Uma cena de apenas dois minutos, mas que nos faz refletir sobre um profundo abismo ainda existente nas relações entre homens e mulheres. Por mais que estejamos avançando em inúmeras questões relacionadas à igualdade de gênero, o sexo sem consentimento ainda é pouco discutido e muito vivenciado pelas mulheres em suas relações íntimas.
Para amadurecer o debate em torno desse tema, precisamos ampliar nossa visão acerca do que é estupro. O artigo 213 do código penal traz a seguinte definição: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Hoje temos clareza de que a violência da qual a lei trata pode ser também psicológica. Em nosso imaginário social, porém, o estupro é sempre associado a uma intensa violência física, a ponto de envolver sequelas corporais na vítima, que necessariamente resiste.
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O curta-metragem da francesa Chloé Fontaine é provocativo porque traz um novo olhar para um conflito vivido por muitos casais quando um quer transar e o outro não. Nem sempre há a violência que vemos na polêmica cena de Irreversível, nem sempre a mulher resiste, nem sempre um dos dois se dá conta. Mas, sim, é uma situação de estupro.
O sexo sem consentimento tem raízes em valores profundamente arraigados em nossa sociedade a respeito do amor e da sexualidade feminina. Quando a mulher recusa o sexo e o namorado pergunta “O que está acontecendo? Você não me ama mais?”, existe uma mensagem implícita de extrema violência: a de que a demonstração de amor e afeto da mulher no relacionamento está diretamente ligada ao desejo sexual dela. E que, portanto, investir emocionalmente na relação significa estar disponível sexualmente.
Essa é uma crença ainda tão forte que muitas mulheres demoram muito tempo para conseguir dizer não a seus parceiros. Ou mesmo para identificar os limites do próprio desejo. Na descoberta desses limites, tenho algumas lembranças dolorosas do início da vida sexual. Ainda que minhas experiências tenham sido majoritariamente saudáveis, já me vi chorando sozinha no chuveiro, sem entender por quê, depois de viver momentos de intimidade aparentemente corriqueiros, com homens que faziam com que eu me sentisse muito amada e, ainda assim, me oprimiam.
A verdade é que, assim como muitas outras garotas, eu ingressei na vida sexual sabendo muito pouco sobre consentimento. E só encontrei conforto anos depois, ao dividir essas experiências com mulheres que também aprenderam a duras penas a respeitar e a fazer respeitar os limites do próprio corpo. E que continuam, dia após dia, exercitando dizer não. Porque ninguém nos ensinou.
Na dificuldade de dialogar sobre os tabus, nos dizem que o sexo é bom quando encontramos alguém que amamos e que nos ama. E ponto. Mas a realidade pode ser bem mais complexa do que isso. Especialmente quando estamos todos, homens que nos amam e também nós mesmas, num processo de desconstrução de uma série de valores machistas.
Seguimos errando, como sociedade, ao não educar meninos e meninas sobre consenso sexual. Ao deixar que aprendam sobre sexo com a indústria pornográfica. Ao deixar que descubram o amor com a Disney, em que o príncipe não parece representar ameaça alguma à princesa, mesmo quando a beija enquanto ela dorme. Precisamos ensiná-los que, na verdade, o amor é sobre o diálogo constante a respeito dos limites e desejos de cada um.
Falar sobre estupro nos relacionamentos afetivos passa por discutir sobre como ensinar os garotos que estar numa relação (monogâmica, especialmente) não significa ter alguém sexualmente disponível o tempo todo. Passa por nos perguntarmos sobre como preparar as meninas para conhecer o próprio corpo e se empoderar nos encontros afetivos e sexuais. Passa por, acima de tudo, refletir sobre um estupro muito maior que ainda vivemos antes mesmo de ingressar na vida sexual: o da crença de que nossa sexualidade está a serviço do outro e não de nós mesmas.