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Veja publicação original: Aline Corujas, a artista compassiva que esculpe no barro e na cabeça das pessoas
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“As pessoas conhecem muito pouco a cabeça delas. Elas não se veem enquanto existem. Eu vou desfazendo esses nós”, explica escultora em Salvador.
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Em A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, há uma passagem na qual um dos personagens se dedica a decifrar os significados de compaixão. Ele evoca as línguas de origem latina, na qual a palavra é composta pelo prefixo “com” e com o radical “passio”, que quer dizer “sofrimento”. Esta é a razão pela qual a expressão inspiraria, na maioria das vezes, desconfiança. “Designa um sentimento de segunda ordem, que não tem muito a ver com o amor”, diz um dos trechos.
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É essa última opção que Aline Corujas traz tatuada no pescoço, em tinta vermelha. Aquilo que, para ela, na hierarquia dos sentimentos, é o supremo. A capacidade de sentir, com qualquer pessoa, qualquer sentimento: alegria, angústia, felicidade, dor. A mais alta capacidade de imaginação afetiva.
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Aline é escultora e corta cabelos. Simples assim. Mas também não é só isso. Bom, ela não é cabeleireira… Como eu posso explicar? Aline recebe as pessoas dentro da própria casa — no máximo 3 por dia — e se dispõe a conhecê-las, acima de qualquer outra coisa.
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Alguns chamam de visagismo. O termo faz referência à ideia de criar uma imagem personalizada no corte, baseada na identidade da cliente. Para isso, é preciso que muita conversa seja jogada fora e várias ideias sejam trocadas – ou como ela mesmo prefere dizer, que haja “elucubração”. E tudo isso, como não poderia deixar de ser, demanda algumas tantas voltas dos ponteiros do relógio. Na bio de seu perfil no Instagram, há o aviso assertivo: “venha sem pressa”.
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Visagismo. Ok, o substantivo até que é bom, mas ainda não consegue contemplar a potência dessa figura. Deixa eu ver… Durante conversa de quase duas horas com o HuffPost Brasil, um dos amigos com quem divide apartamento tratou de avisar a reportagem: “Aline é uma força da natureza. E natureza a gente não controla. Tem que parar, ouvir e contemplar”. Recado dado. Vamos deixar então que ela conte a história desde o comecinho.
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“Sempre senti como se nada pudesse parar a gente, mesmo que tudo contribuísse para. Ficamos nisso de sobrevivência até aqui. Mas chega uma hora que você se toca e fala: ‘chega de sobreviver, quero viver’.”
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Aline é filha de 2 estudantes de Educação Física que não chegaram a concluir o curso, a se casar ou sequer a darem certo juntos. Apesar dos desentendimentos, em uma coisa eles concordaram: deram à luz duas meninas extremamente criativas — além da nossa personagem, eles também são pais da designer Alexia. Com a separação, o pai ficou no Rio de Janeiro, e as crianças seguiram com a mãe para uma cidadezinha do interior de São Paulo tão pequena que nem no mapa consta.
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Só que o ritmo do trio calafrio era outro. E bastou um empurrãozinho para que ele se mudasse em peso para outro estado de espírito. A mãe, que à época ensinava ginástica olímpica para crianças numa creche, ouviu de uma outra professora, nativa de Ilhéus, no sul da Bahia, que seria melhor para as crianças serem criadas numa cidade turística, barata e mais tranquila. Uma foto da capital do cacau foi o suficiente para que ela se mudasse para lá, no dia seguinte, com mala, cuia e filhas debaixo do braço.
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“Mas ela sempre foi muito sagaz: desde que a gente chegou lá, arranjou emprego nos colégios particulares para conseguir bolsa de estudos para a gente – e fez isso até a nossa formatura. Até o meu terceiro ano, a função da minha mãe era fazer a gente dar certo.” Com essa estratégia, estudou nos colégios mais caros da cidade, sem ter quase nada em casa: “a gente criou uma dinâmica de ser uma só célula em funcionamento e proteção. E isso foi um puta recurso de ver possibilidades onde aparentemente não tinha nada, porque minha mãe sempre fez isso de alguma forma”.
