Saiu no JOTA
Veja a Publicação Original
A Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021, prevê a utilização de implante subdérmico de etonogestrel para controle de gravidez não planejada, todavia, condiciona a criação de programa de controle de natalidade a determinados corpos, de determinados grupos sociais. Dessa forma, mulheres em situação de rua, pessoas privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo, dentre outras, não são consideradas as “procriadoras” ideais, ou melhor, são considerados corpos “indesejáveis” que gestam outros corpos indesejáveis.
O conto de Aia à “la brasileira” tem fortes contornos eugênicos. Enquanto no romance distópico de Margaret Atwood existem mulheres desejadas a engravidar, aquelas que tem a função de povoar a região com uma classe desejável, aqui no Brasil a face contrária à criação de uma elite de “desejados” é a eliminação de corpos “indesejados”.
No século XIX, no pós-abolição, os projetos de branqueamento e eugenia encontravam terreno fértil. Tentava-se construir uma nação próspera e um povo aperfeiçoado e evoluído. Nesta, o indígena e o negro constituíam uma alegoria do passado, atrasado, selvagem, quase humano. Os processos eugênicos abrasileirados erigiram o mestiço como uma ponte para eliminar o indígena e o negro da linhagem do povo e modificar o perfil “racial” do país. O quadro “A redenção de Cam” é a representação visual do ideal eugênico brasileiro, com vistas a eliminar o negro.
O corpo da mulher torna-se, portanto, objeto de controle, onde aos corpos brancos é destinado a fertilidade e aos corpos não brancos, a esterilização. Compreende-se que as opressões não operam da mesma forma, pois o controle dos corpos femininos assume diversas dimensões de acordo com a sobreposição de opressões a que são submetidas as mulheres.
Silvia Federici[1] denuncia que ao passo que o feminismo branco debate sobre questões ligadas ao aborto, as mulheres não brancas estão lutando por terem o direito à maternidade respeitado. Dentro deste sistema capitalista, o Estado decide os corpos que são passíveis de luto ou não, ao mesmo tempo, que decide quem deve nascer e quem não deve nascer. A Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021, se insere nesta lógica cruel de violência do Estado contra determinados corpos femininos que são consideradas indesejados, juntamente com sua prole.
Bell Hooks[2] ainda afirma que se as mulheres não têm o direito de escolher o que acontece com o próprio corpo, automaticamente, existe uma renúncia de direitos em outras áreas da vida. Os direitos sexuais e reprodutivos representam a base de sustentação da liberdade da mulher. Segundo a autora, “mulheres brancas individuais, com privilégios de classe, frequentemente tinham acesso a garantias, que a maioria das mulheres não tinha”.
Dentro deste projeto colonial e patriarcal do Estado, o controle da sexualidade assume caráter fundamental. Os direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres são instrumentos de disputa epistêmica do lugar de sujeito de direito na sociedade. Mulheres em situação de rua, mulheres privadas de liberdade, mulheres trabalhadoras do sexo não são mulheres?
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU) trata do direito à autodeterminação, quer dizer, do direito de escolha consciente. Trata- se de liberdade no exercício da sexualidade e de escolhas com relação à reprodução, como dimensões da cidadania e da democracia. Mulheres em situação de rua, mulheres privadas de liberdade, mulheres trabalhadoras do sexo não são cidadãs?
Já a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (OEA) é um marco que convoca os Estados a agirem com a dupla finalidade de prevenção e punição contra violações sistemáticas aos direitos humanos das mulheres. Logo, fica positivada a garantia de proteção às mulheres sem distinção de etnia, “raça”, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição. Mulheres em situação de rua, mulheres privadas de liberdade, mulheres trabalhadoras do sexo não devem ser protegidas pelo Estado?
Em 2018, um caso chamou atenção no estado de São Paulo, trazendo ao debate a prática reiterada da esterilização compulsória de mulheres de determinados grupos sociais. Na ocasião, o Ministério Público, com fundamento de defesa dos interesses individuais indisponíveis, pediu a realização de uma laqueadura tubária, procedimento irreversível, em uma mulher, mãe de 5 filhos, dependente química e situada abaixo da linha da pobreza. O juiz concedeu o pedido e ordenou que o município de Mococa realizasse o procedimento, o que foi atendido. Contudo, nos autos não havia comprovação de autorização válida da mulher. O que caracterizou uma esterilização compulsória. Os desembargadores do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJSP) votaram pela não realização do procedimento, mas já era tarde.
Cabe destacar que no acórdão[3] um dos objetivos apontados para a edição da Lei nº 9.263/96, de planejamento familiar, foi “tentar coibir a prática em larga escala de esterilizações no país e estimular, em contrapartida, a utilização de métodos reversíveis de contracepção”. Ou seja, garantir a todas as mulheres em idade reprodutiva o exercício da autonomia e a possibilidade de optar, de modo informado e consciente, por métodos/técnicas de concepção e contracepção com plena liberdade de escolha. A lei de planejamento familiar, até mesmo quando se trata de esterilização voluntária, estabelece uma série de critérios para a realização, entre eles a informação clara e o consentimento expresso do homem e da mulher envolvidos no procedimento.
Os direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres são invalidados, sistematicamente, seja por meio de políticas públicas, seja por decisões judiciais, ambas em desacordo com a legislação internacional e constitucional.
É necessário salientar que a crítica a Portaria SCTIE/MS nº 13, de 19 de abril de 2021, se localiza no condicionamento à criação de programa de controle de natalidade de determinados corpos, de determinados grupos sociais. Como Audre Lorde, compartilhamos o pensamento de que: “não seremos livres enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das nossas”.