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Tatiana foi criada em uma casa que parecia um quartel. A roupa precisava ter um comprimento “decente”, os amigos só seriam chamados assim caso se adequassem aos bons costumes da família, e a violência física era certa em caso de mau comportamento. “Se chegasse a sexta-feira e tivesse um pouco de pó nos móveis, apanhava muito, a ponto de achar que ia morrer”, conta a professora de Yoga ao relembrar de seus 13 anos, fase em que precisou ir morar com o pai e a madrasta para fugir da perseguição e maus tratos da própria mãe.
Enquanto sofria abusos físicos e psicológicos dentro de casa, Tatiana, ainda criança, não tinha ideia de que os episódios que evidenciavam um comportamento violento e machista reproduzidos pela própria mãe (e depois por muitos outros do seu convívio) seriam responsáveis por acionar gatilhos para a depressão.
O machismo, infelizmente, não é uma exclusividade masculina. Ele também é reproduzido por mulheres, como mostra o caso que abre essa reportagem. Segundo a professora doutora do Instituto de Psicologia da USP, Walkiria Helena Grant, como um discurso, o machismo propaga-se no campo do social, entre os gêneros. “Pode-se dizer que em muitas criações as mulheres também são treinadas para acreditar em um direcionamento específico de abusos e retaliações, que podem ou não ser absorvidos pelo indivíduo adulto e reapresentados mais à frente”, explica ela. “Nesses casos, o que é recebido do social, da família, funciona como uma força que atua sobre uma escolha inconsciente que é feita por quem já tem esse tipo de material no seu repertório”, diz.
Desde 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) categoriza a depressão como a doença mais incapacitante do mundo, que atinge mais de 400 milhões de pessoas — principalmente as mulheres, em especial em seu período fértil e produtivo. Na última pesquisa global sobre Saúde Mental publicada pela organização, estatísticas mostram que a prevalência da doença é duas vezes maior em mulheres do que em homens. Nessa conta, entram questões hormonais e sociais, que diferenciam a forma como os gêneros são formados geneticamente e a forma como são tratados ao longo da vida.
De acordo com o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, como toda experiência de coerção, o machismo deixa traços e sequelas que são indutores crônicos de processos depressivos. “Estamos falando de relações de manipulação muito evidentes, muitas vezes baseadas na culpa de quem é manipulado. O medo e a angústia que essa relação planta na cabeça da vítima acaba funcionando como um lugar comum, essa pessoa acredita que pertence a esse lugar, que deve merecer esse tipo de retaliação. Ela é convencida”, diz.
O mais importante, diz Dunker, é chegar em um diagnóstico, saber que não está apenas triste. “A tristeza melhora e muda com uma onda de bons encontros, a depressão não. A tristeza não tira nosso sono, nem o nosso sexo, nem a vontade de estar com os amigos.”
Nos casos de depressão que são especificamente desencadeados por machismo, o caminho para a tomada de consciência é ainda mais delicado, já que muitas mulheres não encontram o apoio necessário. “Para chegar a um processo de cura, o tratamento precisa focar nos motivos que levam a pessoa a permanecer em um tipo de relação corrosiva”, diz Dunker, que alerta ainda que o respeito pelo sofrimento psíquico do outro é um fator fundamental nesse processo.
“Muitas vezes essas mulheres permanecem numa fase circular, não conseguem sair de um ciclo vicioso de abusos, e precisam de uma ajuda externa para que consigam experimentar algo novo”, diz a professora Walkiria. “Já entre as mulheres que reproduzem machismo, ou aquelas que querem combatê-lo no próximo, a autoavaliação de suas posições, empatia e o empoderamento feminino são boas ferramentas para reequilibrar essa relação entre os gêneros.”
