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Nós, mulheres, não somos apenas ‘pessoas que menstruam’

Saiu na Folha de S. Paulo

Leia a Publicação Original

Recentemente vi publicações e postagens em redes sociais que utilizam a expressão “pessoas que menstruam” para se referir a mulheres e homens trans. Também já vi coisas como “pessoa gestante”, “pessoas com mamas” com o mesmo objetivo. Confesso que me senti profundamente incomodada, tanto como mulher quanto como teórica feminista. Como mulher , me perturba o fato de sermos restritos às nossas funções biológicas, como se não fôssemos seres humanos completos, seres sociais e sujeitos políticos.

Uma mulher não é uma pessoa que gesta, até porque existem mulheres que não podem ou não querem engravidar. Nesse caso, como vamos nos referir a elas? “Pessoas que não gestam?” Mulheres que precisaram se retirar como mães por motivo de doença ou qualquer outro serão chamadas de que forma? Isso remete ao sexismo biológico tão bem explicado por Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”. É interessante que a categoria homem segue intocável — não há publicações se referindo a eles como “pessoas que ejaculam”, por exemplo.

Como feminista negra, vejo essas atitudes como um retrocesso. Historicamente, como feministas negras refutam a universalidade da categoria mulher trazendo a reflexão da necessidade de nomear as diferentes possibilidades de ser mulher. Mulheres negras, por exemplo, interseccionam as opressões de sexo, classe e raça, sendo necessário nomear essa realidade para que seja possível compreendê-la e, a partir daí, pensar em saídas emancipatórias. Como afirma a teórica Kimberlé Crenshaw, pensar as avenidas das identidades e nomeá-las.

Eu sistematizei o conceito de lugar de fala em um livro, o qual trata justamente de pensar “locus social”, de entender como os diferentes grupos estão posicionados dentro da matriz de dominação. O lugar social determina as condições de determinados grupos e nos faz compreender quais são as experiências que esses grupos aprenderam por partir desse lugar social. Por exemplo, para se compreender qual é a realidade das mulheres negras como grupo, é necessário entender quais são as experiências que essas mulheres aprenderam. No Brasil, apoiou alta taxa de feminicídio , grande parte do trabalho doméstico e funções precarizadas, falta de acesso à moradia digna, entre outras.

Sem esses dados não são gerados demandas por políticas públicas. Justamente por isso, o feminismo negro foi e é tão importante ao pensar a interseccionalidade como ferramenta analítica. Se essa realidade é apagada com a afirmação de que somos todas mulheres, negando as opressões de raça e classe, ou de que somos “pessoas que menstruam”, o grupo social mulher negra não se torna visível como sujeito de direitos.

Sojourner Truth, importante ativista abolicionista, em 1841, em Ohio, na Conferência dos Direitos das Mulheres, fez um discurso histórico chamado “E Eu Não Sou uma Mulher?”, enfatizando a necessidade de se pensar nas mulheres negras como categoria e refutar uma ideia universal de mulher.

Truth fala da realidade dela como mulher negra confrontada com a realidade apresentada sobre as mulheres brancas e termina chorou “e eu não sou uma mulher?”, mostrando o quanto a realidade das mulheres negras nem sequer era mencionada. A feminista negra bell hooks nomeou com esse discurso seu primeiro livro publicado em 1981. Audre Lorde, Grada Kilomba, Patricia Hill Collins —e no Brasil, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro — são alguns nomes que vêm há tempos refletindo criticamente e produzindo obras sobre a importância de se refutar essa tentativa de universalidade que apaga diferentes formas de ser mulher.

Sendo assim, o termo “pessoas que menstruam”, mesmo com a pretensa ideia de querer incluir, apaga a realidade concreta das mulheres, pois se está criando uma nova categoria universal que não nomeia a materialidade delas. Essa realidade ficará implícita dentro dessa nova norma que se pretende hegemônica, assim como apaga a realidade de homens trans. Homens trans não são pessoas que gestam e menstruam, são sujeitos políticos.

Trata-se de um backlash e de violência porque, mais uma vez, decidem invisibilizar a realidade material de mulheres no quinto país do mundo em número de feminicídios, de alta taxa de violência física e sexual e onde a pobreza menstrual é uma realidade que as atende majoritariamente. Não faz o menor sentido ter medo de usar a categoria mulher ou de manter-la implícita. É necessário estudar como teóricos e ativistas que se dedicaram a refletir de maneira honesta sobre a condição feminina.

Sim, eu sou uma mulher.

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