Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: A busca pelo sagrado feminino
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Danças e cantos místicos, terapias em grupo, rituais para “trocar energia”. A fim de se empoderar, mulheres elegeram a busca pelo sagrado feminino o ritual do momento. Convocamos nossa editora mais cética, Roberta Malta, a participar de uma vivência para despertar “a bruxa” que existe dentro de si. Aqui, ela conta sua experiência
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“Queremos que você experimente o sagrado feminino”, diz minha chefe. “Mas eu sou a mais cética da redação”, respondo. “Por isso mesmo!” Pagã até hoje, não batizei meu filho e, mesmo em viagens, detesto visitar igrejas – embora não dispense um patuá. Não posso dizer que fiquei animada, mas achei certa graça no desafio. Vai que descubro todo um campo energético que mude completamente minha percepção do universo? Antes, espera: onde tem isso? Entro nos principais sites de busca e elimino os primeiros ranqueados, de acordo com o meu prazo. Já no terceiro clique, encontro o que preciso: duas vivências de seis horas no total, em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Me parece simbólico. Faço a inscrição online.
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Extremamente incensado de uns anos para cá, o sagrado feminino é uma filosofia de vida que leva mulheres a viver experiências sensoriais em grupo. A proposta é despertar a força, a consciência dos ciclos, o aspecto feiticeira que, elas garantem, é inerente a todas nós. Em última instância, uma forma de se empoderar via terapias holísticas. Para ter uma ideia, a estilista Paula Raia já fez uma coleção inspirada no tema e, há cinco anos, um grande evento reúne adaptas de toda a América Latina.
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Chego a um pequeno sobrado branco na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo, e toco a campainha. Quem abre a porta é Neli, 57 anos, cabelo sem retoque de tinta e roupa de estilo indiano. Atravesso de sapatos uma sala onde todas estão descalças e avisto duas mulheres de colã e saia comprida, sentadas em colchonetes de ginástica. Cumprimento-as com um “oi” sem graça, enquanto penso que deveria ter levado minha esteira de ioga – caso tivesse uma, claro. Meu vestido solto, bem acima do joelho, destoa do figurino vigente. Atrapalhada, entrego à terapeuta a sacola com o material requerido: velas, maçãs para o lanche em grupo e um vasinho de melissa. “Meu incenso acabou e não tive tempo de comprar outro”, digo, com vergonha de contar que tenho alergia a perfumes muito concentrados. “Não se preocupe”, respondeu sorrindo. “Tenho um monte.” Perdeu, playboy.
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Ela serve chá de artemísia, não sem antes avisar que está amargo. “Tomem com cuidado. Pode desencadear sentimentos desagradáveis.” Por puro pavor de mortes lentas, viro o líquido em um único gole. A única coisa que sinto é mesmo a falta de um saquinho de adoçante na receita. É hora de deixar as palavras saírem. “Sem filtro”, orienta Neli. “Colo”, diz uma. “Obrigada”, fala outra. “Mãe”, devolve a primeira. Me mantenho calada.
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A próxima etapa é deitada, de olhos fechados. Começa a me faltar o ar no exato minuto em que a terapeuta manda respirar fundo. Me contento em estar viva e sigo tentando entrar na brincadeira. Ela manda mentalizar uma luz lilás entrando no corpo. Aromas e sons tomam conta da sala. Minha rinite está cada vez mais forte, quando a terapeuta me oferece um cobertor de lã. “É só trabalho”, repito em mantra.
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Já de olhos abertos, em roda, cada uma tem que falar um pouco de si e contar o que viveu. Neli desconfia que minha coceira no nariz possa ser de algum processo emocional vivido ali, mas nego. “É o tempo”, digo reticente. Ela conta que notou minha resistência em me entregar, e eu falo o que provavelmente é a maior mentira da minha vida: “Sou assim mesmo. Prefiro que as coisas aconteçam aos poucos”.
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A hora do café é simpática. Desmentindo a frase que havia dito pouco antes, quero saber absolutamente tudo da vida daquelas mulheres. Uma não consegue se livrar do marido com quem vive há 20 e tantos anos, por quem não sente mais tesão. Mas ele a sustenta e ela promete, aos 47, descobrir uma profissão para sair do casamento por cima. A outra está apaixonada pelo melhor amigo do pai de seu filho, bem mais atraente do que o ex – um homem muito dedicado para merecer seu amor.
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Faço milhões de perguntas a Neli, em uma falha tentativa de entender melhor o tal sagrado feminino. “Não dá para explicar, é preciso sentilo”, diz a terapeuta. Quase perco as esperanças, mas o segundo momento é de soltar o corpo. As músicas, ora de temas religiosos, ora com sons da natureza, aumentam aos poucos, até o som ficar bem alto. Estamos de olhos fechados, e Neli borrifa perfumes no ar e bate tambores. “Tentem descobrir quem são vocês, e dancem o que estão sentindo”, diz ela. Acostumada a aulas de expressão corporal e teatro, decido me entregar. Agito os braços, balanço o quadril, rolo no chão. A essa altura, já havia desenvolvido certo carinho por Neli – e precisava fazer esta reportagem render.
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Em roda mais uma vez, com um caldeirão cheio de velas coloridas acesas, as plantinhas que levamos e alguns cristais no centro, encerra-se a vivência. A terapeuta diz que precisamos nos reconectar com nós mesmas, reafirmar que somos mulheres empoderadas, bruxas. Novamente me passa a palavra e a decepciono mais uma vez. “Sou mais de sentir do que de falar.” Tento desviar os pensamentos corriqueiros e me concentro o máximo que consigo na cerimônia. No fim, acho quase bonito estar ali. Vou para casa cansada e durmo logo. Acordo com febre e telefono para Neli. “Normal”, diz ela. “Sinal de que você entrou no processo.”
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Seu método previa essas “meditações” envolvidas por cantos e danças. Há também quem proponha rodas e cirandas para resgatar a energia feminina, seja lá o que isso signifique. Ou grandes discussões e debates sobre bruxaria, menstruação e outras áreas de conhecimento – ou misticismo – tradicionalmente atribuídas às mulheres.
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Prevejo uma gripe horrorosa, mas, no dia seguinte, já estou inteira. Talvez tenha mesmo vivenciado o sagrado feminino. Provavelmente não vou voltar, minha cota de rituais holísticos se esgotou na adolescência. Mas, embora diga-se que ali não existe nenhum princípio religioso, penso que aquilo deve ser bem útil para quem acredita. Como comungar na missa católica ou tomar um passe no centro espírita, o negócio é ter fé. Coisa que eu, no caso, não tenho.
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