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Todas e todos ganham com a igualdade entre gêneros
Estamos acostumadas a ouvir sobre os “direitos humanos das mulheres”, porém será que sabemos dimensionar sua importância a nossa luta por direitos e por igualdade?
Os direitos humanos surgiram como uma reação às atrocidades cometidas contra a humanidade, especialmente na Segunda Grande Guerra. Basta lembrar as barbaridades cometidas nos campos de concentração pelos nazistas contra os judeus ou pelos japoneses na Unidade 731 contra chineses, coreanos e prisioneiros soviéticos. Em ambos os casos, se patrocinou, com total apoio da máquina do Estado, os piores tipos de torturas e experimentos médicos em seres humanos sem qualquer preocupação com valores éticos de respeito à vida e à dignidade humana, por exemplo.
Horrorizada com tais descobertas, sob os fundamentos da liberdade, da justiça e da paz social, e apesar das disputas ideológicas, a comunidade internacional criou em 1945 a Organização das Nações Unidas (ONU) que em 1948, com a participação de diversos países com suas mais diversas posições políticas, aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), cujo preâmbulo passou a afirmar que todas e todos, mulheres e homens, são titulares de mesma dignidade e dos mesmos direitos e liberdades fundamentais – alguns exemplos: direito à vida, à segurança pessoal, a não ser torturado, a não sofrer violência; à liberdade de consciência, de pensamento, de religião.
Em seu artigo 1º afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Ou seja, toda pessoa tem o mesmo valor que todas as outras e, por essa razão, deve ser respeitada e receber proteção. Com isso, surgiu a concepção contemporânea dos direitos humanos, representada por esse discurso internacional de vozes uníssonas sobre a necessária proteção das pessoas, que devem ser defendidas inclusive contra as vontades arbitrárias de estados que não mais deteriam a soberania clássica e não mais teriam o poder de definir quem seria titular de direitos, pois todos passam a ser cidadãos da comunidade mundial – os estados não teriam mais o direito de decidir quem vive e quem morre, em palavras mais simples. O único requisito para titularidades de direitos passou a ser a condição de pessoa, o que fundamentou os direitos humanos no princípio da dignidade humana.
Em relação à proteção às mulheres, o sistema da ONU percebeu que somente a proteção geral e abstrata conferida não seria suficiente para proteger as mulheres, pois para isso seria preciso análise das condições e necessidades específicas das mulheres em suas mais variadas formas, com o que em 1946 criou-se a Comissão sobre a condição da mulher. A Comissão atuou inclusive na elaboração da mencionada DUDH defendendo, por exemplo, a substituição da expressão “direitos do homem” por “direitos da humanidade”, em outras palavras inaugurando uma linguagem inclusiva, cujos efeitos foram importantes para que documentos internacionais de proteção de direitos humanos passassem a contemplar a questão da igualdade entre gêneros.
Finalmente, em 1979, a Comissão sobre a condição da mulher elaborou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, documento importante que reconheceu a questão da desigualdade entre gêneros e atribuiu responsabilidade para que os estados passassem a combatê-la de forma adequada e efetiva. Após essa formulação, a Comissão também patrocinou diversas conferências relativas a essa temática, como a Conferência Mundial Sobre a Mulher que ocorreu no México em 1975, a Conferência de Copenhague que ocorreu em 1980, a Conferência de Nairobi em 1985 e a que teve maior impacto sobre o programa mundial de igualdade de sexos que foi a Conferência de Pequim de 1995 – considerada um marco importante para a igualdade de gêneros, pois dela derivou um acordo internacional para promoção da igualdade e eliminação da discriminação contra mulheres.
Já no plano latino-americano, é interessante destacar o pioneirismo do nosso sistema regional de proteção dos direitos humanos que inovou na questão da igualdade entre homens e mulheres, ao reconhecer a violência de gênero como um fenômeno generalizado, que atinge a maioria das mulheres, independente de sua classe, raça, etnia, orientação sexual, por exemplo. Assim é feito com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994, a qual se dedicou a descrever os tipos e os contextos da violência contra as mulheres. No seu artigo 1º, define a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
Ou seja, qualquer violação de direito da mulher, seja nos lares ou fora deles, que ocorra em razão do seu ser (mulher), é considerada violência de gênero, que nada mais é que fruto das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, conforme é reconhecido no preâmbulo de referida convenção. Devemos dar atenção também ao artigo 9º dessa convenção, uma vez que ela demanda que situações de vulnerabilidades das mulheres sejam levadas em consideração, tais como raça, origem étnica, condição de migrante ou refugiada, por exemplo.
O sistema de proteção dos direitos humanos, portanto, inscreveu a questão da igualdade entre homens e mulheres como condição para a justiça social, reconhecendo que a violência contra mulher a priva de sua vida, de possibilidades de desenvolvimento de suas capacidades na educação e no trabalho, condenando-a a um futuro de dependência e submissão aos homens. E nesse ponto está a importância dos direitos humanos para a concretização da igualdade entre gêneros. Os Estados que ratificaram essas convenções e tratados internacionais de proteção de direitos humanos apresentaram avanços na defesa dos direitos das mulheres, incorporando dispositivos protetivos de tais diplomas ou criando novas leis que fossem convergentes com suas disposições. No Brasil, temos como exemplos a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, que demonstram preocupação do estado brasileiro em efetivar os direitos humanos das mulheres. Mas, para além da esfera do direito internacional, há medidas a serem tomadas?
Na esfera pública, ou seja, por parte do Estado, é imprescindível que o planejamento orçamentário catalise políticas públicas que tenham como finalidade diminuir as desigualdades de gênero, proporcionando condições concretas de atendimento das necessidades básicas das mulheres e a fim de lhes imprimir maior qualidade de vida, especialmente onde as mulheres são mais vulneráveis como nas periferias urbanas, nas áreas rurais e nas comunidades tradicionais. E quem participa do planejamento orçamentário? Sua proposição vem do Poder Executivo e sua aprovação vem do Congresso Nacional (senadores e deputados federais). Por isso, nós, mulheres, precisamos eleger candidatas e candidatos que efetivamente atuem na defesa prioritária dos direitos humanos das mulheres se quisermos uma sociedade mais justa em termos de gênero.
Na esfera privada, ou seja, em nossos lares e nos relacionamentos, precisamos de familiares e parceiros ou parceiras que efetivamente nos deem apoio, seja econômico, afetivo ou moral. É importante pensar em uma divisão justa das atividades domésticas e dos cuidados com os filhos, no compartilhamento do custeio dos métodos contraceptivos (afinal, a responsabilidade é compartilhada), na divisão equilibrada e adequada das contas, no planejamento familiar responsável de ter filhos, que deve levar em conta toda a carga histórica que a mulher carrega de preconceito no trabalho, de salários muito mais baixos, do risco real de ser demitida logo após o período de estabilidade ou da dificuldade muito maior de conseguir subir na carreira profissional e acadêmica após ter um bebê. Sejamos apoiadas sem sentimentos de culpa ou inferioridade, pois merecemos um mundo mais justo e igual em termos de gênero – e apenas o reconhecimento formal de nossos direitos não nos é suficiente para concretizar a igualdade que queremos, é necessário, para alcançarmos nossa almejada autonomia, acesso aos meios para isso (educação, trabalho, etc), os quais historicamente se concentram nas mãos dos homens. Enfim, se nascemos livres e iguais em direitos e dignidade, precisamos agir com espírito de fraternidade, especialmente para com as mulheres que historicamente ocupam lugares subalternos na sociedade.
*Ketline Lu é advogada, mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraná