HOME

Home

Mulheres relatam aumento da misoginia nas redes: ‘Perdemos a nossa liberdade’

SAIU NO SITE O GLOBO

 

“Com essas dicas você acaba com a autoestima de qualquer mulher”; “destrua o ego dela, e ela vai se arrastar aos seus pés”; “você ficaria com uma mulher gorda?”. Não são apenas likes e visualizações que estão por trás da proliferação de conteúdos machistas nas redes e nas plataformas de vídeo, tema em alta desde o lançamento da minissérie “Adolescência”, pela Netflix. Produções associadas a incels (“celibatários involuntários” que culpam as mulheres por não conseguirem ter relações) e redpills (aqueles que acreditam ter enxergado a “verdade” sobre elas, compreendidas como interesseiras e opressoras) têm se mostrado altamente lucrativas. Um levantamento do Laboratório de Estudos de Internet (NetLab) da UFRJ, feito em uma parceria com o Ministério das Mulheres, avaliou, entre 2018 a 2024, 137 canais no YouTube que pregam diferentes formas de ódio à população feminina. Juntos, eles somam 3,9 bilhões de visualizações e sempre têm ao menos alguma forma de monetização associada.

“É um negócio. Uma fonte de renda mesmo”, sintetiza a coordenadora da pesquisa, Luciane Belin. “Estamos falando de grupos e influenciadores que têm cenários, periodicidade fixa, podcasts e entrevistas com convidados. Para piorar, as plataformas abriram ainda mais espaço para essas pessoas. Tanto que a gente observou um aumento significativo desses canais desde 2022 (os nomes não foram divulgados para não ampliar o engajamento dos mesmos). E agora você consegue até colocar uma lojinha dentro do YouTube.”

Do outro lado dessa história, estão as mulheres, que passam a enfrentar cada vez mais o ódio ao usarem as próprias redes. Há cerca de dois anos, a cantora e compositora Julie Yukari, de 30 anos, percebeu que havia algo estranho quando começou a sofrer uma onda de ataques depois de postar uma foto em que aparecia com roupa de ginástica no Instagram. Embora tivesse poucos seguidores, a caixa de comentários foi invadida por dizeres machistas e críticas ao corpo da jovem. “Então, entendi que um cara havia repostado a minha foto, fazendo justamente comentários dessa natureza. E ele tinha muitos seguidores. O post estava cheio de falas me rebaixando pelo fato de vestir um top.”

Julie nota que, cada vez mais, os homens se sentem autorizados a agir dessa maneira assim como a enviar textos de cunho sexual para as garotas, o que fez com que ela fechasse a caixa de mensagens diretas do Instagram. “O que me entristece é que, quando você lida com esses perfis, é como se os autores não existissem, visto que não têm fotos ou nome. Já as mulheres estão ali falando do seu dia a dia, mostrando o rosto. Não temos como denunciá-los e acabamos abrindo mão da nossa liberdade nas redes.”

Enquanto isso, na banca virtual da misoginia, há e-books, cursos de até R$ 2 mil e consultorias individuais estilo “coach” que chegam a custar R$ 1 mil. Há até quem cobre R$ 150 para responder a perguntas dos seguidores. A máquina é abastecida, ainda, por assinaturas de conteúdos exclusivos e doações, além, é claro, da monetização vinda por meios das publicidades. As cifras nem sempre estão às claras, mas o estudo do laboratório do NetLab traz uma amostra. Identificou, por exemplo, que 257 transmissões ao vivo realizadas por oito canais arrecadaram juntas R$ 68 mil.

Luciane Belin ilustra que um dos influenciadores mais famosos tem 900 mil inscritos em seu canal no YouTube. E observa que, entre os conteúdos disseminados por perfis do gênero, estão desde dicas sobre como agredir sem ser pego pela Lei Maria da Penha a tutoriais dedicados a apps de espionagem para serem instalados nos celulares de namoradas e esposas. “Há, ainda, um grupo mais jovem que ensina a conquistar mulheres e tem produzido vídeos em que aparecem nas baladas, flertando e beijando as meninas, expondo as jovens”, complementa.

Um panorama que evidencia, segundo Daniela Arrais, fundadora da plataforma de pesquisas digitais Contente.vc, o quanto o combate a esse tipo de conteúdo é desafiador. “Esses perfis engajam ‘pelo estômago’. E, quando os algoritmos entendem isso, dão ainda mais visibilidade”, diz. Ao simular uma conta de um menino de 16 anos no TikTok, ela precisou de apenas 10 minutos de navegação para que sugestões de conteúdos com ódio de gênero e piadas sobre feminicídio começassem a pipocar na tela do celular.

Soma-se a isso um forte poder de articulação entre os adeptos. Dona do perfil @pinkpillada no Instagram, Brenda Reyes, de 25 anos, produz conteúdos cujo mote é justamente combater a misoginia. Ela passou a se dedicar à temática após virar, há cerca de quatro anos, alvo de um famoso influenciador que começou a replicar seus conteúdos munido de falas machistas. Ele borrava o rosto da jovem, mas os seguidores a reconheceram e começaram a atacá-la em massa, com denúncias. Como resultado, ela quase perdeu a conta no TikTok, uma de suas principais fontes de renda àquela altura.

A organização desses homens, compara Brenda, é como um exército digital. “São muito articulados, seguem uns aos outros. Algo que nós, mulheres, muitas vezes não conseguimos fazer”, observa. Mas ela reconhece que um dos empecilhos para isso está justamente na maneira como age a “máquina do ódio”. “Se uma menina vem me defender nos comentários de uma postagem, eles automaticamente começam a atacá-la. E não é todo mundo que tem estrutura emocional para lidar com isso. Então, muitas acabam preferindo manter-se fora da discussão.”

A reportagem consultou as principais redes sociais e plataformas sobre políticas relacionadas à divulgação de conteúdos misóginos por meio das mesmas. A Meta, responsável tanto pelo Instagram quanto pelo Facebook, informou que não se manifestaria sobre o assunto. Já o TikTok não se posicionou até o fechamento desta edição. O YouTube mencionou a existência de uma combinação entre sistemas automáticos, revisores humanos e denúncias de usuários como ferramenta para identificar material suspeito. “Entre janeiro e setembro de 2024, removemos mais de 2,4 milhões de vídeos no Brasil por desrespeitarem nossas regras”, informa a nota.

Diante da complexidade do quadro, Luciane Belin, do NetLab, reconhece que, mais do que nunca, pautar o debate é algo urgente. “Os donos desses perfis e canais estão usando o argumento da liberdade de expressão para disseminar o ódio, e ninguém os responsabiliza, incluindo as plataformas. Por isso, o fato de estarmos falando cada vez mais sobre isso é tão interessante. Debater é ponto principal”, afirma.

Sil Bahia, da ONG Olabi, acrescenta que pensar que não há solução só vai servir para ceifar o diálogo. “Portanto, precisamos entender que essa é uma pauta coletiva. Governos, universidades e sociedade civil têm de se unir em torno do tema. Tampouco podemos achar que as crianças e os adolescentes que estão recebendo esses conteúdos são responsabilidade apenas de seus pais”, diz. “E, claro, precisamos levar adiante as discussões sobre a regulamentação dessas plataformas. As redes não podem ser uma terra sem leis.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

HOME