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Nos últimos 10 anos, o consumo de álcool por mulheres aumentou e especialistas apontam necessidade de tornar ajuda mais acessível
A noite começa com o primeiro copo de bebida gelada na mão. Após alguns goles, à medida que o álcool começa a fazer efeito, o corpo relaxa. O dia foi difícil por vários motivos: problemas na família, rotina de casa, machismo no trabalho, contas chegando. Um acúmulo de funções e sentimentos.
Com o segundo copo, mais descontraída, passa a ver graça em si e nos outros. O espelho do bar reflete uma mulher confiante e sexy. O garçom é legal e as pessoas ao redor são descoladas. O dia nem parece que foi tão duro.“Fodam-se os problemas”, pensa. Em algum momento, lá para o terceiro drink, as bordas dos objetos não estão mais nítidas. A fala começa a ficar enrolada. Uma pontada de melancolia dá as caras e o cotidiano parece ser pior que no começo da noite.
Pede outra bebida. Quer sair da brisa errada e voltar para a mulher que se sentia invencível. Resultado: se sente uma merda. Está determinada a tomar quantas forem necessárias para ficar bem. Volta para casa e acorda no dia seguinte acompanhada da culpa e da vergonha. Promete a si mesma que nunca mais vai perder o controle. Não consegue cumprir.
Assim funciona o ciclo vicioso do álcool. “Você começa com um copo e fica relaxada. Na segunda dose se sente incrível, e nas próximas tenta voltar à mesma sensação inicial, mas não consegue”, explica Graziella Santoro, de 51 anos, alcoolista em recuperação e fundadora da Associação de Alcoolismo Feminino (AAF).
O AAF nasceu durante a pandemia, como um coletivo, fundado pela Graziella ao lado da também alcoolista Denise Cabral, e da psicóloga e especialista em Dependência Química, Claudia Leiria. A associação ajuda no processo de recuperação, por meio de grupos terapêuticos específicos para mulheres negras, lésbicas, bissexuais, transexuais, vítimas de violências e mães. Além da interrupção do consumo de álcool e drogas, a equipe incentiva o autoconhecimento, a autoestima e o amor-próprio.
Graziella Santoro
Esse tipo de trabalho (da AFF) tem sido cada vez mais necessário. Em 2023, houve crescimento no número dos óbitos (+7,5%) e das hospitalizações (+5%) de mulheres, atribuíveis ao álcool, quando comparadas as taxas por 100 mil habitantes entre 2010 e 2021. O levantamento foi feito pelo Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (CISA).
“A gente começou a fazer esse monitoramento em 2010 e, desde então, ano a ano, as mulheres têm aumentado o consumo de álcool. Isso não é só um fenômeno aqui no Brasil, é uma tendência mundial”, alerta Mariana Thibes, Doutora em Sociologia e coordenadora do CISA. Há 16 anos, Graziellafoi obrigada a buscar o Alcoólicos Anônimos (AA) pela mãe que, no auge do desespero, ameaçou expulsá-la de casa com as filhas.
O AA é uma comunidade voluntária e sem fins lucrativos que reúne pessoas alcoolistas e em recuperação, ajudando-as a manter a sobriedade através da execução de 12 passos. Mas, mesmo com todo carinho e influência positiva do programa na sua jornada, Graziella se incomodava com o número baixíssimo de mulheres nos encontros. Durante os 8 anos que esteve no grupo, viu chegar pouco mais de 10. Destas, duas ou três continuaram após o término do primeiro encontro.
Além dos motivos pessoais de desistência, a presidente da Associação de Alcoolismo Feminino percebeu que o machismo dos homens do grupo era um fator determinante. Fosse pelos comentários, investidas ou comportamentos, mulheres não se sentiam seguras para compartilhar experiências íntimas e dolorosas, prejudicando a eficácia e permanência no tratamento.
