Saiu no Portal GELEDÉS.
Veja a Publicação original.
“Eu não me lembrava mais de que era escritora. Você acredita num negócio desses?”, conta, por telefone, Geni Guimarães, que, no final dos anos 1980, conquistou os leitores e a crítica com os contos autobiográficos de “Leite do peito” e “A cor da ternura”, livro premiado com o Jabuti. Na década seguinte, publicou a antologia poética “Balé das emoções” e três livros infanto-juvenis, mas uma grave depressão que a afastou da literatura. Geni só se lembrou de que era escritora quando, revirando as próprias estantes, encontrou uma cópia de “O terceiro filho”, seu livro de estreia, publicado em 1979.
– Na capa estava escrito “Geni Guimarães”. Lembrei que tinha escrito aquele livro e tentei recomeçar. Recomecei e, graças a Deus, estou de pé – afirma Geni, que completa 73 anos na próxima terça-feira (8) e, no ano passsado, publicou o infantojuvenil “O pênalti” (Malê), depois de 20 anos em silêncio.
Geni é a autora homenageada da 15ª edição da Balada Literária, que começa nesta quinta (3) e se estende até a segunda (7). Este ano, a festa será totalmente on-line e transmitida pelo site da Balada Literária. Na abertura, será exibido o documentário “Geni Guimarães”, dirigido por Day Rodrigues, que passou dois dias na casa da escritora, em Barra Bonita, no interior de São Paulo. Depois, Day e a bibliotecária Bel Santos conversam com a homenageada e com a escritora Conceição Evaristo, admiradora confessa de Geni. Também participam desta edição da Balada Literária a atriz Zezé Motta, o poeta Ricardo Aleixo, os escritores indígenas Eliane Potiguara e Daniel Munduruku, a filósofa Marcia Tiburi e outros.
– Ser homenageada e ver meu trabalho ser valorizado é muito bom, porque, no Brasil, é raro negro receber homenagem. O racismo quer nos derrubar, mas “eu já estou armada” – diz Geni, citando o verso de um poema seu ainda inédito.
Em novembro, a Malê publica “Poemas do regresso”, reunião dos versos que Geni compôs desde que se lembrou de que era escritora. Para o ano que vem, a editora promete novas edições de “O terceiro filho” e “Balé das emoções”.
– É emocionante ver o retorno da Geni à cena literária em momento em que há maior interesse pela literatura de escritoras negras – diz Vagner Amaro, editor da Malê. – Geni produziu livros potentes, como “Leite do peito”, quando nossa literatura ainda carecia de representações da subjetividade da mulher negra, como escritora e personagem.
Nascida em São Manoel, no interior paulista, Geni já fazia versos antes mesmo de aprender a escrever. Nas noites frias, sua mãe, que era analfabeta, acendia uma fogueira no sítio e começava a cantar: “Olha o bambo do bambu do bambuê / Olha o bambo do bambu do bambuá / Olha o bambo do bambu do bambuê/ Bambuê, bambuê, bambuê bambuá”. Cada um dos filhos continuava a cantiga com versos inventados na hora. Ainda hoje, a brincadeira se repete quando a família toda se junta em Barra Bonita.
Geni decidiu que ia publicar seus versos quando cursava o magistério e tentou mostrar um de seus poemas a uma professora, que a ignorou.
– Eu coloquei um poema em uma mesa de uma professora esperando que ela lesse – recorda Geni. – Ela não leu e quando se levantou, o papel caiu no chão. Ela não viu e saiu arrastando meu poema com o salto. Fiquei com tanta raiva que prometi para mim mesma que ia escrever um livro.
Cumpriu a promessa em 1979, quando lançou “O terceiro filho”. Para pagar custos da publicação, ela e o marido venderam o fusca da família. Geni continuou bancando os próprios livros até o sucesso de “A cor da ternura”, no qual recorda episódios de sua infância, como as aulas em que a professora branca contava uma história da escravidão diferente da que ela ouvia dos parentes mais velhos. E a vez em que ela esfregou a pele da perna com um tijolo para tentar ficar branca.
A vida como matéria-prima literária
Geni terminou há pouco de revisar seus “Poemas do regresso” e já está trabalhando em um novo livro: “Contos do lugar comum”. O principal conto do livro se chama “Família Zelão” e acompanha as dores e as alegras de um pai, uma mãe e seus dois filhos, todos negros. “Contos do lugar comum” tem descrições de sexo “bem fortes” e Geni brinca que talvez enviará os originais ao editor antes que seus os leiam. Pouco afeita à tecnologia, ela costuma escrever a mão e, depois, digita tudo com a ajuda de um neto.
Geni não permite que os elogios lhe subam à cabeça e, citando versos próprios, se diz “inacabada”.
– Não fico fissurada nessas coisas, vendo tudo o que acontece em volta da minha literatura. Acho que o fiz vai dar frutos e pronto – diz Geni, que confessa ainda ter grandes planos. – Estou querendo ser o novo Zumbi, o novo Nelson Mandela ou Martin Luther King. Eu tenho um sonho também.