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O que é a masculinidade tóxica e como ela culmina na violência de gênero

Saiu na GLAMOUR

Veja a Publicação Original abaixo

Um relatório publicado em 2019 pela Organização Pan-Americana da Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), concluiu que as expectativas sociais dos homens de serem provedores de suas famílias, terem condutas de risco, serem sexualmente dominantes e evitarem discutir suas emoções ou procurar ajuda – ou seja, comportamentos referidos como “masculinidade tóxica” –, estão contribuindo para maiores taxas de suicídio, homicídio, vícios e acidentes de trânsito, bem como doenças crônicas não transmissíveis. O levantamento, disponível em português e espanhol, indicou que um em cada cinco homens que vivem nas Américas morre antes dos 50, e muitas dessas mortes são causadas por problemas ligados a essa masculinidade. Os papéis, normas e práticas de gênero impostas reforçariam a falta de autocuidado e a negligência de sua própria saúde física e mental.

O termo tem se tornado cada vez mais popular, mas para o psicólogo Leonardo Piamonte, especialista em questões ligadas à paternidade, a expressão é redundante porque não há como a masculinidade ser atóxica partindo da forma como é concebida. “É tóxica por definição. Se a gente pensar em masculinidades no Brasil, temos uma hegemônica, que estabelece que um certo tipo de homem é melhor, superior, tem mais valor do que outro tipo. Aquele que é agressivo sexualmente é mais bem visto, mais bem ajustado do que um que não é. Aquele que se distancia da sua vivência emocional é um homem que está cumprindo com os preceitos da masculinidade. Ela é hegemônica no sentido de que está acima. Como se esse fosse o único jeito possível”, diz.

Segundo a Associação Norte Americana de Psicologia, 80% dos homens americanos sofrem de uma condição chamada de “alexitimia”, que é a incapacidade de expressar, descrever ou distinguir emoções. Ela costuma estar ligada à construção social desse “ser homem”. Desta forma, performar essa masculinidade pode resultar em um comportamento tóxico, que inevitavelmente pode culminar, inclusive, na demonstração de alguma forma de violência contra a mulher dentro das relações que envolvem ambos os gêneros. “A masculinidade hegemônica é essencialmente uma performance, o cara se comporta de determinados jeitos porque ele espera ser validado pelas crenças, pelos amigos e pela família de acordo com os signos que aprendeu que são masculinos. Para pessoas que não sabem reconhecer os próprios sentimentos, que lidam com alexitimia, é possível usar a violência como linguagem; ao não conseguir resolver com diálogo e conversa, ele vai tentar exercer o poder das formas que ele conhece. Acaba sendo um exercício de masculinidade”, afirma Ismael dos Anjos, jornalista, fotógrafo e coordenador do documentário “Silêncio dos Homens”, do Papo de Homem.

O “tóxico” da expressão se relaciona à forma como essa conduta se espalha a todo o redor, sendo nocivo a todos os envolvidos. É por isso que Ismael destaca que não existe apenas uma forma de “ser homem”. Assim sendo, lidar com a desconstrução de determinados padrões pode possuir diversos caminhos além de simplesmente punir os homens quando ela se manifesta. “Não é uma masculinidade só, no singular. A gente tem muito a ganhar quando rompe com esse domínio e deixa florescer outras possibilidades. Homens gays, homens trans, homens negros precisam ter a mesma referência de masculinidade de homens brancos? Um passo complexo é que a gente entenda que outras masculinidades existem e podem romper com esse subjugo. A outra coisa é cumprir o que já tem de lei, já temos muitos mecanismos legais.”

Ele destaca um recurso que é, de fato, bem-sucedido, mas não devidamente difundido no Brasil: os grupos reflexivos para homens. Um dos mais conhecidos é o Tempo de Despertar, de 2014, criado pela promotora de Justiça Gabriela Manssur, do Ministério Público de São Paulo (MPSP). “Homens enquadrados em situação de violência não ficam apenas em uma cela lotada, cercado de gente presa, em um lugar que é feito para deixar as pessoas com ódio. A pessoa frequenta o fórum, fala com psicólogo, com juiz. Ele não consegue resolver nada na porrada, gritando. Ao aprender a resolver as coisas com diálogo, os índices de reincidência caem muito. No caso do Tempo de Despertar, saem de 65% para 2%. Embora seja algo previsto na lei há muito tempo, é uma minoria entre comarcas. A gente ainda está muito focado no punitivismo penal”, pontua Ismael. São os movimentos de mulheres que costumam trazer para a pauta a problemática de algumas condutas, que muitas vezes demoram anos para serem vistas desta forma socialmente. Um dos casos mais emblemáticos para a história foi o assassinato da socialite Ângela Diniz, morta com quatro tiros no rosto em 1976, no Rio de Janeiro, pelo então ex-namorado, Doca Street. Ele foi absolvido no primeiro julgamento, após basear sua defesa na tese de “legítima defesa da honra”, que ainda era considerada nos tribunais. Foi o movimento feminista que, indo às ruas, gritou que “quem ama não mata”.

