Saiu no site BBC:
Durante a infância em Nsukka, no sudeste da Nigéria, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, de 39 anos, era quem tinha de ajudar nos afazeres domésticos. Seu irmão sequer era chamado. Da mãe, ouvia sempre como era importante saber cozinhar para o marido, ou sobre como se comportar em uma discussão: “é melhor ficar calada, fingir. Se você não concorda, sorria, é assim que as mulheres fazem”.
Algumas décadas depois, Adichie acabou se tornando uma das mais consagradas escritoras da Nigéria, referência do feminismo no mundo inteiro – seu ensaio Sejamos Todos Feministas foi bestseller em vários países – e autora de livros premiados e adaptados para o cinema nos Estados Unidos.
Ela vive desde os 19 anos nos EUA, onde sua obra e seu engajamento na luta pela igualdade de gênero conquistaram fãs como a cantora Beyoncé, que encaixou um sample de uma palestra de Adichie na canção Flawless.
“Nós ensinamos meninas a se encolher, a se diminuir. Nós dizemos a elas: você pode ter ambição, mas não demais. Você pode desejar ter sucesso, mas não em demasia, senão ameaçará o homem”, diz o trecho.
Autora de romances como Americanah, Hibisco Roxo e Meio Sol Amarelo, com livros traduzidos em mais de 30 línguas, ela diz se ver como “uma feminista feliz, que não odeia homens, que gosta de batom e usa salto alto”.
Seu foco no momento é na educação; ela acha que a noção de igualdade deve ser levada às crianças desde o berço.
“Eu queria um mundo onde nós pudéssemos criar crianças sem pensar em gênero. Ou simplesmente limitar gênero à biologia. Então, por exemplo, é ok você dizer a um menino que ele deve fazer xixi desse jeito específico porque o órgão sexual dele é desse jeito, mas para mim é aí que (a diferença) acaba”, disse a autora, que está lançando Para Educar Crianças Feministas, à BBC Brasil.
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil: A ideia de Para Educar Crianças Feministas veio da carta para uma amiga que teve uma menina e pediu conselhos a você sobre como criá-la. Quais foram os principais problemas que você identificou pela experiência pessoal?
Chimamanda Ngozi Adichie: Acho que a primeira coisa que me vem à cabeça é trabalho doméstico. Considero meus pais bastante “modernos”, não tão feministas como gostaria que fossem, mas modernos para os padrões. Para a minha mãe, havia uma expectativa de que eu soubesse cozinhar – uma expectativa que não existia para os meus irmãos. Não era uma situação extrema, e nós tínhamos uma empregada que ajudava, mas era importante para a minha mãe que eu soubesse cozinhar e eu sabia que era porque eu era uma garota.
Além disso, minha mãe conversava comigo sobre coisas como etiqueta, comportamento social, “para nós, que somos mulheres”, e essas conversas sempre tinham a ver com “ficar calada”, “fingir”, “se não concordarmos, é melhor só sorrir”, porque é isso que as mulheres fazem. E eu não era de ficar calada e sorrir quando discordava de algo, meu perfil era de falar, de me manifestar. E eu só pensava: isso não faz sentido, porque não é assim que eu sou. Ainda tinham coisas menores, como por exemplo: meu irmão aprendeu a dirigir muito antes de mim, porque eu sou menina.
E também existem todas essas pequenas coisas práticas que eu gostaria de saber fazer, mas não sei. E não é porque eu nasci com uma vagina, é porque ninguém me ensinou. Mas eles ensinavam aos meninos todas essas coisas, e eu queria muito poder saber.
BBC Brasil: Existe uma divisão comum em lojas de brinquedo com seções para meninas – que, em geral, têm brinquedos rosas e muitas vezes relacionados a afazeres domésticos ou ‘tarefas de mãe’ – e para meninos – que costumam ter carrinhos, helicópteros, super-heróis e a cor azul predominante. O que acha dessa divisão?