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“Eu falo pelas mãos. Eu sempre digo que pode acontecer qualquer merda com o meu corpo, menos com as minhas mãos. Sem elas, eu fico sem função.”
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A diferença de um ano e pouquinho de idade entre ela e a irmã mais velha foi essencial para que elas “dominassem o mundo que nem Pinky e Cérebro”. Nos lugares comumente considerados mais chatos para as crianças, como filas de banco ou de lotéricas, as duas aproveitavam para rabiscar personagens nos bilhetes de aposta, recortar os folhetos que encontravam e desenhar um universo só delas. Coisa que — alerta de spoiler — fazem juntas até hoje.
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E, mesmo que morando longe, há bastante influência de um certo alguém nesse viés artístico. A comunicação entre as meninas e o pai se dava por meio de cartas. Mas não qualquer tipo de carta: elas eram criptografadas. Seu pai mandava um papel só de símbolo e letras correspondentes e o outro papel com esses sinais escritos, para que as filhas decifrassem. “Eu acho que minha mãe me ensinou a viver, e meu pai me ensinou a pensar. E isso foi muito massa porque eu sempre senti como se nada pudesse parar a gente, mesmo que tudo contribuísse para. Ficamos nisso de sobrevivência até aqui. Mas chega uma hora que você se toca e fala: ‘chega de sobreviver, quero viver'”.
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A vida começou para Aline quando ela decidiu fazer vestibular em Salvador. A irmã já havia ido para a capital um ano antes para cursar design, e ela só tinha três certezas: queria sair de Ilhéus, não queria fazer o mesmo curso que Alexia para evitar comparações e precisava, acima de todas as alternativas anteriores, usar as mãos. “Quando eu parei para pensar no que eu queria ser, eu vi que a minha parada sempre foi a mão. Eu falo pelas mãos. Eu sempre digo que pode acontecer qualquer merda com o meu corpo, menos com as minhas mãos. Sem elas, eu fico sem função.”
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Optou por Artes Plásticas, passou em primeiro lugar, veio com a mãe para a capital, mas demorou a se encontrar. “Eu tava numa escola com um monte de artista foda, que dividia um sanduíche da Subway no almoço porque não tinha grana. Aí eu falei: cara, o que que tá acontecendo?” Trabalhou em lojas de shopping para se sustentar, mas a rotina de 10 horas em pé fazia que ela não conseguisse marcar presença em todas as disciplinas nas quais se matriculava.
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Decidiu, como última tentativa, cursar aquilo que todo mundo que tinha carro na faculdade fazia: decoração. Só que não aguentou 2 semestres desenhando apartamentos de luxo enquanto morava em Cosme de Farias, na periferia de Salvador. “Muito fruto da minha imaturidade também, eu não conseguia ver outras possibilidades para as artes. Para mim era uma profissão. Eu não entendia ainda que era uma condição de existência.”
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“O que eu faço é o produto da minha expressão. Tenho um objeto no mundo e tenho que fazer alguma coisa com ele. Decidi então não vender as minhas obras e as dou de presente. Elas estão no mundo assim.”
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A lógica agora era esta: queria fazer alguma coisa para vender, e não queria mais faculdade. Resolveu então que iria produzir vasinhos de planta. Procurou uma forma genérica na internet, comprou gesso, utilizou a mão-de-obra da irmã e criou a marca com o próprio nome e sobrenome. E o negócio deu muito certo. Vendeu tudo que produziu, até que o gesso e seu consequente pó fininho se tornaram um problema de saúde. Só que vocês já viram que nada para essa mulher: se dispôs a encontrar um material alternativo ao primeiro e foi aí que a mágica aconteceu.
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“Eu encontrei o barro, a cerâmica. E foi primeira coisa na minha vida que eu quis estudar de verdade, e quanto mais eu estudava, mais eu pensava em cerâmica, mais eu queria fazer.” Bom, e onde ela foi aprender essa arte? Ironia do destino ou não, Aline teve de voltar para a faculdade de onde havia acabado de sair. “Eu nasci num bairro chamado Olaria, meu pai hoje vende tijolos e eu faço cerâmica. Que vida louca, né?”
