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A SOFRIDA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Saiu no portal UOL, na coluna da psicanalista e escritora Regina Navarro Lins. 

Comentando o “Se eu fosse você”

A questão da semana é o caso da internauta, casada há quatro anos. Seu marido fica cada vez mais agressivo. Quando discutiam sobre um gasto e ela estendeu a mão para pegar o cartão de crédito sobre a mesa, ele a agarrou e jogou no chão. Ela está preocupada e muito magoada.

Segundo um artigo do jornal americano New York Times, o comandante das forças das Nações Unidas na Bósnia costumava se referir aos rugidos noturnos das metralhadoras no centro de Sarajevo, em 1993, como “violência doméstica”. As estatísticas mostram que grande parte dos ferimentos físicos e assassinatos ocorrem entre pessoas que vivem juntas.

A mulher sempre foi extremamente maltratada pela violência do homem, considerada banal no lar. No entanto, supõe-se que ela tinha que aguentar e sofrer sem se queixar. Isso durou muito tempo. Mesmo no século XX, ninguém queria intervir em briga de marido e mulher. Alegava-se que se tratava de um assunto privado e havia um ditado popular bem conhecido que dizia: “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

Foi somente na década de 1970, com as iniciativas das feministas, que se começou a estudar o impacto da violência conjugal sobre as mulheres. Mesmo assim muitas continuam sendo agredidas por seus maridos.

Para entender melhor a situação da violência contra a mulher conversei com Maria Gabriela Manssur, promotora de justiça, membro do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo e Diretora da Mulher da Associação Paulista do Ministério Público. www.justicadesaia.com.br | www.facebook.com/justicadesaia | @justicadesaia

POR QUE É TÃO DIFÍCIL PARA A MULHER DAR UM LIMITE À VIOLÊNCIA DO MARIDO?
Muitas vezes a mulher não reconhece que está sofrendo violência ou que está em um relacionamento abusivo. Ela acredita que o parceiro está nervoso, que em uma discussão muitas coisas são faladas sem pensar, que é briga de casal, que ele estava embriagado ou drogado. A mulher tenta justificar a conduta do agressor.

Outras vezes ela tem medo do agressor, depende financeiramente dele, teme pela vida dos filhos, acredita que ele vá mudar de comportamento, ou depende afetivamente dele a ponto de não conseguir se imaginar sem ele. Então, não “valoriza” essa ameaça.

UMA PRIMEIRA AGRESSÃO PODE SER MOTIVO DE DENÚNCIA?
A mulher nunca deve subestimar um ato de violência. A qualquer momento em que a se sentir ou for agredida, ameaçada, violentada, abusada, violada em sua liberdade e seus direitos, ela deve procurar ajuda.

Se ela não romper o silêncio, ninguém vai ajudá-la. Em todos os casos de agressão, é possível pedir ajuda pelo Disque 180 da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, diretamente ao Ministério Público, Defensoria Publica, nos centros de referências para a mulher ou delegacias especializadas, e até mesmo em Unidades Básicas de Saúde (UBSs).

QUAIS SÃO AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER?
Além da violência física, existe a psicológica, moral, sexual, patrimonial. Podemos dizer também que há uma violência simbólica contra as mulheres exercida pela mídia e campanhas publicitárias, que colocam todas as mulheres em uma situação de inferioridade em relação aos homens, como se fossem dominadas, submissas, objeto de desejo e satisfação…

Há ainda muita violência cometida por meio das mídias sociais, que chamamos de violência cibernética, que vem crescendo ao longo dos anos e causa danos irreparáveis à moral dessa mulher.

A VIOLÊNCIA FÍSICA PREDOMINA?
A violência física corresponde a aproximadamente 57% dos casos: é a conduta que ofende a sua integridade corporal, como a agressão, o tapa, o chute, o soco, empurrão, puxão de cabelo.