Adichie: Estava conversando com uma amiga minha e, aqui nos EUA, você tem aqueles kits completos de cozinha para criança, e eles são sempre rosas. E ela tem isso na casa dela, suas duas filhas amam esse brinquedo, e minha filha foi lá, elas estavam brincando com aquilo e eu disse a ela: sabe, não sei se eu gostaria de comprar isso para a minha filha. Fiquei pensando sobre isso e concluí: quando minha filha for mais velha, se ela realmente quiser esse brinquedo, talvez eu precise fechar meus olhos, engolir meu desgosto e comprar. Mas quando eu fizer isso, eu vou passar todos os dias falando para ela sobre como aquele brinquedo é péssimo e o que ele representa e por que não é legal gostar dele.
Eu tenho um problema com a seção de brinquedos para meninas nas lojas. Não só pelo fato disso dar início a uma lavagem cerebral muito cedo na cabeça das crianças sobre o que elas devem gostar. Mas porque acho também que priva as meninas de habilidades muito importantes que elas poderiam desenvolver.
Por exemplo. Você pode trocar a fralda de bonecas, quando você a vira, ela chora, e isso é interessante, mas…o que isso está ensinando à minha filha? Eu queria que ela aprendesse outras coisas que são úteis também, queria que ela aprendesse a consertar as coisas quando elas quebram, queria que ela fosse criativa, queria dar a ela alguns blocos para ver o que ela poderia construir com eles. Por isso não sou a favor dos brinquedos “tradicionais” de meninas.
BBC Brasil: No Brasil, já houve uma discussão sobre inserir uma disciplina escolar sobre igualdade de gênero. O que você acha disso?
Adichie: Acho que sou um pouco resistente a isso, a ter uma aula só sobre igualdade de gênero. Porque acho que igualdade de gênero deveria ser parte de toda matéria, de toda aula. Porque acho que quando nós fazemos isso em uma aula separada, faz parecer que isso seria algo especial – quando acho que deveria ser algo convencional.
Acho que todo professor deveria ser treinado para usar em todas as matérias uma linguagem igualitária em termos de gênero. Então quando ele for ensinar química, por exemplo, que fale das mulheres que contribuíram para a química também, quando for falar de história, falar da história da luta das mulheres por direitos…acho que tinha de ser parte de todas as aulas em vez de algo especial de uma aula só.
BBC Brasil: Quais são os principais pontos na educação de meninos e meninas para que eles cresçam “feministas”, como você deseja no livro?
Adichie: Acho que definitivamente existem pontos em comum. Acho que o que eu quero dizer de maneira geral aqui é que queria um mundo onde nós pudéssemos criar crianças sem pensar em gênero. Ou simplesmente limitar gênero à biologia. Então, por exemplo, é ok você dizer a um menino que ele deve fazer xixi desse jeito específico porque o órgão sexual dele é desse jeito, mas para mim é aí que acaba.
Quando seu filho está chateado e chora, você diz a ele: “Não, não chore, seja duro”. Eu não gosto disso. Acho que deveríamos falar mais para os meninos sobre a ideia de vulnerabilidade, não fazê-los pensar que eles precisam provar que são fortes. Isso é parte do problema com a masculinidade, é parte do problema de os homens serem emocionalmente reprimidos. Porque eles não aprenderam isso, não receberam as ferramentas para isso. A gente precisa redefinir masculinidade.
Também acho que há certas coisas que nós ensinamos aos meninos que nós precisamos ensinar às meninas também. A ideia de ser confiante, de não se desculpar por defender suas ideias, seus direitos.
BBC Brasil: Uma pesquisa recente da Universidade de Nova York apontou que meninas começam a perder a confiança em si mesmas a partir dos 6 anos. Como é possível mudar isso?
Adichie: Gostaria de ter essa resposta. Mas acho que se uma criança tem essa base em casa, a probabilidade de isso acontecer diminui. E acho que sempre há alternativas. Procurar livros sobre mulheres fortes, que conquistaram coisas para apresentá-las às meninas é uma.
Acho que faz diferença também a dinâmica de trabalhos domésticos em casa. Porque uma coisa é levar a criança à biblioteca, mostrar a ela livros de mulheres que fizeram coisas importantes, e outra é ela voltar pra casa e ver a mãe lavando louça, varrendo a casa, fazendo todo o trabalho doméstico em casa sozinha, como se fosse uma cidadã secundária.