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Até agora fez duas grandes séries de obras, uma sobre o tempo e a necessidade de parar e a segunda sobre o rio São Francisco. Só que depois de vender esses trabalhos, percebeu onde estava o verdadeiro problema de toda a insatisfação que acumulava. O tipo de troca, a partir da moeda, não lhe interessava: “o que eu faço não é a minha expressão, mas o produto do que foi a minha expressão. Eu tenho um objeto no mundo e tenho que fazer alguma coisa com isso. Eu decidi então não vender as minhas obras, hoje eu as dou e elas estão no mundo dessa forma”.
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Toda a experiência que teve com os perrengues que passou com a mãe e a irmã na infância, a “caída na real” sobre o estado da arte quando chegou à faculdade e a relação que estabelecia com o consumo culminaram no que ela faz hoje para ganhar uns trocados.
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Aline sempre cortou o próprio cabelo. Desde criança, o jeito prático da mãe em levar a vida estabeleceu que ela e a irmã deviam manter um corte acima das orelhas para que não pegassem piolhos na escola. “E na minha lógica era o seguinte: se alguém vai errar o meu cabelo, que esse alguém seja eu.” Treinou por anos em suas próprias madeixas no espelho de casa, até que um dos amigos que sabia do dote fez a pergunta que hoje é a sua marca registrada: “corta pra mim, Aline?“.
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Com uma máquina que havia pego emprestada da mãe, cortou. E, assim que acabou, apareceu mais um amigo fazendo o mesmo pedido. Papo vai, papo vem, e quando ela se deu conta, havia seis marmanjos na sala de casa, todos com os cabelos cortados por ela. Um deles sugeriu: “amiga, você deveria fazer um Instagram, oh praí, ficou de fuder os cabelos”. Ela fez. E nesses 7 meses já atendeu mais de 200 pessoas.
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“Eu não sabia quanto custava um corte, eu não sabia nada e eu não queria saber, porque essa é a minha ‘gastação’. Não quero que nada seja um empecilho no quanto eu me divirto fazendo isso.”
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No primeiro corte de um cliente oficial, cobrou somente o necessário para comprar a própria máquina e devolver o empréstimo. O preço dos cortes passou a ser, justamente, o preço que pagou pelo aparelho.
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No ato de cortar cabelos, Aline encontrou um estudo “antropológico muito foda”. “As pessoas chegam aqui acostumadas com uma lógica de consumo e meio que eu consegui criar uma janela de tempo. Tem horário para chegar, mas não tem horário para sair.” Sem técnica alguma de como operar as tesouras, traz para a alçada das próprias pessoas um serviço que elas sempre terceirizaram.
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“As pessoas conhecem muito pouco a cabeça delas, principalmente porque os olhos ficam na cabeça. Então elas não se veem enquanto falam, enquanto existem. Eu vou desfazendo esses nós o tempo inteiro”, explica.
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O preço cobrado é pelo tempo, para que ela possa pagar aquilo que a sua subjetividade não toca — como aluguel, água e luz, por exemplo. “Hoje eu trabalho somente o necessário para ter o necessário. Se eu quero alguma coisa, eu faço um cálculo: quantos cortes de cabelo eu preciso fazer para comprar essa coisa?”
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No imaginário coletivo, é normal você passar horas e horas num salão de beleza fazendo permanente, massagem, rinsagem, reflexo e otras cositas más. Aline se propôs a passar horas e horas trocando ideia com pessoas maravilhosas. “Vale muito a pena você perder o medo das pessoas. Eu literalmente abro a porta da minha casa para 3 desconhecidos todos os dias. E é pra isso que eu vivo.”
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Talvez pelo sorrisão estampado na cara, os assuntos que parecem nunca ter fim e a criatividade absurda nas esculturas que faz tanto no barro quanto em cabeça de gente, a agenda de Aline não passa uma semana sequer sem estar abarrotada de nomes. Aliás, a razão é mais evidente do que se imagina.
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Seja numa cidade do interior de São Paulo que só tem uma reta, no extremo-sul baiano estudando de favor ou na sala de um apartamento em frente à igrejinha do Corredor da Vitória, a regra que rege a vida dela é uma só: compaixão.
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas
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Texto: Clara Rellstab
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Imagem: Juh Almeida
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Edição: Diego Iraheta
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Figurino: C&A
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Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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