SAIU NO SITE VERONOTÍCIAS
Caro amigo leitor,
Lendo aqui o projeto do novo código civil, que tem a função de regular as relações privadas entre os indivíduos e em breve entrara em vigor, me chamou atenção alguns pontos importantes que envolvem os direitos de nós mulheres. Para isso, teremos o nosso bate papo quinzenal para discutir os vários pontos importantes relacionados a questões femininas.
A história do nosso primeiros tema será o direito do nascituro e a personalidade jurídica.
Meu grande inspirador tem sido o professor Michel Sandel, com suas aulas magnificas, fundamentadas nos princípios da dignidade e nessa nova visão cosmopolita e progressista do direito onde a vida tem valor intrínseco e cada um integra uma rede jurídica e de direitos. Seguindo seu exemplo, vamos imaginar a seguinte situação que tenho a certeza de que várias mulheres já viveram circunstâncias parecidas:
Uma gestante em início de gravidez que sofre um acidente grave e é levada a um hospital. O médico precisa realizar um exame com radiação, que pode afetar o embrião, mas é vital para salvar a vida da mulher. A família, emocionada, insiste que o médico “preserve a criança a qualquer custo”. Neste cenário, surgem tensões éticas e jurídicas: o novo Código Civil reconhece a personalidade jurídica do nascituro desde a concepção, atribuindo-lhe direitos plenos. Contudo, a mulher também é titular de direitos, entre eles o mais fundamental — o de viver com dignidade, autonomia e respeito ao seu corpo.
Para entender o caso, vamos analisar sob a ótica da personalidade jurídica e da dignidade humana:
Atualmente, no Código Civil de 2002, a Personalidade Jurídica (artigo 2º CC) começa com o nascimento com vida, e o nascituro — aquele que foi concebido mas ainda não nasceu — tem apenas expectativa de direitos, ou seja, não é considerado plenamente uma pessoa para o Direito, mas pode ter proteção jurídica limitada, a exemplo dos direitos sucessórios. Entretanto, o novo Código Civil, que entrara em vigor em breve, traz um novo conceito: antecipa o início da personalidade jurídica para a concepção, ou seja, o nascituro passa a ser considerado pessoa desde a concepção, com plena personalidade jurídica. As implicações jurídicas dessa nova ordem vão desde a ampliação dos direitos do nascituro — herança, proteção civil e penal mais robusta — a impactar debates sobre o aborto, autonomia da gestante em questões clínicas, criminalização de condutas médicas; reprodução assistida, direitos reprodutivos dentre outros.
O professor Carlos Roberto Gonçalves conceitua “direitos da personalidade como direitos fundamentais civis”, e afirma que “os direitos da personalidade são direitos subjetivos públicos, inatos, absolutos, extrapatrimoniais, vitalícios, intransmissíveis e irrenunciáveis, que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa humana, considerada individualmente.” (GONÇALVES, 2023, p. 126). Ele também sustenta que os direitos da personalidade são protegidos mesmo antes do nascimento e após a morte, como no caso do respeito ao corpo, à imagem e à memória do falecido.
Com base no conceito da Dignidade da Pessoa Humana, o professor Ingo Wolfgang Sarlet afirma que é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade” (SARLET, 2001, p. 60), sendo princípio fundamental da Constituição de 1988 que irradia para todo o sistema jurídico guiando a interpretação de normas sobre a personalidade, capacidade, autonomia etc. Outrossim, de acordo com professor e Ministro Luiz Edson Fachin, “a dignidade humana é a pedra angular de todo o ordenamento jurídico, sendo o valor que sustenta os direitos fundamentais” (FACHIN, 2022, p. 34).
Com o novo projeto, a dignidade da pessoa humana surge de forma mais explícita e fortalecida, sendo reafirmada como fundamento central do Direito Civil. A tentativa de integrar esse princípio com os direitos da personalidade, com maior atenção a vulnerabilidades individuais (gênero, idade, deficiência etc.), reforçam a proteção contra tratamentos desumanos ou degradantes, abre caminho para decisões judiciais mais baseadas em princípios do que em formalismos e amplia o debate sobre direitos existenciais (identidade de gênero, nome, imagem, corpo, afetividade etc.). A ênfase na dignidade humana no anteprojeto segue a linha de pensamento da doutrina contemporânea que critica a rigidez normativa e defende um Direito Civil mais constitucionalizado, aberto à realidade social.
Ao interpretar essas mudanças pela lente do biocentrismo, que defende que o universo e a realidade como a conhecemos são dependentes da consciência (LANZA, 2009), temos uma abordagem mais ampla da vida como valor central — e não apenas a vida humana como dominante, mas como parte de uma rede de interdependência com os outros seres e com o meio ambiente. Somos levados a reconhecer a vida em todas as suas formas como valor fundamental, deslocando o foco do Direito de uma lógica puramente antropocêntrica, onde homem é único ser vivo que merece ser protegido, para uma ética da interconexão onde todos os seres vivos devem ser respeitados e protegidos).