A seguir, relatos de Tatiana Brito, Babi Paiva e Maiara Dias, que falaram abertamente sobre os casos de machismo a que foram submetidas, e desencadearam em quadros de depressão:
“Minha mãe reproduzia com a gente a dureza do meu avô que era militar. Quando tinha 15 anos, ela leu meu diário e descobriu que eu tinha perdido a virgindade. Me chamou de vagabunda, de burra, disse que ele me usou e que nenhum homem iria querer mais nada sério comigo. Ela realmente me fez acreditar que eu tinha “estragado minha vida” e que dali em diante as pessoas me achariam sem valor. Fez um inferno tão grande que até me proibiu de visitar minha irmã mais nova que morava com ela. Um ano depois fiquei com um rapaz da escola e ele contou pra todos que tinha ido pra cama comigo, e mais uma vez foi uma confusão, só que agora todo o bairro comentava sobre mim, o que fez meu pai me mudar de escola. Eu não entendia o que acontecia, só sentia uma tristeza profunda e achava que o mundo era assim mesmo. Nessa época comecei a ter lapsos, apagões que me faziam não lembrar como tinha chegado à escola, por exemplo. Mais velha, voltei com o namorado com quem perdi a virgindade e aí sim a nossa relação se tornou abusiva, a ponto de eu só conseguir sair de casa e socializar com outras pessoas depois de tomar 3 remédios controlados por conta própria e fumar um baseado. Era como se o mundo inteiro estivesse contra mim. Durante todo esse tempo eu só ficava pior, não conseguia parar em emprego nenhum, e só aos 24 fui diagnosticada e fiz tratamento no Hospital das Clínicas de São Paulo, comecei a praticar yoga e minha vida mudou. Dezembro de 2016 foi o último mês que tomei remédios, recebi alta em janeiro de 2017.”
— Tatiane Brito, 34 anos – professora de yoga e numeróloga.
“Namorava há pouco mais de um ano quando engravidei, e mesmo cercada de apoio pela minha família, um dia me vi encurralada pelo meu companheiro, que me acordou no meio da madrugada para dizer que se eu continuasse a gravidez ele não poderia mais ficar comigo. Era o meu sonho ser mãe, mas me vi manipulada a fazer o que ele queria. Senti o momento exato em que abortei, e foi como como se uma lâmpada dentro de mim tivesse queimado. Dois dias depois recebi um e-mail dele terminando tudo.
Ficamos juntos três anos num relacionamento abusivo em que ele me dizia sempre que eu não era uma moça direita, que ninguém ia me querer, que eu era uma droga, e chegava a me fazer ficar acordada até três da manhã durante o seu intercâmbio para a Itália porque não acreditava que eu estava em casa. Eu tinha que mandar fotos da sala de aula pra provar que eu estava lá. Na minha cabeça, eu não prestava mesmo, e comecei a adoecer, a me sentir assassina por ter tirado meu filho e tentei me matar. Depois disso, meu pai, que é psicólogo, me convenceu a começar terapia. Na época, eu não achava que aquilo era machismo, só percebi muito tempo depois que a gente terminou, e até hoje eu tenho que lidar com resquícios desses abusos em todas as minhas relações.
E, então, no ano passado, quando a discussão sobre aborto ficou mais acalorada nas redes sociais, fiz um post relatando minha história. Minha madrinha, que não sabia, me chamou de assassina. Eu já me fiz sofrer e paguei a conta que tinha que pagar, não consigo entender como alguém acha que tem o direito de chamar outra mulher de assassina por causa de um aborto. Aquilo me fez reviver muita coisa e fiquei mal um tempo, mas sempre que posso falo disso, porque quero dizer a todas as meninas que se elas escutam merda de familiar, de estranhos, vai ficar tudo bem, a gente sobrevive.”
— Babi Paiva, 27 anos, redatora.
“Aos 16 anos, fui em uma festa na casa de amigos e no outro dia não lembrava de nada. Um amigo me ligou para dizer que todos falavam que eu tinha perdido a virgindade com um cara que eu sempre detestei e me fez tomar uma pílula do dia seguinte. Depois disso comecei a ter surtos e fui diagnosticada no Hospital das Clínicas erroneamente com bipolaridade. Muito depois fui entender que tinha sido uma vítima de um estupro porque comecei a ter flashes do crime, de estar quase sem respirar, fazer esforço pra tirar ele de cima de mim. O vi numa festa um ano depois e tive crises feias. No meio da noite, me avisaram que uma amiga estava bêbada e estavam dando banho nela. Subi no banheiro e era ele, parti para cima e o tirei do banheiro no tapa gritando que ele não ia abusar de mais ninguém, e ele perguntou se eu não queria ‘ter ficado com ele’. Gritei que não e cuspi na cara dele. Me senti refém. Vítima ‘para sempre’, só porque nasci com uma vagina e o machismo castiga todas as mulheres que ‘saem da linha bela, recatada e do lar’. Só porque eu resolvi ir numa festa. Quando me dei conta, afundei em depressão, fiquei um mês sem tomar banho, e as consequências foram principalmente profissionais pois demorei para ser diagnosticada corretamente com depressão. Quando finalmente aceitei a terapia, os remédios, e tentei denunciar o que aconteceu numa delegacia, fui informada que não era mais possível. Isso me revoltou demais, só hoje consigo falar sobre isso de forma relativamente tranquila.”
— Maiara Dias, 24 anos, Relações Públicas.