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Veja publicação original: Alterações no Direito Penal da violência sexual
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Novos crimes, velhos problemas
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Ninguém prestou muita atenção – ou a atenção devida – por conta das eleições. Mas o Código Penal foi recentemente alterado. De novo. Agora foi a vez da Lei 13.718/18, que agravou a disciplina dos “crimes contra a dignidade sexual” e criou dois novos delitos: a “importunação sexual” (art. 215-A) e a “divulgação de cena de estupro, sexo ou pornografia” (art. 218-C).
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A intenção por trás das recentes mudanças atende a um apelo legítimo por uma maior atuação do Estado contra diferentes formas de violência de gênero, que não devem ser naturalizadas. Apressadas respostas penais precisam, contudo, passar pelo filtro de um saudável ceticismo; tendem a ser parte do problema, não da solução. Sobram exemplos nesse sentido.
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Em perspectiva político-criminal, como de praxe, será preciso esperar; só a história pode demonstrar alguma capacidade preventiva a partir de inovações legislativas – e o passado demonstra que, na melhor das hipóteses, o efeito é pouco. Por outro lado, do ponto de vista estritamente técnico, já é possível afirmar com tranquilidade que as alterações são bastante ruins, e deveriam ter sido melhor pensadas e redigidas antes de promulgadas.
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Mas antes de denunciar erros, vejamos se há algo que mereça o elogio. Nesse sentido, a criação do crime de “importunação sexual” é um destaque positivo. A nova figura, inspirada no que era antes mera contravenção, tem potencial para evitar a interpretação expansiva (e, por isso, inconstitucional) do crime de “estupro”, que nos últimos anos serviu equivocadamente como “cláusula geral” para incriminação sexual – mesmo quando não presentes seus requisitos legais e banalizando-se qualquer rigor probatório. A consequência esperada, por Habeas Corpusou revisão criminal, é a desclassificação de várias ações em curso no Judiciário, que serão agora adequadas ao delito recém incluído. Basta, para tanto, que ato de natureza sexual antes genericamente processado como “estupro” não envolva o contato direto de genitália nua, conforme o princípio da legalidade estrita, pois a caracterização rigorosa do art. 213 do Código Penal exige “conjunção carnal” (arcaísmo jurídico para se referir a sexo vaginal) ou ato libidinoso equivalente (sexo anal, oral etc.), praticado mediante violência ou grave ameaça (equivalente ao “statutory rape”, na tradição jurisprudencial dos Estados Unidos).
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Esse mérito, entretanto, não parece justificar nem superar os vários defeitos da alteração. Destaquem-se três.
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Primeiro, os crimes sexuais passam a ser de “ação penal pública incondicionada”. Isso significa, em poucas palavras, que as brasileiras maiores de 18 anos já não decidem se o seu caso de violência sexual irá ou não ser apreciado pelo Judiciário. Essa medida não apenas falha em atacar a dominação sobre o gênero feminino, como pode desincentivar a notificação desses crimes, justamente nos casos em que, por força da própria condição de vulnerabilidade, a vítima prefere não tomar medidas irreversíveis. Agora, subordinada à vontade dos promotores, a mulher perde autonomia diante da autoridade estatal, e é declarada incapaz de decidir se quer ou não que seu caso seja processado pelo sistema de justiça criminal.
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Disso decorre outra consequência, igualmente preocupante: o aborto legal realizado na rede pública de saúde em função de estupro passa a estar sujeito a maiores limitações. Atualmente, de acordo com a Norma Técnica do Ministério da Saúde sobre o tema, é desnecessário o registro da ocorrência para interromper gravidez resultante de violência sexual, podendo realiza-lo em qualquer hospital. Por não existir conexão entre a atividade médica e a autoridade pública, a palavra da vítima era suficiente para autorizar o procedimento. Era. Após a alteração, o médico que realizar um aborto em função de estupro e deixar de comunicar o fato à Polícia e ao Ministério Público estará praticando uma contravenção, definida no artigo 66, inciso II, do Decreto-Lei 3688. Isso, certamente, tornará o chamado “aborto humanitário” mais difícil e estigmatizante. Trata-se de uma grave e adicional violação ao direito à intimidade e vida privada das mulheres, com efeitos colaterais importantes em matéria de saúde pública.