“Apesar de ter sido acolhida por várias pessoas no AA, eu sofri assédio. O meu telefone estava no grupo e um cara começou a me mandar mensagens íntimas”, relembra Carol Vieira, uma mulher bissexual, de 41 anos, e alcoolista em recuperação há 4 anos. “É desconfortável e muito ruim estar em um espaço se sentindo tão frágil, querendo falar suas dores e ter alguém querendo transar com você”, desabafa.
Carol encontrou a AAF em julho de 2021 e só aí parou de beber, porque descobriu esse espaço em que se sentia à vontade para falar, principalmente por ter relações homoafetivas, e não falaria em uma sala só com homens. “Passei tantos anos da minha vida não podendo ser eu, por conta do álcool, que isso era tudo o que queria e precisava”, afirmou ela sobre a AAF.
Carol Vieira
Carol era uma mulher obesa e com a morte da mãe, aos 19 anos, a compulsão piorou, já que ela teve que trabalhar, ganhar dinheiro, cuidar da casa, do irmão e do pai. “Eu não consegui viver o luto e tentei resolver essa frustração comendo.” Ela realizou, então, uma cirurgia bariátrica. “Eu não estava bem psicologicamente e tinha uma escolha: comer ou beber. Eu optei por beber porque eu não queria engordar”, recorda.
Ao procurarem ajuda, é comum que mulheres cheguem aos grupos se sentindo muito vulneráveis física e emocionalmente. No primeiro contato com a AAF, por exemplo, as interessadas respondem um questionário. Graziella conta que 80% das mulheres registradas no programa afirmaram já terem sido vítimas de violência sexual.
Depois da bariátrica, Carol teve um relacionamento em que o namorado lhe batia e chamava de bêbada. Foram várias violências. “Eu penso em todas as vezes que me relacionei com homens e me questiono o quanto fui abusada, porque eu sempre estava muito alcoolizada”, lamenta. A adicção carrega um cruel e errôneo estigma de gênero: mulheres que bebem são promíscuas, boêmias, acessíveis sexualmente e irresponsáveis. Essa violência reforça o sentimento de culpa e inadequação e, muitas vezes, dificulta a busca por tratamento.
Graziella, após um relacionamento violento, por pouco não retomou o consumo do álcool. Ela se envolveu com um homem do AA que estava em recuperação há 5 anos. “Eu achava o máximo vê-lo tão forte e pensava que ele tinha muito a me ensinar. Ele me espancou enquanto eu ainda estava em recuperação.”
Quando a mulher percebe que não conseguirá tratar o alcoolismo sozinha, o vício já impactou várias esferas, ela já perdeu o emprego e os vínculos sociais, aponta Mariana, do CISA. Por isso, a recuperação só será efetiva quando os espaços de apoio estiverem preparados para fidelizar a confiança dessa mulher.
O álcool é uma substância química depressora e psicoativa que age principalmente no sistema nervoso central, onde altera a função cerebral. No Brasil, é considerado uma droga lícita que pode ser consumida por maiores de 18 anos. Algumas características biológicas tornam a mulher mais sensível aos efeitos do álcool.
Pessoas do sexo feminino têm menos água no corpo que homens de mesma altura e peso. Assim, elas apresentarão maior quantidade de álcool no sangue. O número de mulheres que buscaram atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) por uso de drogas e álcool apenas entre janeiro e outubro de 2023 (43.976) ultrapassou o total de 2022 inteiro (42.101), conforme dados do Ministério da Saúde.
Não é possível dizer os motivos pessoais que impulsionam a busca pela droga. Mas o crescimento da adicção pode estar relacionado às mudanças no papel social da mulher, como o acesso ao mercado de trabalho, as novas configurações familiares e a evolução de direitos. O problema é que nada disso impulsionou uma divisão justa de responsabilidades, gerou um acúmulo de funções. Mulheres estão esgotadas.