E A VIOLÊNCIA SEXUAL?
A violência sexual corresponde a aproximadamente 7,5% dos casos: é a conjunção carnal ou qualquer outro ato sexual sem consentimento da mulher, mediante violência ou ameaça, coação, força física, ou se a mulher, por algum motivo, não puder oferecer resistência ou reação como, por exemplo, estiver sob o efeito de álcool e droga, ou tiver algum comprometimento físico ou mental que a impeça de consentir com os fatos.

Se a vítima for menor de 14 anos, não há necessidade da violência ou ameaça para configuração do estupro; para a lei é considerado estupro de vulnerável e crime hediondo

O QUE É CONSIDERADO VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA?
Violência psicológica é qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima ou que prejudique o pleno desenvolvimento das atividades rotineiras, como estudar, trabalhar; ou que vise controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir.

O QUE CARACTERIZA A VIOLÊNCIA MORAL?
Qualquer conduta que abale ou prejudique a moral da pessoa, aquilo que ela pensa sobre ela mesma ou que as outras pessoas pensem dela: xingamentos, ofensas, fofoca, imputação de fatos falsos, que podemos ser para a própria vitima, para terceiras pessoas ou publicamente. São os crimes de injúria, calúnia e difamação. A soma de casos de violência psicológica e violência moral chega a 30%.

O QUE É VIOLÊNCIA PATRIMONIAL?
Há ainda a violência patrimonial, que corresponde a aproximadamente 2,5% dos casos, é qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos.

É COMUM A VIOLÊNCIA FÍSICA SURGIR DE REPENTE?
Geralmente as agressões morais e psicológicas precedem à violência física. Não espere que uma agressão mais grave aconteça. Hoje, com as campanhas de conscientização e informações, a mulher está identificando mais rapidamente uma relacionamento abusivo ou violento e está reagindo, impedindo que a situação de violência se agrave.

O QUE PREVÊ A LEI MARIA DA PENHA?
Essa lei prevê mecanismos de proteção das mulheres, garantias de todos os seus direitos, de prevenção, enfrentando e erradicação de todo tipo de violência contra a mulher. A lei faz menção a vários direitos das mulheres, aos tipos de violência que a mulher poder sofrer, mas os crimes propriamente ditos estão previstos no Código Penal em legislações específicas.

Além disso, a Lei se preocupa com os aspectos de justiça social, ou seja, o que aquela mulher que está em situação de violência precisa para resgatar sua autoestima e a identidade que lhe foi roubada pela violência: saúde, trabalho, escolaridade, acompanhamento psicológico, estabilidade no emprego, moradia, segurança.

Uma das novidades da Lei é que ela pode ser aplicada para relações homoafetivas e transexuais (o Tribunal de Justiça de São Paulo garantiu a aplicação da lei para transexuais que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero).

POR QUE MUITAS VEZES AS MULHERES DESISTEM DE DENUNCIAR?
Por acreditar que o parceiro vai mudar seu comportamento; por depender financeiramente e/ou afetivamente dele a ponto de não conseguir se imaginar sem ele, por temer reações mais violenta por não acreditar na Justiça, por ter vergonha de contar o que aconteceu e principalmente do julgamento social.

Já na hora de fazer a denúncia, os maiores problemas enfrentados pelas mulheres são a falta de local especializado, estrutura e com equipe técnica especializada para atendimento às mulheres; falta de espaço reservado para que façam seus relatos, sem constrangimento, interferências externas e pressão para relatar a violência pela qual estão passando; falta de promotorias e varas especializadas para a matéria (violência contra a mulher).

Quando a mulher chega ao Ministério Público, já percorreu uma rota crítica em que não recebeu atendimento adequado, especializado ou encaminhamento devido. Ela tem que ir à Delegacia, ir ao Instituto Médico Legal, ir ao Centro de Referência da Mulher, ir à OAB ou Defensoria Pública e Ministério Público. E muitas vezes desiste no meio desse caminho, pois, do outro lado, via de regra, o agressor está ameaçando ou fazendo juras de amor.

