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Legislação a respeito do delito foi aprimorada, mas número de ocorrências mostra que se trata de uma “epidemia criminal”.
Em 1997, o envolvimento sexual entre uma professora de 35 anos e seu aluno, de 13, abalou os Estados Unidos. Mary K. Letourneau, a professora, apesar de condenada pela Justiça norte-americana, teve filhos com Vili Fualaau, seu ex-aluno e, ao sair da cadeia, em 2005, casou-se com ele.
O diretor Todd Haynes, no filme “Segredos de um Escândalo”, que concorreu ao Oscar 2024, buscou decifrar a relação complexa entre Mary e Vili, por um viés subjetivo, criando uma história paralela na qual uma atriz, que interpretará a professora em um filme, ao buscar inspiração para a personagem, hospeda-se na casa dos Letourneau.
O caso, apesar de adaptado para ficção, na essência trata de um assunto extremamente sensível: estupro de vulneráveis. No Brasil, o relacionamento entre um maior de idade e um menor de 14 anos é crime tutelado pelo CP. Os tribunais pátrios ainda discutem pormenores do tipo penal e novos formatos do crime, como o estupro virtual, são cada vez mais comuns.
Jornal Folha de S.Paulo noticiou caso Letourneau.(Imagem: Folha de S.Paulo)
Julgamento
No caso Letourneau, Mary foi condenada à prisão por 89 meses. No entanto, como havia se declarado culpada, foi beneficiada com um “SSOSA”. Nos Estados Unidos trata-se de um pedido de “pena alternativa especial para ofensores sexuais”. Em vez de prisão, parte da sentença de Mary poderia ser cumprida em um tratamento de desvios sexuais.
Para ter direito à pena alternativa, o contato com a vítima ou outras crianças sem a supervisão de um adulto foi proibido. Além disso, Mary teria que cumprir serviços comunitários por mais dois anos.
No entanto, passados três meses, a SSOSA foi revogada. Mary foi encontrada em companhia de Vili, violando a condição de não o contatar. Por isso, voltou ao cárcere para o cumprimento da pena original de 89 meses (aproximadamente 7 anos e meio).
Pouco antes de sua liberdade, em 2004, após pedido de Vili, que à época tinha 21 anos, um juiz retirou a ordem de restrição entre o ex-aluno e a professora. Passado um ano, o casal oficializou a relação. Eles ficaram juntos por 12 anos e em 2017 se separaram. Três anos depois Mary faleceu em decorrência de um câncer.
Em 2013, um caso análogo ao de Mary Letorneau virou manchete nos principais jornais do Brasil. Uma professora de matemática foi condenada, em 1ª instância, a 12 anos de reclusão por manter um relacionamento com sua aluna menor de idade.
Na denúncia, a professora foi acusada de cometer o delito contra a aluna por mais de 20 vezes. Em depoimento, a docente confirmou o relacionamento com a estudante, a qual, afirmou em juízo que sentia grande amor pela professora e que pretendia viver com ela por toda a vida.
Apesar da condenação em 1º grau, a professora foi absolvida pelo TJ/RJ. O relator, desembargador Paulo de Oliveira Lanzelotti Baldez, afirmou que não houve utilização de violência, grave ameaça ou coação e todos os atos foram consentidos pela adolescente.
“Vale ressaltar, também, por importante, que a adolescente é fisicamente bem desenvolvida e não apresenta qualquer retardo mental nem tampouco qualquer eficiência de ordem neurológica ou psicológica, mas, ao revés, seu comportamento é comum às garotas de sua idade, quiçá com maior maturidade, consoante se percebe de seu depoimento prestado em mídia audiovisual, na qual demonstra segurança e boa articulação.”
Para o tribunal, não foi produzida prova de que a adolescente fosse incapaz de consentir na prática do ato.
Veja o acórdão.
Criminalização do estupro de vulneráveis
O primeiro esboço da criminalização de estupro de vulneráveis no Brasil foi trazido pelo Código Criminal de 1830 ao punir “coito com mulher virgem, menor de 17 anos” e “a sedução de mulher honesta, menor de 17 anos, com cópula carnal”.
Fala-se em “esboço”, pois são nítidas as limitações morais e de gênero da época presentes no texto, como no uso da expressão “mulher honesta”.
A legislação passou por uma leve evolução com o Código Penal Republicano de 1890, que ampliou a proteção das mulheres para a faixa etária dos 16 anos.
