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Leonardo Pujol De Porto Alegre para a BBC Brasil
Ajoelha e chora / quanto mais eu passo o laço / muito mais ela me adora”, diz a música regionalista do Rio Grande do Sul, famosa na interpretação do grupo Tchê Garotos.
Embora popular no cancioneiro gaúcho, esse tipo de letra com referências tidas por muitos como pejorativas à mulher entrou na berlinda neste mês após uma crítica de uma artista desse mesmo meio musical.
“Toda vez que cantamos letras assim alimentamos e incentivamos situações de preconceito e maus-tratos contra as mulheres”, diz cantora e jornalista Shana Müller, de 37 anos.
“Está na hora de os artistas darem uma revisada no repertório. O mundo de hoje não aceita mais os velhos e maus costumes”, completa.
Müller é uma das representantes de uma geração de cantores de música regionalista gaúcha que ganhou destaque nos anos 2000. Com carreira iniciada aos oito anos, ela apresenta desde 2012 o Galpão Crioulo, um dos mais antigos programas de TV sobre a temática tradicionalista, transmitido pela RBS TV, afiliada da TV Globo.
As críticas, raras no Estado, lançaram a artista no centro de uma polêmica, que opõe julgamentos distintos sobre moral na cultura tradicional gaúcha.
Em texto publicado na internet, Müller condenou o machismo que, diz, ainda é reproduzido por muitos compositores. Como exemplo, citou versos famosos, como os da canção É Disso que o Velho Gosta: “Churrasco, bom chimarrão / Fandango, trago e mulher / É disso que o velho gosta / É isso que o velho quer”.
A opinião mexeu com os brios dos conterrâneos. Na página da cantora no Facebook, seguida por 220 mil pessoas, o texto teve quase 6 mil reações.
Os comentários vão de elogios – “É isso aí, prenda linda”; “Você me representa”; “Machismo definitivamente não é tradição” – a discordâncias, algumas desrespeitosas – “Por que não procura umas cumbucas para lavar?”; “Se não gostou, vai embora para o Rio de Janeiro”.
A reação do público foi surpreendente, segundo ela.
“Mas o que mais me impressionou foi a quantidade de mulheres que se posicionaram contra o que falei, minimizando o machismo das músicas”, relata, enquanto toma chimarrão no apartamento em que vive com o marido e o filho de sete meses em Porto Alegre.
“Isso reforça quantas mulheres gaúchas ainda carregam um pensamento machista.”
Assunto nacional
A crítica de Shana Müller foi ao ar na tarde de 7 de abril, uma sexta-feira.
Naquela mesma semana, o país comentara exaustivamente o caso Marcos, competidor – gaúcho – do Big Brother Brasil que acabou expulso do reality show sob acusações de agressão a outra participante, e o do ator José Mayer, acusado de ter assediado sexualmente uma figurinista.
A cantora diz que o objetivo do texto não era pegar carona nesses casos.
“Na quinta-feira, estava na gravação de meu programa e escutei uma frase que colocava a mulher na posição de objeto, como se fosse um adereço do homem”, explica. “Aquilo doeu em meu ouvido, me incomodou e decidi protestar escrevendo.”
A legitimidade moral de músicas consideradas misóginas e machistas, ou mesmo racistas e homofóbicas, é um tema recorrente entre movimentos feministas no Brasil.
Em 2016, o rapper paulista Criolo mudou o verso de uma música antiga, de seu primeiro disco, para extinguir a palavra “traveco”. No Carnaval passado, marchinhas tradicionais como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão foram deliberadamente banidas de alguns blocos de rua país afora.
Em março, a advogada Camila Queiroz, de 25 anos, transformou o que era uma publicação restrita a seus contatos no Facebook em conteúdo que hoje alcança mais de 230 mil seguidoras. É a página “Arrumando Letras”, em que trechos de músicas com indícios de apologia à agressão física ou ao abuso psicológico são substituídos por versos respeitosos às mulheres.
“Refletindo sobre a letra de músicas populares que eu mesmo cantarolava, percebi que a mulher é vista como alguém de sorte quando encontra um amor, ou que é agredida para o bem dela, da relação ou porque mereceu”, disse Camila. “Decidi, então, modificar essas letras.”
A correção se aplica a toda sorte de gêneros musicais – sertanejo, funk, samba, rock, reggae -, nacionais ou internacionais.