A LEI MARIA DA PENHA TEM EFETIVAMENTE AJUDADO NA PUNIÇÃO DO AGRESSOR?
Sim. Nos locais em que há varas especializadas de violência doméstica com olhar de gênero dos operadores de direito e integração da equipe multidisciplinar, temos conseguido a resposta adequada e proporcional à violação do bem jurídico tutelado: direitos humanos das mulheres.

Seja violência física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial, a mulher em situação de violência tem encontrado as portas do sistema de justiça abertas para recebê-la com dignidade e respeito.

ALÉM DA PUNIÇÃO, HÁ ALGUM TIPO DE TRABALHO DE REABILITAÇÃO COM O HOMEM AGRESSOR?
A própria Lei Maria da Penha prevê nos artigos 35 e 45 a possibilidade de programas voltados ao agressor para sua responsabilização, conscientização e reflexão sobre os fatos cometidos. A partir de um estudo realizado na promotoria de Taboão da Serra, onde atuei por quatro anos, percebi que 50% das mulheres retomam o relacionamento e pedem de alguma forma a retirada da denúncia, revogação das protetivas e que a promotoria dê apenas um “susto” no agressor.

Por outro lado, muitas mulheres, em média 20%, deixam de procurar ajuda ou denunciar por acreditarem que podem mudar o comportamento do autor dos fatos. E mais um dado: uma pesquisa feita pelo instituto Avon, de 2014, aponta que 56% dos homens entrevistados já cometeram um ato de violência contra suas parceiras.

Fazendo um conjunto de todos esses dados mencionados, conclui-se a necessidade de desenvolver grupos reflexivos com autores de violência, com propósito de transformação comportamental e prevenção a novas situações de violência que eles provavelmente irão se envolver.

Desenvolvemos o Projeto Tempo de Despertar em Taboão da Serra, para ressocialização do agressor, obtendo queda de 65% para 1% de reincidência. A Lei Maria da Penha tem esse caráter tridimensional e não só puramente penal: prevê acolhimento da mulher, punição do autor dos fatos e ressocialização do agressor.

AO PRESENCIAR UM CASO DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, QUALQUER PESSOA PODE DENUNCIAR?
Sim, qualquer pessoa pode e deve fazer a denúncia se suspeitar que alguém está sofrendo agressão. É possível fazer isso pelo Disque 180 ou procurar uma Delegacia de Defesa da Mulher e, se não quiser ser identificado, pedir para ficar sob sigilo.

Os fatos serão apurados e a denunciante não terá a identidade revelada. Se a pessoa agredida não confirmar a denúncia por medo, os fatos serão apurados pelas autoridades mesmo contra a vontade da vítima, por se tratar de uma questão pública e de interesse de toda a sociedade.

Portanto, é importante denunciar, você pode salvar uma vida. E quem salva uma vida, salva todas. Tenho me deparado com vários casos ultimamente em que terceiras pessoas como vizinhas, colegas de trabalho e familiares fizeram a denúncia no lugar da vítima, alegando medo em uma “morte anunciada”.

HÁ LUZ NO FUNDO DO TÚNEL? HÁ VIDA APÓS A VIOLÊNCIA?
A Lei Maria da Penha deu visibilidade aos casos de violência contra mulher, levou informação para dentro de casa e deu para a mulher a esperança de que existe, sim, vida após a violência. Essa lei retirou a violência doméstica de dentro de quatro paredes, tornando-a questão de ordem pública a ser enfrentada pelo sistema de justiça com eficácia, rapidez e proteção às mulheres.

Ou seja, a Lei Maria da Penha deu voz às mulheres que muitas vezes estão paralisadas, amedrontadas, ameaçadas e não tinham condições de reagir. É o grito da liberdade. Mas por mais que tenha sido colocada em evidência nessa última década, a causa da mulher ainda não é prioridade.

O bom é que as mulheres estão muito mais conscientes de seus direitos, mais mulheres jovens procuram a Justiça, independente da classe social. Elas não se permitem viver em uma situação de violência, estão mais unidas e mais empoderadas.

Publicação original: A Sofrida Violência Doméstica

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