Em 1940, o Código Penal passou a prever o crime de sedução. A conduta punida era a de “seduzir mulher virgem, menor de 18 anos e maior de 14, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. Também trouxe os crimes de corrupção de menores e de rapto, os quais foram revogados em 2005, pela lei lei 11.106.
No último caso, sendo a vítima maior de 14 anos e menor de 21 e consentindo com o rapto, a pena era menor. Outras hipóteses de diminuição da pena ocorriam se o rapto tivesse a finalidade de casamento, ou se o autor não praticasse ato libidinoso com a vítima e a libertasse ou colocasse em local seguro à disposição da família.
Quatro anos depois, a lei dos crimes sexuais (lei 12.015/09) atualizou o CP e criou tipos penais separados para o gênero estupro e a espécie estupro de vulnerável, além de declará-los crimes hediondos (inafiançável, insuscetível de graça, indulto ou anistia, fiança e liberdade provisória).
Com previsão no art. 217-A do CP, o estupro de vulnerável foi definido como conjunção carnal, ou outro ato libidinoso, com menor de 14 anos. Se a vítima for pessoa com enfermidade ou deficiência metal, sem o necessário discernimento, ou com pessoa incapaz de oferecer resistência, também ficará caracterizado o crime.
Ademais, a lei dos crimes sexuais inaugurou os tipos “satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente”, “favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável” e revogou os crimes de atentado ao pudor.
Periódico “O Estado de S. Paulo” noticiou aumento de pena em casos de estupro de vulneráveis.(Imagem: O Estado de S. Paulo )
Consentimento
Os crimes até então abordados pela legislação pátria não trataram de um ponto nevrálgico que é a possibilidade de relacionamentos “consentidos” em idades limítrofes, por exemplo, entre jovens de 14 e 18 anos.
Muitas vezes relativizada pela opinião pública, é comum que a situação termine no Judiciário. Um caso recente foi o de um policial militar, de 38 anos, que pediu em casamento uma menina de 15, no portão da escola da garota, em Toritama/PE. Um procedimento administrativo foi aberto contra o agente.
Em 2018, a lei 13.718 acrescentou o § 5º ao art. 217-A do CP, esclarecendo que há crime de estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriores ao crime. Na súmula 593, o STJ reforçou a impossibilidade de relativizar o estupro de vulnerável, ou seja, a Corte entendeu como irrelevante o consentimento da vítima menor de 14 anos para o ato sexual.
Em 2019, a lei 13.811 promoveu um avanço legislativo significativo ao retirar do CC a possibilidade de eximir o estuprador de pena se contraísse matrimônio com a vítima menor de idade. Desde então, o casamento de quem não atingiu a idade núbil foi banido, em qualquer caso.
Criminalização do estupro de vulneráveis foi tutelada de modo cada vez mais amplo ao longo do tempo.(Imagem: Arte Migalhas)
Como o STJ vem julgando?
Segundo informações de 2024 da Corte da Cidadania, atualmente aguardam julgamento 4.469 processos no STJ com o tema “estupro de vulnerável”. Deste total, apenas 571 são recursos especiais. Outros 2.260 são AREsps e 1.638 são HCs e RHCs.
Agravos em REsp representam a maior parte das ações no STJ que envolvem estupro de vulneráveis. (Imagem: Arte Migalhas)
No fim de 2023, a Corte analisou se a relação entre um homem de 25 e uma menina de 14 anos, que resultou em gravidez, configuraria o crime. Em 1ª instância o rapaz foi absolvido, pois o magistrado considerou que a garota não era incapaz de consentir com o relacionamento. Em 2ª instância ele foi condenado e resolveu apelar da decisão.
Para o ministro relator, Rogerio Schietti, da 6ª turma da Corte, o crime foi consumado, independente do consentimento da menor de idade. O ministro foi seguido, por unanimidade, pelos pares.
Veja o acórdão.
Estupro de vulnerável em números
Segundo dados do ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, de fevereiro de 2024, no primeiro semestre do ano foram registradas 2.818 denúncias de estupro de vulnerável. Considerando o 2º mês do ano, é como se aproximadamente 46 denúncias de abusos fossem registradas, por dia.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 mostram que, no Brasil, foram registrados, aproximadamente, 52 mil casos de estupro de vulnerável em 2021 e quase 57 mil casos em 2022. Isso indica um aumento de, aproximadamente, 9% nos casos. Outros tipos de estupro subiram de 16 mil para 18 mil, no total de 12,5%.
Houve aumento nos casos de estupro de 2021 para 2022.(Imagem: Arte Migalhas)
Interessante notar que, do total de aproximadamente 143 mil registros em 2021 e 2022, abrangendo o gênero estupro e o tipo estupro de vulnerável, tanto de meninos como de meninas, o crime contra vulneráveis corresponde a 75,6% dos casos.