Entre as “arrumadas” está Ajoelha e Chora, citada no começo desta reportagem, e Run for Your Life, dos Beatles.
Faixa Amarela, do sambista Zeca Pagodinho, também foi modificada. Os versos “Mas se ela vacilar / vou dar um castigo nela / vou lhe dar uma banda de frente / quebrar cinco dentes e quatro costelas” ganharam nova roupagem com “Vacilou, né, fazer o quê / Dependendo do tamanho do vacilo / a gente termina numa boa”.
Do engajamento feminino em todas as regiões do Brasil – Camila mora em Curitiba -, nasceu o grupo privado “Arrumando letras entre amigas”, onde quase 1,5 mil mulheres discutem a misoginia das músicas e buscam lutar contra o machismo.
Essa sororidade – união entre mulheres que buscam um objetivo comum -, ela garante, não tem preço. “É o fruto mais bonito que nasceu da página.”
Cultura em movimento
Um mês antes de resolver questionar o machismo de setores do tradicionalismo, Shana Müller escreveu um artigo no jornal Zero Hora afirmando que “em tempos de empoderamento feminino, é indispensável entender o gênero nesse fenômeno cultural” dentro do ambiente regionalista.
Após ela mexer nesse vespeiro, outras vozes sentiram-se representadas para fazer deslanchar o debate.
O historiador Tau Golin, da Universidade de Passo Fundo, já analisou diversas letras com temática ligada ao gauchismo e constatou que as canções mais populares geralmente se baseiam no que ele chama de modelo animalesco, machista e violento do gaúcho.
“É assustador a quantidade de músicas em que simplesmente não há relação humana, mas grosseria da pior qualidade”, avalia Golin.
O exemplo mais emblemático é Morocha, canção lançada em 1984 em um festival nativista pelo grupo David Menezes Júnior e os Incompreendidos.
Vencedora de cinco troféus no concurso, a música tem como protagonista um homem que ameaça a mulher caso ela não se submeta ao seu jugo: “Aprendi a domar amanunciando égua / E para as mulher (sic) vale as mesmas regras / Animal, te para, sou lá do rincão / Mulher pra mim é como redomão / Maneador nas patas e pelego na cara”, diz a letra.
A violinista e etnomusicóloga Clarissa Ferreira, pesquisadora do papel da mulher no tradicionalismo, afirma que, a exemplo de Morocha, a identidade do gaúcho sempre foi construída na representação do homem do campo viril e aguerrido, e que isso historicamente isolou o universo feminino em um plano secundário.
A cultura, defende ela, precisa ser dinâmica. “E a mudança pode começar pelas canções, que devem considerar os anseios do século 21, em vez de perpetuar o que era cultuado no século 18”, acrescenta.
Em diversas oportunidades, artistas e representantes de movimentos tradicionalistas esboçaram descontentamento com as críticas. Não raro, os argumentos utilizados tentam rechaçar a pecha machista que atravessa a história.
Uma das premissas lembra, por exemplo, que durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) cabia às mulheres a função de comandar as propriedades enquanto maridos e filhos lutavam pelos campos e coxilhas em meio à guerra.
Nairo Callegaro, presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), afirmou, por exemplo, que a mulher “sempre foi respeitada e idolatrada” nesse meio.
“O MTG sempre preservou a imagem da mulher, hoje temos sete coordenadoras, temos inúmeras patroas (presidentes). Mas não apoiamos esse tipo de composição (de tom machista). Muitas dessas músicas parecem ser feitas para cair na graça, pois me parece que o gosto popular às vezes perde o controle, basta ouvir ritmos que são bem apelativos. Mas não apoiamos isso, não”, disse.
Shana Müller, que não se considera uma feminista, promete ficar mais atenta não apenas às canções que apresenta, mas também àquelas que canta.
E não descarta seguir, em seu próprio programa, o exemplo da apresentadora Titi Müller, que durante o festival Lollapalooza, realizado no fim de março em São Paulo, criticou letras machistas de um artista estrangeiro ao vivo.
“Desculpem os amigos e colegas de profissão, músicos, compositores, cantores, mas a verdade só serve se for dita e a mudança só acontece quando o alerta é feito”, diz a cantora.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL: A cantora que resolveu desafiar o machismo da música regionalista gaúcha