Nesse contexto, “a pessoa humana é o centro de imputação de normas jurídicas, razão pela qual o ordenamento deve tutelar a vida desde a concepção, adotando um biocentrismo moderado, que reconhece a dignidade da vida humana como bem maior a ser protegido.” (DINIZ, 2023. v. 1, p. 106). Reconhecer o nascituro como sujeito de direitos desde a concepção pode se alinhar ao biocentrismo, desde que não seja usado para restringir a autonomia da mulher, pois isso causaria um conflito ético com a dignidade da gestante, também considerada um ser de valor intrínseco.
A construção de um Direito verdadeiramente biocêntrico passa, portanto, por reconhecer que proteger a vida é também proteger as escolhas, os corpos e as trajetórias das mulheres. Isso leva o Direito a valorizar a autonomia, o cuidado, o respeito às diferenças e o equilíbrio nas relações, inclusive entre humanos e natureza. Sem isso, a dignidade humana se torna apenas um discurso abstrato, desvinculado da realidade concreta das pessoas.
Aplicado à realidade da mulher, pode evidenciar o reconhecimento do cuidado como valor civilizatório. Significa reconhecer que sua dignidade não pode ser reduzida a papéis sociais ou funções biológicas. Em outras palavras, não se trata de reforçar a imagem da mulher como “mãe” ou “cuidadora” por essência, mas de compreender que o cuidado, a empatia e a preservação da vida — valores com os quais as mulheres historicamente se envolveram — devem ser princípios universais do Direito, e não obrigações atribuídas a um único gênero.
No entanto, essa proposta merece uma leitura crítica. A adoção do biocentrismo como fundamento do Direito Civil pode gerar tensões conceituais com os direitos humanos clássicos, que foram historicamente estruturados em torno da dignidade da pessoa humana — e não da vida em sentido amplo e indistinto. É importante lembrar que as normas que fundamentaram as regras internacionais de direitos humanos foram criadas no momento pós 2a guerra e holocausto. Daí a necessidade de proteger fundamentalmente o homem em detrimento de qualquer espécie viva.
Ao descentralizar a figura humana, corre-se o risco de esvaziar o próprio conceito jurídico de dignidade, criando um campo aberto para decisões arbitrárias ou desprovidas de critérios objetivos. Além disso, sua implementação prática no sistema jurídico é desafiadora, pois pode ser inflexível diante das complexidades da realidade social, como em casos de saúde pública, vulnerabilidades sociais ou mesmo conflitos éticos, especialmente quando as necessidades humanas entram em choque com a proteção de outras espécies.
Nas aulas ministradas pela professora Lilian Rocha no UniCEUB, ela traz a o conceito do biocentrismo como “filosofia que coloca todos os seres vivos no seio da proteção jurídica e não apenas o homem”, enfatiza ainda que “precisa ser traduzido em normas jurídicas claras, eficazes e aplicáveis no sistema judicial brasileiro que ainda é formalista e conservador em inovação jurídica, o que dificulta a incorporação de valores éticos não positivados pelos juízes e tribunais que podem resistir à aplicação de normas biocêntricas por falta de previsão expressa ou por insegurança jurídica”. Em um contexto jurídico, as ideias biocêntricas precisariam ser ajustadas para reconhecer as complexidades das relações de poder, da autonomia individual e da moralidade humana, sem desconsiderar os outros princípios fundamentais que sustentam a justiça social e ambiental.
Sob a perspectiva biocêntrica, a resposta ao dilema apresentado neste artigo não deve partir da hierarquização de vidas, mas do reconhecimento da interdependência entre elas. A dignidade da mulher não pode ser colocada em segundo plano em nome de um discurso de proteção à vida embrionária. O cuidado com o nascituro deve ser considerado, sim, mas nunca à custa da autonomia da mulher ou da sua saúde física, emocional ou das suas escolhas. Esse equilíbrio é o que o biocentrismo propõe: um Direito que valoriza todos os seres vivos sem instrumentalizar nenhum deles!
Ainda assim, ao reforçar o princípio da dignidade humana e ao antecipar o início da personalidade jurídica para o momento da concepção, o novo Código Civil nos impõe o desafio de reinterpretar as normas à luz de uma ética mais sensível e plural. Para que essas mudanças não se convertam em retrocessos nos direitos das mulheres, é preciso garantir que a nova legislação reconheça suas singularidades, suas vulnerabilidades e, sobretudo, seu papel como protagonistas da própria história.
A construção de um novo Código Civil, portanto, deve romper com a lógica hierárquica e utilitarista do antigo paradigma e adotar uma ética do cuidado, da igualdade e da interdependência. A mulher, enquanto expressão viva dessa interconexão, deve ser reconhecida não apenas como beneficiária do Direito, mas como sua protagonista, contribuindo para um modelo evolutivo mais justo, plural e sustentável.
Estamos em busca de um novo caminho civilizatório!