BBC Brasil: Sua palestra no TED – que virou o livro Sejamos Todos Feministas – fez bastante sucesso e teve mais de 3,5 milhões de visualizações no YouTube. Mas você já disse no passado que feminismo é uma palavra que traz uma “bagagem negativa”. Por que você acha que isso acontece – e quando você descobriu a palavra?
Adichie: Desde que me entendo por gente… A ideia de mulheres serem iguais aos homens foi algo em que eu sempre acreditei, então sou feminista desde os 4 anos de idade. Mas nunca realmente parava para pensar sobre a palavra em si. Isso até um amigo me chamar de feminista em tom de insulto. Aí que eu fui atrás, procurei o significado, fui ler sobre o conceito, aprender sobre. E pensei: é exatamente isso que eu sou, é isso que me descreve.
Acho que existe uma ideia dominante que associa essa palavra com o extremo. Aquela ideia de que toda feminista odeia homens, que elas são cheias de raiva, desagradáveis…essa negatividade extrema ficou muito conectada com aquela palavra.
Mas acho que nós precisamos da palavra. Se nós queremos resolver um problema, temos que saber lhe dar um nome…É uma palavra que tem sido demonizada. Talvez esteja na hora de pegá-la de volta e fazer dela o que realmente é: ligada a direitos humanos, justiça, igualdade para homens e mulheres – o que inclui mulheres de todos os lugares do mundo.
Acho que a nossa cultura ainda não gosta disso, tanto homens quanto mulheres…nós simplesmente ainda não gostamos de mulheres se manifestando.
Eu mesma tive experiências com essa hostilidade. Mas por outro lado, eu também tive experiência com pessoas que disseram que, lendo as coisas que eu escrevo, passaram a pensar em algo que não tinham pensado antes. Ouvi isso de alguns homens. Claro, ainda não é o suficiente, ainda há muito mais hostilidade do que elogios, mas acho que é importante continuar falando, se manifestando.
BBC Brasil: E quanto ao racismo? Em quais situações você vivenciou isso nos Estados Unidos? E como era na Nigéria?
Adichie: Nós temos muitos problemas na Nigéria, mas o racismo que é baseado na cor da pele, nós não temos. Até eu vir para os Estados Unidos, eu não pensava em mim como uma mulher negra. Porque eu não tinha que pensar sobre mim dessa maneira.
Mas quando cheguei aos EUA, isso veio como algo enorme para mim. A coisa interessante sobre o racismo aqui é que ele não se manifesta da forma dramática como é colocado nos filmes antes dos anos 1960. Agora, ele é muito sutil, às vezes ele acontece e você não se dá conta.
Pelo fato de ser negra, houve muitas conclusões prontas a meu respeito, sobre minha capacidade, por exemplo – quando o professor ficou surpreso quando escrevi o melhor trabalho da sala. E ele ficou surpreso porque sou negra, ele não esperava que o melhor trabalho fosse vir de uma pessoa negra. Há outras coisas sutis, como entrar em uma loja de coisas caras e se deparar com as pessoas olhando para você de uma forma diferente e isso acontece porque você é negro e porque eles provavelmente estão pensando que você não pertence a esse lugar ou pensam que você vai roubar algo.
BBC Brasil: Você já esteve no Brasil? Quais são suas impressões sobre o país?
Adichie: Fui para a Flip em Paraty, depois fiquei dois dias no Rio. Eu amei o Brasil, me senti muito confortável ali, muito bem acolhida. Mas eu também lembro que nós fomos a um restaurante muito bom e chique e eu não vi nenhum negro lá. E perguntava: onde estão os negros do Brasil? Por que eles são invisíveis?
Fiquei surpresa com a quantidade de vezes que ouvi que “no Brasil somos uma mistura de raças” e eu não fiquei convencida disso, porque eu vi que era uma sociedade muito marcada por uma hierarquia de raças. Mas quero voltar.
Existe algo no Brasil que me parece familiar e ao mesmo tempo não familiar. Eu costumava achar que era parecido com a Nigéria. E tem uma região particular que eu queria conhecer, que é a Bahia. Tenho muito interesse nas histórias da cultura africana que foram preservadas lá.
Publicação Original: ‘Meninas são ensinadas a ficar caladas e sorrir quando discordam’, diz autora feminista que estourou na voz de Beyoncé