Estupro de vulneráveis representa mais da metade dos casos registrados entre 2021 e 2022.(Imagem: Arte Migalhas)
Segundo o estudo, a faixa etária “vulnerável”, mais vitimada, é a de 10 a 13 anos, somando mais de 20 mil casos.
O documento ressalta que a partir de 14 anos a lei brasileira entende que a pessoa é capaz de consentir, ou seja, em tese, jovens de 14 a 17 anos não integrariam os índices de estupro de vulnerável. Porém, na prática, muitas vezes a vítima ainda não é capaz de oferecer resistência.
A faixa etária mais vitimada pelo crime é de adolescentes acima de 14 anos.(Imagem: Arte Migalhas)
Em 64,4% dos casos envolvendo crianças e adolescentes de 0 a 13 anos, os autores são familiares e 71,6% dos estupros ocorreram na casa da vítima.
Mais da metade dos estupros de vulnerável são cometidos por familiares da vítima.(Imagem: Arte Migalhas)
Estudo quantificou os locais de ocorrência do estupro de vulnerável. Maior parte ocorre na residência da vítima.(Imagem: Arte Migalhas)
O anuário faz o alerta de que os dados compilados correspondem aos registros de boletins de ocorrência em delegacias, mas existem muitas subnotificações em razão da delicadeza do assunto, de modo que o número pode ser ainda maior.
Estupro virtual
Em 2015, a condenação de um estudante de medicina pelo estupro virtual de um menino de dez anos foi paradigmática para outras condenações para crimes em meio virtual.
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No caso, o pai da criança descobriu que ela se comunicava com o abusador, de 24 anos, pelo site Omegle, onde o homem fazia solicitações sexuais ao menino.
A Justiça acolheu a tese da promotoria de que é possível o estupro mesmo sem contato físico. O precedente utilizado foi um julgamento do STJ, que condenou por estupro um homem que levou uma menina de 13 anos a um motel e praticou masturbação vendo a criança se despir, mas sem tocá-la.
O estupro virtual encontra-se em uma linha tênue com o crime de pornografia infantil. Segundo Carolina Christofoletti, advogada e pesquisadora de redes de materiais de abuso sexual infantil, a gravação desses tipos de atos, antigamente, exigia que o estuprador e a criança ou o adolescente estivessem no mesmo local, para que a cena fosse gravada.
Atualmente, com o fácil acesso a aparelhos com câmeras, os criminosos mudaram a forma de atuar, pois conseguem produzir materiais sem o envolvimento da própria imagem no conteúdo.
“[…] pode-se falar em “estupro virtual” em um sentido no qual o abusador inicia uma conversa com a criança, normalmente em redes sociais, e a convence do envio de conteúdo de fotos ou vídeos ou da realização de lives, passando segurança de que os atos não serão guardados ou gravados, mas, na realidade, são até mesmo vendidos.”
Segundo a pesquisadora, a gravidade dos atos pode levar a uma extorsão sexual e pode provocar, até mesmo, suicídios.
“Isso criou uma situação terrível na qual justamente os criminosos usavam dessas redes de contato para criar situações em que, por exemplo, se fala que se a criança ou o adolescente não mandasse mais materiais ou não pagasse um determinado valor, essas imagens que já tinham sido enviadas seriam enviadas para a lista de contato justamente da criança ou do adolescente.”
Carolina Christofoletti aponta que, se a criança ou adolescente estiver sendo vítima de um abusador em plataformas online, é necessário reportar à plataforma o incidente para preservar qualquer tipo de comunicação, evidências que poderão ser úteis em eventual ação penal. Essa denúncia é importante até mesmo para a plataforma pode criar ou fortalecer mecanismos para conter os crimes.
Veja a entrevista:
O caso Mary Letourneau voltou a ser debatido com o lançamento do filme, no último ano. Mas, como visto, há mais tempo o Legistlativo e Judiciário tentam suprir lacunas e julgar nuances envolvendo relações entre menores e maiores de idade, principalmente quando envolvem questões de consentimento.
Simultaneamente, o avanço tecnológico e a prevalência das redes sociais originaram novas formas do abuso. Há, portanto, um desafio contínuo no equilíbrio da proteção legal, liberdades individuais e evolução das normas sociais. Esses debates e decisões, ao fim e ao cabo, devem promover mais conscientização e proteger, efetivamente, os mais vulneráveis.