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Segundo, as alterações estão em conflito com outras leis. É o caso do artigo 218-C, recém introduzido no Código Penal, cuja redação se confunde com os artigos 241-A e 241-B, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Todos tratam, de maneira ampla, da distribuição de vídeos e fotos de atos sexuais, sem preocupação com a divisão clara das hipóteses que dizem respeito a vítimas menores de 18, 14 ou 12 anos. Em acréscimo, as penas previstas para cada um dos delitos variam de maneira incoerente, sendo difícil antecipar respostas juridicamente precisas, a depender do caso. Evidentemente, quando uma mesma ação está sujeita a diferentes hipóteses de crime, aumenta a incerteza do andar processual; no entrelaçado e complexo sistema penal, questões mal resolvidas como essa dificultam decisões claras e justas. E isso sem necessidade. O Legislativo demonstrou, mais uma vez, desconhecer o sistema no qual opera, produzindo justaposições que certamente não auxiliam a realização do ideal de segurança jurídica e celeridade, mais frequente na retórica do que na prática.
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Terceiro, e último, a redação das alterações é tecnicamente deficiente, como ilustram duas referências. De um lado, o novo crime de “divulgação de cena de estupro, sexo ou pornografia” (art. 218-C) impõe a mesma pena para ações diferentes tanto do ponto de vista fático quanto valorativo. Difícil pensar, ao contrário do que sugere o novo crime, que a venda de vídeo de estupro é equivalente ao compartilhamento não autorizado de uma fotografia de nudez sem o rosto da vítima. As duas condutas são censuráveis, por certo, mas em escalas diferentes, desconsideradas pelo legislador. Sem falar na desproporção: para o atual Código Penal, agredir alguém a ponto de enviar a vítima para a UTI (art. 129, §1°, II) tem a mesma consequência penal do que divulgar um “nude”, com ou sem a identificação explícita do retratado, desde que sem seu consentimento.
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Outra evidência de incompetência legislativa pode ser vista na hipótese de “estupro em coautoria” (isto é, praticado por duas ou mais pessoas), que é, simultaneamente, causa de aumento da pena em “um quarto” (art. 226, I) e “de um a dois terços” (art. 226, IV, a). Como a lei não especifica quais crimes tem qual aumento, a tendência é valer a regra geral de aumento em um quarto até que alguém se digne a alterar o Código Penal com um pouco mais de responsabilidade. Em tempo, a referência do subtítulo a “estupro coletivo”, na lei, não resolve o problema, já que nem mesmo é possível saber se diz respeito apenas ao art. 213, “estupro”, ou inclui também o 217-A, “estupro de vulnerável”, como é razoável exigir.
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Erros grosseiros em legislação criminal são comuns no Brasil e, nas últimas décadas, o problema só piorou.
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Hoje o Congresso mostra pouca ou nenhuma preocupação com a qualidade das leis penais que destina aos seus cidadãos. O mais importante, sempre, é privilegiar uma certa perspectiva punitivista, referida como “o que o povo quer”, de acordo com a interpretação de certos iluminados de ocasião, de esquerda ou direita. Questões de vitimização sexual, sempre complexas e, via de regra, atreladas à desigualdade de gênero, merecem maior cuidado, dispensando prescrições imediatistas e apelativas. A dignidade de mulheres e homens, crianças e adolescentes, que sofrem esse tipo de violência, exige da classe política um comportamento menos demagógico e mais criterioso, que privilegie estratégias de prevenção e, no campo da repressão, obedeçam aos mais rigorosos parâmetros técnicos de criminalização – até porque a liberdade humana está do outro lado da balança. A aposta simplista em mais crimes e maiores penas, como resposta pronta para casos abjetos e amplamente explorados pela mídia, normalmente se revela inadequada.
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Mas quem se importa? Criminalizar assuntos urgentes com pouco cuidado científico é, em regra, a melhor forma de soterrar o problema sob o tapete da conveniência, neutralizando a demanda popular por políticas efetivas, intenções legislativas à parte. E, a essa altura, todos os políticos brasileiros, derrotados ou eleitos, já aprenderam essa lição.
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