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Eram por volta das 10h30 da manhã de uma quinta-feira quando a funcionária pública Jussara Gomes Brasil, 41, chegou à 1ª DDM (Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher), na Sé, centro de São Paulo. Acompanhada pelos dois filhos, um de 12 e outro de 7 anos, ela saiu cedo de Mairinque, interior de São Paulo (a 75 km de São Paulo), na esperança de conseguir registrar um BO (boletim de ocorrência) contra o ex-marido.
Jussara contou que se separou em 2010, após sete anos de casamento, alguns deles marcados por episódios de agressão. “Eu apanhava por causa de um café ruim. Quase morri de tanto apanhar, mas consegui me separar. Temos a guarda compartilhada dos filhos, mas ele maltrata os dois.”
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Naquele ano, no Dia das Mães, ela resolveu levar os meninos para a casa dela, em Mairinque, e desde então tem sofrido ameaças. “Ele diz ‘devolve ou você vai se arrepender’, naquele tom, sabe? E eu sei do que ele é capaz, por isso vim aqui fazer um BO para conseguir uma medida protetiva de urgência”, diz a servidora pública.
A Lei Maria da Penha, de 2006, garante à mulher o acesso à medida protetiva, que estabelece limite mínimo de distância entre vítima e agressor, assim como a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, caso o homem possua licença para usar armas. Para que ela seja solicitada, é preciso que a mulher tenha feito um BO.
A 1ª DDM não foi a primeira delegacia que Jussara procurou. “Mairinque não tem delegacia da mulher, então fui a uma delegacia comum. O escrivão de lá é da igreja onde meu ex-marido é pastor. Sempre que vou lá ele me diz algo para não registrar o BO. Diz para eu resolver o problema ‘dentro de casa’. Fui na delegacia da mulher de São Roque (cidade vizinha) e me disseram que não poderia fazer a queixa, já que o fato ocorreu em Mairinque. Aqui [na Sé] foi a mesma coisa: tenho de registrar na minha cidade.”
O movimento de mulheres lutou muito para que existissem delegacias especializadas no atendimento a mulheres vítimas de violência em todo o país. A primeira delas foi inaugurada em 1985, em São Paulo — justamente a 1ª DDM, visitada por Jussara.
“Ele pressionou o Executivo com a intenção de que esse fosse um atendimento mais humano, voltado para a especificidade da violência contra a mulher. Mas essas delegacias não estão fora da sociedade, acabam reproduzindo valores que reforçam os papéis de gênero. E, por isso, é muito comum que essa mulher sofra quando chegue a uma delegacia”, afirma a advogada Marina Ganzarolli, fundadora da DeFEMde (Rede Feminista de Juristas)
Quantidade X qualidade
São Paulo é o Estado do país que possui a maior rede de órgãos especializados em atendimento à mulher vítima de violência. Segundo a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo), existem 132 delegacias especializadas na defesa da mulher, mas a orientação é para que todos os distritos policiais atendam as mulheres.
No entanto, relatos sobre dificuldades de registrar boletins de ocorrência e de mau atendimento por parte de agentes ainda são comuns. A jornalista Camila Caringe, 29, contou que recebeu o conselho de “tentar resolver o problema dentro de casa” de uma escrivã em uma DDM na cidade de São Paulo em julho de 2014, depois de ter sofrido ameaçadas do então marido. “A abordagem da escrivã me fez sentir culpada na primeira vez [que tentou denunciar]. Saí de lá pensando que eu que era a louca, que precisava fazer as pazes com ele.”
Camila voltou meses depois na mesma delegacia, após ter tido a mão quebrada. Mesmo separada, ainda sofria ameaças de morte por parte do ex-cônjuge. “Eu tive sorte. Poderia não ter conseguindo voltar na segunda vez.”
Na nova tentativa, ela conseguiu fazer o BO. “Aconteceu em um domingo, mas só consegui ir na delegacia na terça-feira. A atendente me disse: ‘E você só vem agora? Não deve estar realmente preocupada’. Aquilo me deixou muito irritada e exigi falar com a delegada diretamente. Só assim consegui registrar o BO.”
A orientação da SSP-SP às mulheres que se sentirem mal atendidas por qualquer oficial dentro das delegacias, sejam elas especializadas ou não, é fazer uma queixa à Corregedoria da Polícia Civil.
Esse não é um problema que se resolve com conversa, porque não é um problema exclusivo da vítima. Tem a vizinha dela que sofre o mesmo problema, outra mulher na família, no trabalho, é um problema estrutural. Há milhares de mulheres na mesma situação.
Marina Ganzarolli, fundadora da DeFEMde (Rede Feminista de Juristas)
“Não existe o policial da DDM, existe o policial”
Todo policial civil está apto a realizar qualquer tipo de atendimento. O posicionamento é da SSP-SP, que informa que todo o policial civil que está na Academia de Polícia estuda disciplinas como direitos humanos, polícia comunitária, atendimento ao público, direito e criminalística, “que o tornam apto para realizar um atendimento direcionado à mulher vítima de violência”.