Quando o tema é feminicídio, parece ser consenso condená-lo em 2021, mas a sua criminalização, por exemplo, só veio em 2015 (Lei 13.104). Isso também se estende a outras formas de violências contra as mulheres, sobretudo se consideradas “menos graves”. Foram as campanhas “Chega de Fiu Fiu” e “Meu Primeiro Assédio” que debateram a questão da importunação sexual na internet. Ainda assim, a criminalização enfrentou resistências, já que culturalmente foi institucionalizado que mulheres podiam ser tratadas desta forma – e que, inclusive, alguns comportamentos deveriam ser encarados como elogio. “Hoje são publicamente condenáveis questões como estupro, violência doméstica, feminicídio, mas nem sempre foi assim. Na verdade, a história da dominação masculina sobre a mulher já permitiu muito bem essas práticas. São condenáveis hoje, mas não totalmente. O caso da Mariana Ferrer é um exemplo. Claro que esses espaços vão se fechando a partir dos avanços sociais que aos trancos e barrancos têm acontecido. Temos a lei da importunação sexual, por exemplo; temos algumas coisinhas que começam a despontar e são bastante importantes”, avalia Leonardo.

Como, então, desconstruir algumas condutas e, consequentemente, as violências que resultam deles? Ismael aponta que um dos primeiros pontos é a não-validação, ou seja: sendo homem, não compactuar com o comportamento dos seus pares, repreendendo e condenando se for necessário. “As masculinidades constroem muito em relação a como o outro me percebe como homem, a gente dá pontos numa carteirinha de macho quando alguém comete assédio. A gente precisa deixar de ver graça nisso. O cara que está esperando validação e não a recebe, que passa a não ser bem-vindo no grupo, vira uma chavinha de acabar com essa performance. Os homens têm acesso a uma espécie de ‘quinta série mental’ e agem como se tivessem 10, 11 anos quando estão entre amigos. Acho que a gente pode romper esse ciclo, corresponder à idade que temos. Não faz sentido se comportar de uma forma entre 3 e 4 caras e de forma diferente com a sua esposa, por exemplo”. Ele ainda destaca que a educação para meninos é essencial, mostrando que há soluções possíveis e alternativas para determinados comportamentos – e não necessariamente pelo medo da prisão, por exemplo, que é algo que não acontece. Já Leonardo aponta que é muito importante falar e discutir o tema como forma de letramento, ensinando o que se pode e o que não se pode fazer, como sendo um primeiro passo para uma nova cultura. Ainda assim, a sociedade precisa de líderes e políticas públicas que busquem mudanças de forma estrutural. Ele lembra que no Brasil, por exemplo, o Carnaval dura mais do que a licença paternidade.

Outro ponto é o acirramento de narrativas: de um lado, um grupo amplo e forte que decide que as relações entre homens e mulheres, tal como elas se dão, funcionam e que devem se manter desta forma. Inclusive, que deveriam até retroceder em alguns aspectos. Do outro lado, discussões puxadas pelos movimentos feministas que costumam fazer um convite aos homens. O psicólogo pondera, no entanto, que acredita que o convite é aceito muitas vezes para que ele apenas dê uma nova roupagem às suas práticas tradicionais. “Acho que há um movimento tímido de alguns que estão tentando encontrar caminhos para se tornarem aliados de uma luta. O homem participou de todas a guerra do mundo, menos da guerra pelo fim da discriminação de gênero. Ela ainda não aconteceu, esse investimento ainda não foi feito. Acho que agora vemos alguns homens que, a partir da experiência da paternidade, começam a se colocar de forma mais cuidadora, mais presente, equilibrando um pouco mais as cargas do lar, mesmo que tardiamente. É um processo de observância diária em todos os espaços possíveis e isso não é fácil porque o homem detém uma quantidade absurda de privilégios, principalmente se é um homem que carrega outros marcadores sociais: se é branco, se é hétero. Nem sempre é fácil não usar esses privilégios nas situações mais corriqueiras. A grande conquista do pensamento masculino moderno para apontar para um caminho de solução seria passar a entender que privilégios são esses, em quais momentos são usados e como aprender a não usá-los. Como se fosse a carta de um jogo no baralho que só você tem. Todos os outros jogadores da mesa, que são mulheres, negros, gays, receberam menos cartas que você. Só você tem essa carta que pode acabar com o jogo. Vejo que o homem que se diz feminista, antimachista, fala que não tem essa carta, que a jogou fora, o que não é verdade. O grande desafio seria aprender a usar essa carta mesmo tendo, o que é muito difícil”, finaliza Leonardo.

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