Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Abusos, estupros, feminicídios: setembro não foi um bom mês para as mulheres
Por GABRIELA MANSSUR
A Promotora de Justiça Gabriela Manssur mergulha nas atrocidades cometidas a mulheres no último mês
Ufa, chegou outubro, pois setembro definitivamente não foi o mês das mulheres. Da ejaculação nos transporte públicos aos feminicídios, para nosso desespero os crimes continuam e se intensificam. Eu poderia colocar aqui várias estatísticas, mas elas não sensibilizam mais. Preferi lembrar de alguns casos que marcaram o mês da primavera:
“Mãe questiona filha de 12 anos sobre virgindade e escuta: foi o seu marido”
“Homem é preso por matar ex a facadas após ela mudar de cidade para fugir dele”
“Fui estuprada em um encontro do Tinder”
“Homem é preso por extorquir mulheres em estupro virtual”
“Homem queima rosto da esposa com água fervendo”
“Menina é vítima de estupro coletivo e suspeito filma o crime”
“Pai espanca e corta o cabelo da filha que perdeu a virgindade aos 13 anos”
“Filmei meu próprio estupro e consegui a prisão do agressor”
“Veterinário mata mulher e depois se suicida”
“Cidade de São Paulo tem quase sete casos de estupro registrados por dia”
“Bombom diz que apanhava do ex-marido”
“Homem é preso por se masturbar na frente de mãe e filha em elevador”
“´Ela veio correndo, desesperada´, diz mãe de criança de 5 anos vítima de abuso sexual em hipermercado em Porto Alegre”
“Condenado por crime sexual em voo, preparador físico Nuno Cobra é preso”
Todos me tocam, claro, mas o último me surpreendeu. Sempre gostei de praticar esportes e li umas duas vezes o livro A Semente da Vitória, de Nuno Cobra, por acreditar que a disciplina e o condicionamento físico que se aprendem no esporte podem ser levados para todos os campos da vida – afinal, “mens sana in corpore sano”, não? Infelizmente não. Treinador físico que preza a saúde, acusado de abuso sexual?
Será que as pessoas têm noção do mal que esses crimes causam à saúde física e psíquica das mulheres? Estresse pós-traumático, pânico, depressão, fobia social, distúrbios do sono – sem falar na sensação de impotência, medo e vergonha. Muitas mulheres demoram anos para denunciarem um abuso e quando denunciam escutam: “mas quem estava perto?”, “alguém viu?”, “quem vai acreditar em você?”, “por que você mudou a versão?”. O pior é que nunca ninguém vê, pois são crimes que ocorrem na clandestinidade. E aquelas mulheres que conseguem romper o silêncio e buscar justiça, muitas vezes não recebem a resposta que esperam por não haver provas suficientes daquilo que elas falam, contam, narram ou “alegam”. Nesses casos, a absolvição é quase certa. E não são os aplicadores da lei que erram. É princípio básico do nosso Processo Penal: “na dúvida, absolve-se”. A palavra da mulher ainda é posta em jogo e muitas vezes não vale como único meio de prova, principalmente sobre crimes sexuais.
Estamos vivendo uma onda de conservadorismo? Na minha opinião sim, mas não é uma onda. O conservadorismo sempre existiu. Porém, agora que as pessoas dão opiniões e se expressam publicamente e a qualquer momento – principalmente por meio das redes sociais -, isso está explícito. E o conservadorismo, antes velado diante dos direitos das mulheres, está escancarado.
Ainda que tenhamos avançado em leis, tratados internacionais, programas e campanhas, se compararmos decisões judiciais de 30 anos atrás com as atuais, percebemos que a fundamentação é a mesma. As mulheres alcançaram seus direitos, mas a cabeça das pessoas não mudou. E quando maior a autonomia da mulher, maior o conservadorismo: funciona como uma espécie de reação, de freio e resistência às nossas conquistas.
Tudo que foi exposto acima chamou minha atenção para mais um questão: qual é o limite dos nossos direitos, em especial a tão defendida liberdade de expressão?
Como cidadã, ultimamente, diante de debates acirrados que se instalaram sobre decisões judiciais e casos polêmicos, passei a me sentir reprimida e deixei de me manifestar muito vezes. Defendo sim que nossas ações e decisões tenham que estar em compasso com o que acontece no mundo, sob pena de vivermos em núcleos isolados e invioláveis, como azeitonas em conserva. Mas agora me sinto intimidada para falar sobre determinado assunto e de me indignar sobre determinadas decisões judiciais, pois muitas vezes me deparo com discursos de ódio e de intolerância apoiados na liberdade de expressão. E esse nunca foi o meu objetivo.
Todos nós perdemos com isso: calou parte da minha voz, da sua e de muita gente. Não podemos mais falar nada, principalmente quando o foco é diversidade, gênero e mulheres. Se nos posicionamos a favor do aborto, somos antirreligiosas; se nos posicionamos contra o machismo, somos feminazes e mal-amadas; se nos posicionamos a favor do feminismo, somos de esquerda e temos que concordar, consequentemente, com que uma criança toque o órgão sexual masculino em uma exposição de arte. E ai se falarmos o contrário. O exercício de um direito deve ser livre, claro, desde que não impeça o exercício do direito de outra pessoa – em privilégio ao princípio máximo da nossa Constituição Federal a dignidade da pessoa humana: os meus, os seus, os nossos Direitos. Como disse Oliver Wendell Holmes Jr., jurista americano da Suprema Corte dos EUA: “O direito de eu movimentar meu punho termina quando começa seu queixo”.
Não quero iniciar o mês de outubro com pessimismo. Sejamos esperançosas, afinal na Arábia Saudita foi liberado o direito das mulheres dirigirem. Não desanimo, pois quando falo e escrevo sobre tudo isso, meus olhos brilham em pensar em quantas mulheres tiveram coragem, quantas mulheres gritaram, denunciaram, exigiram e conseguiram seus direitos, sua própria liberdade.
Sim, setembro se foi, mas tem algo que ficou guardado na minha mente e coração: o dia 19, aniversário de 9 anos do meu filho, que ele me fez um pedido: “Mãe, eu gostaria muito de conhecer a Maria da Penha”. Essa sim é a verdadeira semente da vitória.
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