Um relatório feito pelo Lab Think Olga, chamado “Esgotadas”, mostrou que a falta de dinheiro (60%) e a sobrecarga de trabalho (30%) são as maiores questões que afetam a saúde emocional das mulheres brasileiras. Seguida de pressões estéticas (26%) e violência de gênero (16%). O estudo mostra ainda que as mulheres dedicam o dobro de tempo dos homens nas tarefas de cuidado.
Mais de 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo são mulheres, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). “As mulheres vivem jornadas triplas estressantes. O álcool, nada mais é, que uma busca por sentir prazer no meio dessa fadiga”, pontua Mariana.
O homem que possui algum vício, ao procurar ajuda, é dificilmente indagado sobre esferas pessoais como o casamento, filhos, compromissos financeiros e responsabilidades sociais. “Minha mãe sempre dizia: homem bêbado é feio, mas mulher bêbada é pior ainda”, conta Carol Vieira, em tratamento do alcoolismo.
A historiadora e graduanda em Psicologia, Natana Magalhães, de 38 anos, é uma mulher negra, alcoolista em recuperação há 9 meses. Ela começou a beber, assim como Carol, após uma cirurgia bariátrica, aos 22 anos. Esse procedimento deixa os corpos ainda mais suscetíveis já que, após a cirurgia, a absorção do álcool acontece de forma mais acelerada, causando embriaguez mais rápido. “Eu precisava pegar ônibus e, devido ao meu peso, eu não conseguia passar na catraca. Existia uma questão de acessibilidade que é muito desgastante.” Ela diz que sofreu bullying e racismo.
Natana Magalhães
“Eu sou uma mulher de favela que já sofreu muitas agressões. O meu território sofre violações o tempo inteiro. Não é possível que essas violências não influenciam a minha saúde mental, minhas relações e como lido com o mundo”, afirma Natana. Ela hoje é e diretora de Diversidade e Equidade Racial da Associação Alcoolismo Feminino (AAF).
Além do gênero, é importante considerar o contexto racial e social em que as pessoas adictas estão inseridas. Quando se tratam de públicos sujeitos às mais variadas violações, seja dos parceiros ou da gestão pública, encontramos cenários que podem motivar a busca pelo álcool. A pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil” mostrou que 65,6% das mulheres que disseram sofrer violência em 2023 eram mulheres negras. A renda média desse grupo não chega a 60% da renda de homens brancos, conforme o IBGE.
“O que é o álcool no contexto de uma sociedade doente?”, questiona Mariana, do CISA. “Se a pessoa está estressada, esgotada, com a saúde mental em frangalhos, a substância piora tudo.” Para quem vive em situação de vulnerabilidade, como Natana, sendo uma mulher negra, gorda e de favela, o álcool não é encarado como a situação mais grave a ter que lidar. “O alcoolismo foi secundário durante muitos anos, porque eu tinha outras urgências”, reforça.
Natana ouvia um podcast enquanto lavava louça e resolveu buscar por “alcoolismo feminino”. Encontrou um episódio em que a Graziella falava do AAF. “Eu corri para olhar o perfil delas. Fiz o primeiro contato, inclusive, alcoolizada”, lembra.
Diferente da época em que Graziella e Carol buscaram tratamento, hoje o AA começou a pensar em iniciativas voltadas às mulheres, como o “Colcha de Retalhos”. Integrantes de todo o Brasil se reúnem para divulgar mensagens de recuperação à mulher alcoólica. No site deles, é possível encontrar reuniões para grupos femininos, inclusive online.
Pensar gênero, raça, condições sociais e limitações geográficas para tratar o alcoolismo é urgente. Os efeitos negativos do consumo de álcool estão associados à ocorrência de mais de 200 tipos de doenças, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No mundo, cerca de 3 milhões de mortes por ano, 5,3% de todos os óbitos, decorrem dos efeitos do álcool.
*Mariana Rosetti Maia é colaboradora d’AzMina e não faz parte da equipe fixa da organização. Esta reportagem foi editada por Joana Suarez, gerente de jornalismo d’AzMina.