artistas do MONART: Caio Jade, performer e poeta de São Paulo, e Lui Rodrigues, ator e produtor de Belo Horizonte. Ali, olho no olho, eu, o diretor artístico, Jones de Abreu, e a atriz Gabriela Correa percorremos os caminhos traçados pelas ideias desses dois criadores. Ocupamos o palco. Entre as vozes, havia doçura, diálogos e generosidade.

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Não demorou muito, como um facho de luz, para perceber que o “trans fake” não é uma questão de narrativas ou interditos. É mais complexo. Atualmente, poucos artistas trans, como Renata Carvalho (foto em destaque), acessam o circuito teatral brasileiro.

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O “trans fake” é, portanto, estrutural, como o racismo que banaliza a não presença de intérpretes negros em montagens que não dialoguem com temas como preconceito racial
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Em “L, O Musical”, temos duas protagonistas negras (ou “pretagonistas”) e poderosas em cena: Elisa Lucinda, autora da novela de maior sucesso do país, e Ellen Oléria, atriz cultuada de teatro. Porém, Não temos artistas trans (uma mulher trans lésbica, por exemplo) no palco, já que a minha premissa criativa era só ter mulheres em cena.
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Não temos também nenhum profissional trans na criação nem nos bastidores. Não foi feita sequer uma consultoria de um homem trans (devidamente remunerado) para que Gabriela Correa pudesse desenvolver sua pesquisa de criação. Nada, nenhum trans em meio a mais de 150 profissionais envolvidos direta ou indiretamente na produção em oito meses de trabalho. Empregamos somente criadores cis.

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Compreendi profundamente a gravidade do “trans fake”. Nós, artistas cis, sequer pensamos nesses artistas e técnicos para criarem nossos espetáculos porque os trans estão em completa invisibilidade. No caso de “L, O Musical”, por melhores que fossem as nossas intenções e posturas éticas, a ignorância e a falta de visão não permitiram que alcançássemos essa compreensão para além das premissas políticas que tínhamos.

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“O “trans fake” é cruelmente estruturalizante. E talvez nem precise ter personagens nem histórias trans para combatê-lo. Não se trata de cotas. Nem de obrigações. E sim de cogitarmos simplesmente essa presença pela capacidade e talento desses artistas. A representatividade de corpos trans no palco, na ficha técnica, na relação das planilhas orçamentárias, é urgente. Precisamos aproximar os mundos cis e trans. Houve uma cisão e, felizmente, dessa fenda surgiram uma multidão de seres humanos livres e aptos para seguir a vida.”

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É preciso olhar para cima do muro que nos cerca e cega. “Trans fake”, talvez, seja uma expressão encontrada para falar sobre “acolhimentos ou desamparos”. Um grito para sair das ruas, das esquinas, dos subempregos. Um caminho para se viver para além dos 35 anos (expectativa de vida dos trans no Brasil). Uma esperança na conquista dos direitos básicos do humano.

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“Saímos daquele encontro certos de que nada mais será como antes. Estamos falando de vidas e vidas trans nos importa
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