No entanto, segundo a pesquisadora Beatriz Accioli Lins, do Numas (Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença) da USP (Universidade de São Paulo), não há um treinamento específico direcionado ao profissional que vai atuar em DDMs.
Ela passou dois anos estudando o funcionamento de delegacias especializadas na defesa da mulher e a aplicação da Lei Maria da Penha. “Não existe o policial da DDM, existe o policial. Ele pode estar ali na DDM e receber uma notificação para trabalhar em outro distrito policial. Há uma instabilidade no atendimento que atinge, principalmente, o escrivão e o investigador que está ali na ponta”, afirma.
Na quinta-feira em que Jussara foi atendida na 1ª DDM, um dos funcionários do local, que pediu para não ser identificado, afirmou que estava locado ali, mas que, na verdade, seu posto de origem era no 2º DP. “Falta gente para trabalhar e não abrem concurso”, reclamou.
Essa rotatividade, aliada à ausência de um treinamento mais direcionado, acaba tirando do posto um policial que acabou aprendendo no dia a dia a dinâmica do atendimento à mulher, segundo especialistas.
As DDMs sofrem com a precarização que acontece na polícia de âmbito geral, sobretudo de cargos mais baixos, que são as pessoas que atendem essas mulheres. Falta pessoal, eles estão sobrecarregados, faltam materiais.
Beatriz Accioli Lins, pesquisadora
Dificuldades desencorajam vítimas
O horário de funcionamento é outro problema. As DDMs funcionam apenas de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. “Nos primeiros anos, as DDMs funcionavam 24 horas. Há o argumento de que a violência acontece no fim de semana, à noite, e essa mulher, que é vítima, precisa ir a uma delegacia comum, onde, em tese, deveria receber o mesmo atendimento. Mas, se as DDMs têm dificuldades, imagina a delegacia comum”, afirma Beatriz Lins.
Naquela manhã de quinta-feira, quando Jussara foi atendida, havia apenas uma mulher trabalhando na 1ª DDM: a delegada. A SSP-SP foi questionada sobre a quantidade de homens e mulheres que trabalham nessas especializadas, mas oUOL não obteve resposta da pasta.
“É preciso que haja mais mulheres nessas instituições, não só na delegacia, mas nos órgãos do Judiciário. As mulheres reproduzem essa cultura machista, mas ter uma mulher já faz uma diferença”, afirma a advogada Marina Ganzarolli, uma das fundadoras da DeFEMde (Rede Feminista de Juristas).
Segundo ela, as dificuldades não se restringem apenas à delegacia. “Uma juíza me contou que, durante uma audiência sobre um caso de violência contra uma prostituta, o advogado de defesa virou e falou para a testemunha da vítima: ‘A senhora sabe a profissão da vítima?’.”
Essa cultura da culpabilização não está apenas na delegacia, mas em todas as estruturas do Judiciário
Para a especialista, esse tipo de comportamento desencoraja a mulher a denunciar e judicializar o processo. “Ela pensa que não vai dar em nada se denunciar, que vai ser a palavra dela contra a dele, vai reviver a violência, vai ser exposta, culpabilizada”, afirma Marina.
De acordo com dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, no ano passado foram registradas 76.651 denúncias, o que representa um caso de violência contra mulher a cada sete minutos no Brasil, em 2015. As ocorrências específicas de violência sexual somaram 3.478 relatos. No país, foram 9,5 estupros por dia. “Mas as dificuldades enfrentadas por essas mulheres com certeza geram subnotificação nos casos de violência”, acredita.
“O policial não é um alienígena”
Beatriz Accioli Lins afirma que foram poucos os casos que acompanhou em que houve problemas para realização do BO nas delegacias pesquisadas. Mas afirma que essa cultura de achar que a violência contra a mulher é um assunto a ser revolvido “dentro de casa” tem mudado dentro da polícia, principalmente por causa da Lei Maria da Penha.
“Ela (a lei) mudou muito o trabalho dos policiais, porque agora existe uma legislação clara que diz exatamente o que é crime, que não é uma questão de briga de marido e mulher. Vejo que tem mudado, mas que é um longo caminho a ser percorrido, como na sociedade, afinal o policial não é um alienígena”, afirma.
Marina Ganzarolli acrescenta que a delegacia “não está apartada da sociedade”, mas dentro dela, reproduzindo seus valores. “Homens e mulheres são ensinados desde pequenos que possuem papéis diferentes. Essa desigualdade se expressa na esfera salarial, ausência de mulheres em cargos de liderança, na política. A violência contra a mulher é a expressão máxima dessa desigualdade.”
Publicação Original: A saga por um BO: Os obstáculos encontrados por mulheres nas delegacias